The Kitsch Issue
Longe vão os dias em que a manicure ficava concluída após uma camada de verniz. Aquilo que outrora poderia ser considerado um simples ritual de beleza é agora uma forma de expressão artística. Memes, personagens de animação tridimensionais, ilusões óticas, pinturas detalhadas em extensões de cinco centímetros... Apenas a criatividade é o limite quando o assunto é nail art.
Corria o mito no verão de 2023 de que qualquer unha que se atrevesse a ver a luz do dia (leia-se, das mãos ou dos pés) tinha de ser pintada de um tom azul leitoso. Perdoe-se a tradução, mas é o termo mais fiel para descrever o famoso blueberry milk que percorreu o mundo na forma de vídeos de dez segundos no TikTok e fotografias das mãos imaculadas de Dua Lipa, Sofia Richie Grainge e Sabrina Carpenter. Talvez o envolvimento destas três it girls seja suficiente para se justificar a quantidade de tinta gasta a analisar uma cor de verniz que, sejamos honestos, nunca passou disso: uma cor. Numa altura em que existem mais técnicas de manicure do que dedos das mãos, em que a expressão individual reina em detrimento da imitação, e em que as redes sociais estão a transbordar de artistas de todas as áreas descobertas e por descobrir da humanidade, quem é que consegue passar mais de cinco minutos a analisar uma mera cor de verniz? O leitor não será de certeza, pois fizemos as contas e esta passagem consegue ser lida em menos de 50 segundos – e, a seguir a este ponto final, o assunto cai por terra. Concentremos as nossas atenções no (multi)colorido mundo da manicure, visto não ser por acaso que, em inglês, se lhe dá o nome de nail art. É uma arte, sim, em todos os sentidos da palavra. Nasce de uma fonte de criatividade, talento e inspiração. Concretiza-se através de pincéis, desenhos e esculturas. A única diferença é que, ao invés de se pintar óleo sobre tela, pinta-se óleo sobre unha – o que significa que, de mês a mês, expõe-se uma nova obra de arte. Mas quem serão os artistas desta geração?
Chamam-se nail artists e fazem muito mais do que pintar unhas. Há quem desenhe stencils (moldes e autocolantes que auxiliam na pintura de formas complexas) ou conceba press-ons, um nome utilizado para descrever unhas falsas, muitas vezes já decoradas, que podem ser coladas às unhas naturais para uma manicure rápida e eficaz. Daron Wood é especialista nestas duas áreas, para além de gerir o seu estúdio de beleza privado na cidade de Vancouver, no Canadá. Por semana, idealiza e concretiza pequenas obras de arte nas mãos de cerca de 15 clientes – e poucos são aqueles que saem do seu salão com uma simples camada de verniz. “Sou especialista em airbrush e faço os meus próprios stencils, o que abre muitas portas,” introduz Wood. No seu Instagram (@reallyhotgirl), é possível observar a variedade de designs que brotam do seu aerógrafo, desde homenagens a símbolos da cultura popular – Betty Boop é um dos mais requisitados – a padrões abstratos, que nascem do movimento livre das suas mãos. Em que se inspirará? “Diria que cerca de 40% do que faço são pedidos personalizados, em que alguém me envia uma referência e trabalho a partir daí. Para os meus próprios designs, retiro inspiração da natureza, posters e gráficos vintage, como autocolantes dos anos 80, anúncios japoneses, personagens dos anos 90 e 2000, videojogos antigos e pinturas de automóveis”, explica. Entre os seus trabalhos mais desafiantes, Daron Wood destaca uma manicure inspirada na sequência de abertura da série The X-Files: “Fiquei impressionada com a quantidade de detalhes num espaço tão limitado. Eram as unhas naturais [da cliente], por isso tive de encolher o desenho até ficar muito pequeno.” Revela também uma afeição especial por um desenho baseado na banda de rock escocesa Cocteau Twins que, “por serem objetos inanimados [como bolas de futebol, alfinetes, cadeados, entre outros], funcionam muito bem em airbrushing”, e ainda por um modelo recente, em que misturou várias técnicas de nail art, como a aerografia, o verniz cromático e o gel 3D. O resultado foi uma manicure multidimensional, cujo tema abrange uma variedade de palhaços e motivos florais, e que será integrada na escultura de uma artista canadense este ano.
Entre a imensidão de temáticas que podem ser retratadas no design de unhas, a cultura popular parece ser uma das favoritas de quem não se contenta com uma camada de verniz monocromática. O trabalho de Misuzu Shibano, conhecida como @piopionails no Instagram, é o epítome dessa realidade. “Sinto-me atraída pela cultura popular, porque gosto de comunicar com humor e sátira. Os memes são um ótimo exemplo. Os desenhos animados também são divertidos. É uma forma de me rir um pouco de mim mesma”, revela em entrevista à Vogue Portugal. A nail artist sediada em Los Angeles trocou um trabalho em animação por aquilo que outrora era apenas o seu hobby – a manicure – e, desde então, tem animado as redes sociais com unhas tão doces que poderiam ser comestíveis. Não é por acaso que uma das técnicas que mais utiliza se denomina gummy gel. Porém, para a percebermos, é necessário viajar até à génese das suas criações. “Começo por fazer uma manicure a seco com uma lima de unhas elétrica. O cliente depois escolhe se vai querer extensões ou não. Se quiser, uso principalmente extensões Gel-X [mais suaves], mas às vezes uso acrílico, especialmente para formatos como unhas curvadas”, descreve Shibano. Preparada a base, é tempo de dar asas à criatividade que distingue esta nail artist. “Pinto à mão quando quero obter um look plano, que pode ser tão realista quanto o tempo o permitir. Para fazer arte 3D, uso acrílico e gummy gel. O acrílico oferece um aspeto polido e sólido, enquanto o gummy gel é mais versátil com o tipo de texturas. Também faço airbrush para qualquer look que precise de um gradiente (...) e é muito divertido aplicar esta técnica por cima de arte 3D.” Ao combinar estas técnicas, Misuzu Shibano denota que “é possível criar looks infinitos e manter as unhas práticas o suficiente para o quotidiano.”
Tendo em conta a complexidade que está por detrás de alguns dos designs aqui detalhados, não seria descabido pensar que a extravagância deverá ter data e lugar marcados. Vale a pena decorar as unhas com cinco tipos diferentes de padrões animal numa semana em que os únicos espectadores serão os colegas de escritório? Para algumas pessoas, talvez não. Porém, para outras, a sua manicure é um veículo de expressão e identidade pessoal tão importante quanto a roupa ou a maquilhagem. “Faço nail art já há alguns anos – sete, para ser mais precisa –, e as minhas escolhas têm vindo a evoluir e a ser cada vez mais ousadas. No começo, eram só uns tons ou pormenores diferentes em cada unha, mas hoje aceito todo o brilho, todas as cores, combinações e extras possíveis.” Este testemunho pertence a Mafalda Beirão, uma criadora de conteúdos portuguesa que, no Instagram e no TikTok, partilha a sua paixão por maquilhagem. Contudo, no final de 2023, foram as suas unhas que roubaram a atenção da sua audiência. “Chamei-lhes as minhas unhas em esteróides porque tinham uma base com muito brilho, um padrão tigre com dois tons de cor-de-rosa (algumas unhas completas, outras só na ponta) e, por cima, várias coisas com muito, muito relevo: brilhos, flores, estrelas e várias Hello Kitty.” Se a descrição parecer extravagante, é porque ainda não contámos a história que lhe deu origem. Para concretizar este design de unhas, foram necessárias três coisas: inspiração, talento, e uma viagem de mais de dez mil quilómetros. “Desde que faço nail art que percebi que a Coreia do Sul tem uma influência muito forte nas tendências de unhas e ir a Seul sem experimentar arranjar as unhas lá não fazia sentido”, conta Beirão, que incluiu no seu roteiro uma visita à GangNailz, um salão de nail art que descobriu através das redes sociais. “A experiência foi muito semelhante à que tenho em Portugal. Acho que a diferença maior que senti foi na interação, porque a barreira linguística podia ser um problema e, embora falassem inglês, [as nail artists] estavam mais retraídas.” Para além disso, a criadora de conteúdos destaca a vastidão de opções oferecida, nomeadamente ao nível das tonalidades e acessórios para aplicar na manicure.
Embora seja uma defensora acérrima de se apostar em designs de unhas irreverentes, Mafalda Beirão admite que esta tendência pode não ser do agrado de toda a gente. Ainda assim, relembra que “até quem não usa [nail art] no dia a dia, aceita um brilhozinho diferente numa ocasião especial.” Pela explosão de imagens de unhas extravagantes que se tem observado nas redes sociais, dir-se-ia que a maioria das pessoas tem caído na tentação de ir além do simples “brilhozinho.” Para Misuzu Shibano, este é o resultado de existirem “cada vez mais produtos inovadores (como o gummy gel)”, e de as “pessoas estarem aborrecidas após a COVID-19.” “Também é muito mais fácil aprender e partilhar técnicas online, por isso mais artistas podem facilmente aprender a usar a nail art como um meio de experimentação”, completa a nail artist de Los Angeles. Daron Wood concorda com a ideia de que as redes sociais fomentaram esta sede por manicures ousadas: “A Internet mudou muito a profissão. Há imensas pessoas a criar tutoriais e a mostrar o seu trabalho e, pela minha experiência, a maioria dos clientes quer ver o que poderá vir a receber antes de o receber.” A isso, junta a possibilidade de ser um estilo que, tal como tantas outras tendências de beleza, tende a surgir de forma cíclica. “Quando era mais nova, usava-se essencialmente acrílicos e manicure francesa, ou até verniz normal, e agora temos coisas muito mais divertidas com as quais podemos trabalhar”, conclui Wood. Diversão é, provavelmente, a palavra que mais define este movimento pela irreverência. O que mais explicaria o facto de Misuzu Shibano ter recriado as unhas de um extraterrestre para receber o seu diploma de conclusão de curso?
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