As doenças raras podem atingir qualquer um de nós, em qualquer idade. São como uma parede invisível que condiciona a rotina, os sonhos, o futuro.
Quase ninguém fala delas. Existem na penumbra, abafadas por problemas aparentemente mais urgentes. No entanto, há milhares de pessoas que vivem com elas – que vivem apesar delas. As doenças raras podem atingir qualquer um de nós, em qualquer idade. São como uma parede invisível que condiciona a rotina, os sonhos, o futuro. Mas são mais vulgares do que se possa pensar. Na impossibilidade de as vencermos, trazemo-las para a mesa de discussão. Para que, pouco a pouco, se tornem menos raras.
Sabe como é, isto os jovens hoje em dia estão sempre cansados. Saem demasiado à noite, andam muito pela rua... Por isso é normal estes valores. Mas vai ver que daqui a nada está tudo normal. Depois das férias fica tudo bem.” Estou sentada numa sala de paredes brancas, tão insípida como a sua decoração, quase inexistente, e assisto à leitura da sentença sobre o meu estado de saúde – que não é comunicada a mim, mas à minha mãe. Tenho 18 anos. Nos últimos meses tive quebras inexplicáveis, coisas que o senso comum explicaria de modo simplista como ‘falta de forças’, só que o senhor de bata encardida que me atende não tem dúvidas. Isto é tudo normal. Apesar dos níveis dos meus glóbulos brancos estarem muito abaixo daquilo que é comum, a receita passada resume-se a “descanso e menos fita.” Encolho os ombros. O especialista é ele, é ele que tem relações privilegiadas com a ciência, eu apenas sei que não me sinto bem, a Internet ainda não é a caixa de Pandora dos dias de hoje, por isso nem sequer posso googlar os sintomas que me atacam. Meses depois, numa consulta de rotina de ginecologia, sou surpreendida quando a minha médica me garante que não, que nada daquilo é normal. “Estes valores [aqueles que há meses atrás eram perfeitamente aceitáveis] não podem estar assim. São mais do que baixos. São um problema.” Não é por acaso que ela, à época, é também uma das principais figuras do Instituto Português de Oncologia (IPO), para onde sou imediatamente reencaminhada. E pronto. A partir daí a minha vida mudou.
Quando escrevo este texto, passam sensivelmente 20 anos desde o dia em que o senhor de bata encardida sugeriu que eu era (mais) uma adolescente à procura de atenção. De lá para cá, tive a sorte de encontrar profissionais que encaram o seu trabalho com muito mais responsabilidade – com muito mais sensibilidade. Que não viram costas a questões desconhecidas, mesmo quando são incómodas. Porque, quando se é portador de uma doença rara, quase todas são. No site da Direção Geral de Saúde, pode ler-se: “Na União Europeia, consideram-se doenças raras, por vezes também chamadas doenças órfãs, aquelas que têm uma prevalência inferior a 5 em 10.000 pessoas (Decisão 1295/1999/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 29-04-1999), considerando o total da população da União. [...] Estima-se que existam entre 5.000 a 8.000 doenças raras diferentes, afetando até 6% da população, o que extrapolando, significa que existirão até 600.000 pessoas com estas patologias em Portugal. Acresce que a maior parte destas pessoas sofre de doenças cuja prevalência é inferior a 1 em 100.000 pessoas, ou seja, que afetam menos de 100 doentes no país. Porém, o peso social das doenças raras atinge, para além dos doentes, os seus familiares e outros conviventes, especialmente quando sofrem de doenças mais graves, incapacitantes ou difíceis de controlar.” E a explicação continua: “Conjugam-se, assim, fatores desfavoráveis, como a raridade, a gravidade e a diversidade das doenças raras, que as tornam particularmente pouco vulneráveis às intervenções do sector da saúde. Daí ter surgido a necessidade de serem lançadas iniciativas específicas para o controlo destas doenças na comunidade. São disso exemplos na União Europeia (UE) a Rare Diseases Task Force e, nos Estados Unidos, o US Office of Rare Diseases.”
Eu tenho uma doença rara. Ah! Até escrever isto soa a engano. Mas tenho. Lá está ela, estrangeira e feia, na lista das fatalidades que ninguém conhece. Neutropenia Crónica. Consoante as monções, transforma-se em Neutropenia Crónica Grave. Há 20 anos que é assim. Os meus neutrófilos recusam-se a crescer e a multiplicar-se. Eles, que são as principais defesas do nosso corpo contra infeções, entraram em modo “computer says no”, do dia para a noite. Ninguém sabe porquê. Ainda ninguém descobriu, apesar dos inúmeros procedimentos a que me tenho submetido, que oscilam entre exames à medula óssea, biópsias, colheitas de sangue semana sim, semana também (já ultrapassei a marca das 400, julgo que o prémio chegará com as 500), injeções duas vezes por semana (quando os glóbulos brancos se recusavam a cooperar, chegámos às 200), e coisas mais vulgares, quase prosaicas, como sessões de autodomínio da mente – quando uma enfermeira me perguntou o que é que andava a fazer para ter tantas marcas de agulhas nos braços, tive a três centímetros de a estrangular; não o fiz, e arrependo-me, porque em vez disso fui chorar para o carro. Há 20 anos que é assim. O IPO deixou de ser uma casa fantasma onde vão “as pessoas doentes” e passou a ser um sítio onde passo boa parte da minha vida – um sítio como os outros. Ou se calhar não. Se calhar passou a ser um sítio melhor, porque me salvou de tudo o que não conseguia compreender, de tudo o que estava “errado” comigo. Que não era nada. Porque mesmo que ninguém consiga pronunciar Neutropenia Crónica sem franzir o sobrolho, ela existe. Existirão algumas pessoas no mundo que vivem com ela. Ignorá-la é ignorar-nos.
Sou uma pessoa igual às outras. Um pouco mais louca, talvez, mas aparentemente não se passa “nada de grave” comigo. Não há nada em mim que dê o alerta para esta condição – nada daquilo a que os ingleses chamam de red flag. Nenhuma deficiência motora. Nenhuma cicatriz aparente. Nenhuma ferida que apele ao coração de terceiros. Nada. E, no entanto, há qualquer coisa que não está bem. Os defensores do meu (do nosso) organismo desistiram de mim, ou, pelo menos, desistiram de mim da forma como era suposto. Em termos práticos, tenho quatro vezes menos neutrófilos do que uma pessoa “normal.” Em termos práticos, as constipações são quase sempre gripes, as febres são quase sempre vírus, as aftas, as nódoas negras, as gengivas inflamadas, e por aí fora, são quase sempre uma longa dor de cabeça. Não raras vezes, em tempos de maior fragilidade, lembro-me de ir a correr para casa devido a súbitas “perdas de energia.” Sentia-me apenas estúpida – a exaustão repentina é muito difícil de explicar. Aos outros, principalmente. A voz da ignorância tende a fazer comentários como “Estás constantemente cansada, isso não é normal”, mas nunca ninguém quer realmente entender o que é, ou não é normal. E isso de ficar “de molho” dias a fio, para garantir que altas temperaturas passem a números normais? Mariquice... É que as doenças raras interessam (muito) pouco. É uma luta de médicos e enfermeiros contra um muro invisível de cifrões. O número de pessoas afetadas por estas patologias é de tal forma baixo que às grandes farmacêuticas interessa zero investir neste problema. Como já ouvi centenas de vezes, não há cura mas, por enquanto, vai havendo (algum) tratamento.
Você é a menina doente que pediu para trazer as injeções.” Estou parada no corredor de um Boeing 777 apinhado de gente. Há malas de mão em todas as direções, gritos de crianças, aqui e ali ouve-se o barulho dos motores. Daqui a nada o avião há de partir em direção ao Rio de Janeiro, deixando para trás o inverno europeu, em troca de um Carnaval mais solarengo. Estou de férias, sem horários nem problemas de caracacá do quotidiano. Só aparentemente. A hospedeira que me recebe não me deixa esquecer a minha “condição”. Grita alto e bom som que trago comigo as agulhas, motivo pelo qual tive de fazer um requerimento à ANA – Aeroportos de Portugal para poder movimentar-me com semelhantes objetos. Não sou uma terrorista, mas quase. Toda a gente à minha volta repara na geleira que trago comigo (as injeções não podem estar mais de 30 minutos fora do frio). Tenho 24 anos. Este é o meu suicídio social. Imaginava acontecimentos destes aos 70, aos 80 talvez, ainda ostento meia dúzia de borbulhas da puberdade e já me tratam como incapaz. Exagero. Isto não é nada. Daí a meses, isso sim, será o fim. Só que ainda não sei. Celebro dois anos num emprego-quase-perfeito. Sou feliz a todos os níveis. Já vejo o contrato ao virar da esquina, sinto-me finalmente livre da tirania dos recibos verdes. Na conversa que tenho com o meu chefe, que até é um tipo porreiro, percebo que não vai ser assim. “És uma pessoa doente, e as empresas não contratam pessoas doentes.” Em sua defesa, na altura estava de facto “mais doente” do que agora, numa escala em que ficar de quarentena era inversamente proporcional a cumprir as minhas obrigações profissionais. Mas era doente. Tinha 24 anos e já me colavam um rótulo para o futuro. “És uma pessoa doente, e as empresas não contratam pessoas doentes.” Ouvi isto vezes sem conta, em loop, e de certa forma acreditei que era assim. Senti-me culpada. “Adoramos o teu trabalho, mas o mais provável é que um dia destes tenhamos de te mandar embora, e assim ninguém se chateia.” Acabei por sair. Ninguém se chateou.
Durante muito tempo empurrei a Neutropenia Crónica para dentro de uma gaveta. Quanto mais escondida estivesse, menos dava por ela. Evitava partilhar o meu “segredo” com os outros e, se forçada a abrir o jogo, lá dizia que tinha um problema no sangue. O resultado é que os meus interlocutores, não raras vezes, ficavam a imaginar que os bonecos da série Era Uma Vez... A Vida estavam deprimidos e não faziam mais perguntas. E eu seguia a minha vida, encostada à minha condição de ser estranho. Depois, os anos foram passando. As minhas amigas começaram a ter filhos. E eu, que nunca pensei muito sobre isso, comecei a fazer as contas. “Se não tenho defesas para mim, como vou ter para um bebé?” O assunto tornou-se tabu. “Quando quiser engravidar, então pensamos nisso. Não será fácil.” Não será fácil. Os avanços da ciência sugerem que pode não ser impossível. Só o destino saberá se será viável. Entretanto, eis-me, 38 anos de vida, em tudo igual aos outros, em tudo diferente dos outros – ligeiramente diferente, vá. Como milhares de outras pessoas só aparentemente saudáveis, que sofrem em silêncio. O mundo está cheio de segredos, de detalhes, que nem sempre se conseguem ver a olho nu. Com as doenças raras – um dia ainda haveremos de as chamar especiais – também é assim. É tudo uma questão de respeito.
Artigo originalmente publicado na edição de janeiro 2020 da Vogue Portugal.
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