Chamem-lhe queen b(utterfly), pois não há maior rainha das polémicas do que esta tatuagem. Herdeira das calças de cintura descaída e detentora do tesouro da sexualidade, a borboleta ligou e quer reclamar a sua autoridade. Não há nada de tramp neste stamp.
Chamem-lhe queen b(utterfly), pois não há maior rainha das polémicas do que esta tatuagem. Herdeira das calças de cintura descaída e detentora do tesouro da sexualidade, a borboleta ligou e quer reclamar a sua autoridade. Não há nada de tramp neste stamp.
Quantas borboletas são precisas para que uma tatuagem adquira uma conotação pejorativa? Apenas uma, se for desenhada no lugar certo. Um simples posicionamento estereotipado e toda a inocência associada ao mais belo dos insetos cai por terra. E isto não é apenas o caso das borboletas. Poderíamos estar a falar de um par de asas, de um canteiro de rosas ou de um padrão tribal. Qualquer um destes símbolos ganha um novo significado a partir do momento em que é tatuado no fundo das costas de uma mulher. Sim, de uma mulher. Talvez esse seja o pormenor mais importante desta caracterização, deste conjunto de atributos que originou não apenas uma nova categoria de tatuagens, como também uma forma de definir as práticas sexuais de pessoas que se identificam com o género feminino, devido à maneira como escolhem apresentar o seu corpo. A narrativa não é nova, mas, desta vez, tem um plot twist. Carimbo de vagabundo. Procurar uma tradução literal do termo inglês “tramp stamp” irá resultar mais ou menos nisto, que é como quem diz: ficamos sem perceber nada do assunto. Em jeito de justificação do dicionário online comum, este conceito carece de mais do que uma interpretação palavra por palavra, pois é no seu contexto cultural que reside o seu verdadeiro significado. Foi por isso que, na busca por uma definição, recorremos ao Urban Dictionary e, neste, encontramos a seguinte explicação, inserida pela utilizadora Meghan Victoria no dia 6 de junho de 2005: “Uma tatuagem horrível e clichê que faz com que as mulheres pareçam burras. Encontram-se no fundo das costas e é geralmente uma borboleta ou uma flor.” Embora Meghan Victoria (de cognome Karen) esteja a milhas daquilo que o conceito representa, não deixa de ser o exemplo perfeito da força pejorativa que estas duas palavras conseguem agregar. Recorremos, por isso, a Rebeca Verde, especialista em comunicação sex-positive, para nos elucidar quanto aos critérios que definem uma tramp stamp. Comecemos pelos critérios que a sociedade associa a este tipo de tatuagens, tais como “estar no centro do fundo das costas,” como já tínhamos assegurado, “ser visível” – é uma questão de Moda, já lá vamos – e “não estar nas costas de um homem-cis,” ao que Rebeca adiciona um sarcástico, ainda que muito necessário, “lol.” Seguem-se os critérios que a especialista considera serem contemporâneos ao nosso entendimento de uma tramp stamp: “ser sexy” e “empoderar,” preservando somente o posicionamento que lhe estava associado.
Para perceber a diferença entre as várias interpretações que partem deste tipo de tatuagem, é importante conhecer a história que as expôs aos olhos do mundo. “Nos anos 90, a tramp stamp era aquela tatuagem que só quem tinha eram as prostitutas, as strippers, ou as mulheres que trabalhavam em bares, porque se dizia que recebiam mais gorjetas por causa disso,” introduz Mariza Seita, tatuadora no estúdio Ink&Wheels. A associação à última década do anterior milénio passa também pelas tendências de Moda que então reinavam, nomeadamente “as calças de cintura super descaída,” que proporcionavam uma visão privilegiada para a tal zona das costas. Pelo seu posicionamento, e pelas ocupações profissionais que a popularizaram, a tramp stamp ganhou a conotação de “tatuagem de oferecida”, e foi exatamente sob este nome que Rebeca Verde a conheceu pela primeira vez. “Estava no Algarve, na praia com a minha mãe, (...) estávamos sentadas na areia e uma senhora atravessa-se na nossa paisagem, e tinha uns golfinhos a saltar no fundo das costas. Eu estava hipnotizada... Mas a minha mãe disse-me logo que esse tipo de tatuagem não era respeitado, que eram as ‘tatuagens das oferecidas’”. E tatuagem de oferecido, não? Em português, este conceito só vem num género, o feminino. “Não, nunca tatuei nenhuma tramp stamp num homem, mas acho que os canalizadores deviam ter uma,” partilha Mariza Seita entre risos, que em nada diminuem a força desta afirmação. Em décadas de experiência, Mariza nunca desenhou uma tatuagem no fundo das costas de um homem. Mas já perdeu a conta às que desenhou em mulheres – e também às que eliminou. “Há muita gente a querer tapá-las, dizem que já não faz sentido ou porque fizeram quando eram muito novas.” Mariza Seita afirma que nunca se recusou a tatuar uma tramp stamp – até porque esse nome raramente é proferido pelos seus clientes, que pedem apenas “uma tatuagem no fundo das costas” – mas sente que é o seu papel questionar alguns dos pedidos que chegam ao seu estúdio. “Se me pedirem [para tatuar] o nome do marido no fundo das costas, se for preciso, fico duas horas – como já aconteceu – a falar com a pessoa: ‘Mas tem a certeza? Vamos fazer uma coisa mais simbólica, não vamos fazer um nome.’ Faz parte.”
Compreende-se a relutância em tatuar o nome do marido (no fundo das costas ou em qualquer outro sítio, na verdade), porém, que mal fizeram as borboletas para ser alvo do ódio de pessoas como Meghan Victoria? O seu grande, e único, pecado é a sua silhueta, que se encaixa tão bem na zona lombar que devia ser crime. “Qualquer tatuador gosta de fazer algo que seja fluído nessa zona, como em qualquer outra zona do corpo. Por exemplo, se é numa perna, tenho de fazer com que fique anatomicamente bonito, e aí acontece o mesmo”, explica Mariza Seita. Para além disso, a borboleta parece estar para a tatuagem como a t-shirt branca está para a Moda. Quando não se sabe o que escolher, escolhe-se o que é seguro, o que já se sabe que fica sempre bem. E a borboleta representa tudo isso. “É aquela coisa de ser livre, a transformação, também. Há muita gente que se identifica com esse significado da borboleta,” avança a tatuadora da Ink&Wheels. Se a borboleta é sinónimo de liberdade, porque continua a prender tantas mulheres a conceções antiquadas de género só por estar posicionada no fundo das costas? Foi ao colocar questões como esta que muitas mulheres começaram a tomar controlo da narrativa. “Sim, tenho uma tramp stamp. É das minhas tatuagens favoritas, fi-la assim que acabei a faculdade e ganhei o meu primeiro salário,” conta Rebeca Verde, que mostrou grande entusiasmo desde o primeiro momento em que foi convidada a partilhar a sua história. “Acho que talvez tenha sido uma maneira de me marcar a mim mesma como uma mulher forte, independente e sexualmente confiante. Tal como todas as minhas tatuagens, o único propósito é decorar-me a mim, ao meu corpo.” Rebeca não está sozinha, são várias as mulheres que decidem tatuar a zona inferior das costas, sem serem necessárias grandes justificações a não ser a única que importa: porque querem. “Nos últimos dez anos devo ter tatuados umas cinco [tramp stamps], mas agora está a voltar,” diz Mariza Seita, corroborando a tendência.
Face à sua crescente popularidade, as tramp stamps têm estado sob o olhar atento de diversos meios de comunicação social, tendo sido inclusive um dos assuntos de destaque de um dos episódios do The Drew Barrymore Show, em 2021. Na companhia de Dakota Johnson, a atriz anfitriã afirmou que estava na altura de encontrar um novo nome para este tipo de tatuagens, avançando algumas sugestões: “back jazz, tail art, spine design,” ou, o meu favorito, “butt crown.” São designações claramente engraçadas, que retiram o valor negativo que outrora lhes estava associado, mas até que ponto é que apagar o termo “tramp stamp” da História surtirá um efeito positivo? Nas palavras de Rebeca Verde, “acho que não podemos cortar relações com o termo, que é quase um lembrete da cultura slut-shamer que nos rodeia. Ao invés, acho até produtivo abordar o tema com seriedade e tatuando e ‘rockando' essa tattoo com a dignidade que merece, reclamando o direito que temos de ser sensuais, de expressar a nossa sensualidade e sexualidade com confiança e em segurança.” Mariza Seita concorda e acredita que o ónus da escolha deve cair sobre quem enverga a dita tatuagem: “Se eu quiser dizer orgulhosamente ‘eu tenho uma tramp stamp’, eu posso fazê-lo e não é por isso que é mau e que é errado.” Para além disso, a tatuadora explica como este é um caso invulgar, em que uma tatuagem é definida pelo seu posicionamento no corpo. “Há nomes para estilos de tatuagens, mas não há nomes para sítios de tatuagens. Se eu quiser fazer uma tatuagem no meio das sobrancelhas, não vou dizer ‘quero uma Frida [Kahlo] tattoo’. Não faz sentido.”
Escolha-se manter o nome que a trouxe ao mundo ou encontrar uma nova designação que caracterize o seu significado no século XXI, importa, acima de tudo, repensar aquilo que as tramp stamps representam atualmente. Mais do que uma tatuagem no fundo das costas, estas são tanto um símbolo da evolução dos direitos das mulheres desde os anos 90 como do caminho que ainda falta percorrer. “Para mim, apesar de ter nascido de um lugar de ódio por pessoas que se identificam com o género feminino (especialmente sex workers), este conceito não deve ser dito baixinho ou tido como um posicionamento a evitar, merece até orgulho da nossa parte. Afinal, é sobre celebrar o direito e a liberdade que temos sobre o nosso corpo e as nossas escolhas,” diz Rebeca Verde. Hoje, a especialista em comunicação sex-positive reconhece que até as mentes mais progressivas podem cair no risco de perpetuar a misoginia que nos foi ensinada. “Por exemplo, quando a minha mãe me disse que [a tramp stamp] era uma ‘tatuagem de oferecida’, ela estava a pôr limites no nosso corpo. Mesmo que de maneira inconsciente, e vindo de um lugar protetor, eu pergunto-me se não estaria exatamente a passar para mim esse machismo do qual me tentava afastar.” Já sendo, per se, sinónimo de liberdade, talvez esteja na altura de fazer da borboleta um símbolo de libertação. Voa, borboleta, voa, e não regresses até que possas pousar nas costas de uma mulher sem que esta seja julgada pelas suas escolhas.
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