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O artista de casa de banho

19 Nov 2021
By Joana Rodrigues Stumpo

Pode ser qualquer um de nós. Só o facto de se existir já é extraordinário o suficiente para justificar deixarmos uma marca no mundo. Mas não é preciso ser-se líder mundial ou um artista de renome: podemos tornar-nos memoráveis na casa de banho.

Pode ser qualquer um de nós. Só o facto de se existir já é extraordinário o suficiente para justificar deixarmos uma marca no mundo. Mas não é preciso ser-se líder mundial ou um artista de renome: podemos tornar-nos memoráveis na casa de banho.

© Getty Images
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Algures em Lisboa, talvez num restaurante em Entrecampos ou mesmo na torre principal da faculdade de Humanidades, há uma casa de banho pública que, como qualquer outra, está repleta de desenhos, frases ou só rabiscos. Desde o momento em que se entra, os azulejos nas paredes são como páginas de um caderno, mas é dentro do próprio cubículo que temos a sensação de estar dentro de algum tipo de galeria de arte. Talvez galeria seja uma ideia rebuscada demais, porque a realidade é que o conteúdo que nos rodeia não é exatamente o requinte que, por norma, se imagina numa exposição. De qualquer forma, assim que fechamos a porta atrás de nós, entramos num mundo de confissões, declarações de amor, mas também de comentários obscenos que, mesmo estando sozinhos, incutem q.b. aquela sensação de desconforto. Nessa fatídica casa de banho, pus-me a ler as inscrições como se fossem literatura e havia de tudo um pouco, mas aquela porta do cubículo era bem mais poética do que o comum WC. Naquela pequena divisão de imundice partilhada, estava escrito algo como “everyone would be better off without me” (todos estariam melhor sem mim). Um confissão tão intensa, íntima e catastrófica figurava no que seria provavelmente o local menos apropriado para fazê-la, porque pouco de belo haverá numa casa de banho para se partilhar um pensamento tão tragicamente profundo. Ou não? Talvez belo não será o adjetivo certo. Mas não se pode negar que aquele é um lugar universalmente privado, onde cada um espera sentir-se à vontade e confortável. No fundo, é um sítio destinado à intimidade. Nesta linha de raciocínio, torna-se menos estranho perceber porque é que é praticamente garantido que vamos encontrar algum tipo de confissões nestes locais públicos. E, entre elas, os rabiscos que as escondem ou as revelam, como tela para os tais artistas - de casa-de-banho ou não - que encontram aqui uma parede de exposição sem burocracias pelo meio para dar asas à sua “arte”. 

Arte. Sem aspas. Porque é mesmo possível chamar-lhe arte. Aliás, esta expressão artística tem mesmo o seu próprio nome: latrinália. Uma espécie de street art que se pode encontrar exclusivamente em latrinas públicas - uma versão mais underground desta arte urbana, na qual os artistas acabam por entrar “numa lógica comercial com menos pudor do que os praticantes de graffiti”, explica, à Vogue, Pedro Neves, investigador na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e impulsionador de arte urbana na plataforma Urban Creativity. Uma coisa é certa, latrinália é uma forma de expressão, seja ela através das palavras ou dos desenhos. Mas é arte? Para o investigador, é, claro: “o que é arte não é o processo de inscrição daqueles registos, o que é arte é o olhar de quem destaca aquela realidade”. 

A casa de banho não é totalmente alheia à criação artística, aliás, foi há mais de cem anos, em 1917, que Marcel Duchamp submeteu à Sociedade de Artistas Independentes de Nova Iorque uma obra de arte que veio revolucionar o panorama artístico: Fonte. Assim chamou ao urinol que assinou sob o pseudónimo “R. Mutt” e que já esteve em exposição em alguns dos mais influentes museus do mundo, como o MoMA, em Nova Iorque, a Tate Gallery, em Londres, e o Centre Pompidou, em Paris. Se a casa de banho vai ao museu, não poderá o museu ser na casa de banho? Coincidentemente, atribui-se a Marcel Duchamp a introdução do Dadaísmo, um movimento de anti-arte em que se desenvolvem obras de arte revolucionárias por irem contra a vanguarda e as convenções artísticas. Pedro Neves descreve o movimento, que se estende até aos dias de hoje através de formas como a latrinália, como “uma crítica ao endeusamento do processo artístico”. Isto é, tendemos, geralmente, a conceber a criação de arte como algo de transcendente e quase divino. Segundo o investigador, a intenção da anti-arte é mesmo tirá-la do seu pedestal, “fazer emparelhar arte com a vida. O que eles queriam era valorizar o processo da vida, tudo o que nos rodeia”. No caso da latrinália, parece ser precisamente isso que se quer, e consegue fazer: haverá algo mais frívolo do que uma casa de banho? Dentro deste contexto, o que se pretende é precisamente “chamar a atenção das pessoas para o facto de ser no mundano que está a obra de arte suprema”. Apesar do poder que a anti-arte pode ter na reformulação do que conhecemos enquanto arte, a verdade é que “a latrinália e outros movimentos artísticos ficaram circunscritos a um tempo, e que se extinguiu nessa reflexão, apesar de continuarem - os urinóis continuam a existir, as portas de casa de banho continuam a existir”.

Partindo do princípio que esta prática - que, à primeira vista, pode ser interpretada apenas como vandalismo - pode ser considerada uma forma de arte, talvez inserida no género de street art, chegamos à parte mais curiosa: todos os que já estudaram, em algum ponto do seu percurso académico, qualquer tipo de arte (seja ela visual, plástica ou mesmo literária) percebem que o que se procura na criação artística é nada mais do que o seu significado. É inegável que o que passa pela cabeça no momento de quem cria uma obra é, provavelmente, o aspeto mais intrigante de todo o processo de análise - no que estaria a pensar Edvard Munch quando pintou O Grito ou Albert Camus quando escreveu O Estrangeiro? Para Pedro Neves, “aqueles rabiscos expressam uma necessidade de quem estava dentro da casa de banho”. Apesar de poderem “ser consideradas arte, vandalismo ou simplesmente utilização”, mais do que uma expressão artística, as frases que se podem ler nas portas, paredes e às vezes até mesmo espelhos são “fontes de informação” de como e quem usa estes locais. Num ponto de vista mais prático, os rabiscos e desenhos “são fontes de informação valiosíssimas para quem tem a responsabilidade de criação dos próprios espaços”. Segundo o investigador, estes são “dados que podem e devem ser interpretados pelos projetistas na perspetiva de melhorar o próximo projeto”. Mas, mais importante do que serem informações que têm um valor crítico e prático, são manifestações pessoais de quem quer deixar a sua marca de uma forma ou de outra - fazendo uma confissão anónima, uma declaração de amor, uma descarga de pensamento, ou mesmo fazendo por criar desconforto em quem for afortunado o suficiente para encontrar aquele sinal. A esta expurgação de ideias ou sentimentos Pedro Neves chama “a arte de simplesmente existir, a arte de estar presente na realidade”. 

A ideia de considerar rabiscos nas portas de casas de banho públicas arte pode ser estranha, talvez mesmo absurda, mas a verdade é que há algo de especialmente íntimo no contexto de um WC, em ter um momento em que privacidade é um requisito obrigatório - e, consequentemente, somos obrigados a estar apenas com nós próprios. Mais curioso ainda é, apesar de falarmos de reflexões pessoais, que a latrinália é um movimento que existe em espaços partilhados: “não é nas casas de banho nas casas das próprias pessoas que surgem estas inscrições, é nas casas de banho onde vai existir um público, uma audiência”. Parece algo paradoxal? É uma expressão de pensamentos privados feita num local destinado mesmo a momentos deste género, mas são destinados a alguém. O investigador concorda que “é um facto que as pessoas que estão na casa de banho têm a sua privacidade no momento em que lá estão”, a questão é que nos locais públicos onde a latrinália pode ser encontrada “existem momentos de privacidade, mas um de cada vez e de muitas pessoas”. Nesta dimensão de uma expressão tão pessoal, o processo de escrever nas paredes de um cubículo “é um ato intimista no sentido em que se pode escrever o que se quiser dentro do seu interior mais obscuro, mas sabe-se que alguém o vai ler, irá ser contactado por alguém. Não é algo intimista que fazes só para ti”, como acontece com muitas das obras de Van Gogh, que só chegaram a ver a luz do dia depois da morte do pintor. No caso da latrinália, “há alguma exposição inerente ao ato de riscar uma casa de banho”, porque, escrevendo num local onde alguém irá garantidamente passar, há uma “procura pelo contacto do outro”. 

Por muito poético que tudo isto soe, é também verdade que quem já dedicou o seu tempo a, com efeito, apreciar as inscrições nas casas de banho públicas sabe que é mais provável encontrar frases e desenhos obscenos, e não um soneto - mas este tipo de achados não são impossíveis. Quando entramos num WC, temos de estar preparados para qualquer coisa: desde números de telefone a caricaturas políticas. Pedro Neves explica que a grande variedade de conteúdo de latrinália “se relaciona com a intimidade da função da própria casa de banho e com o facto de estar associada a necessidades fisiológicas”. Então, por ser um tipo de “comunicação de pessoas que lhes estão a dar vazão para com outras que vão fazer o mesmo tipo de processo”, acaba por ser “muito focado nas necessidades fisiológicas, que podem ter aspetos mais repugnantes e mais sensuais, relacionados com os órgãos sexuais”. Então, faz algum sentido que uma grande parte do conteúdo de latrinália esteja relacionado com a sexualidade, de uma forma mais grosseira ou mais delicada, porque, no fundo, a casa de banho serve exatamente para oferecer um momento de privacidade para com essa função do corpo. “Este espaço de comunicação íntima de quem escreve com o órgão genital na mão para outro que tem o órgão genital na mão é uma coisa de facto muito profunda”, admite o investigador. Mesmo que, indiretamente, a relação que se estabelece entre quem escreve e quem lê a frase escrita na porta é algo de verdadeiramente íntimo - mesmo que tudo isto seja feito de forma anónima de ambas as partes. Acuse-se quem nunca imaginou o que estaria a fazer o autor no momento em que deixou a sua marca numa casa de banho pública (se a resposta foi não, fica o desafio).

À primeira vista, este tipo de interações parecem vazias de significado, mesmo apenas formas de vandalismo que não têm qualquer valor. Mas a verdade é que a latrinália tem captado a atenção dos que estudam arte urbana e mesmo aqueles cujo trabalho é utilizar a comunicação para outros propósitos. Talvez já se tenha deparado, principalmente em bares, com sinais - sejam eles publicitários ou lúdicos - colocados estrategicamente acima ou diretamente em frente da sanita. Pedro Neves explica que “a própria latrinália deu origem à comunicação que se passa nas casas de banho e esse espaço de oportunidade já está capturado pela comunicação não artística”. Aliás, apesar desta ser uma forma de expressão que acontece natural e espontaneamente, parece que estamos a assistir à sua criação intencional. Segundo o investigador, “existe um museu de arte urbana em Berlim que, na sua própria inauguração, a casa de banho já estava recheada de conteúdos dessa natureza - autocolantes, riscos, tags”. Da mesma forma que há quem antecipe já o processo criativo, também há os que preferem acreditar que a latrinália em locais públicos é evitável - não é. Pedro Neves esclarece que “não faz sentido desenhar uma casa de banho pública de um aeroporto ou bar e esperar que as paredes fiquem imaculadas, porque não vão ficar”. Em qualquer WCpúblico, especialmente quando falamos de locais por onde passam muitas pessoas, “é uma questão de tempo até que tenham comunicação a desenvolver-se espontaneamente nesse espaço”. 

É inegável o quão inusitada toda esta dissertação parece ser - uns rabiscos feitos por um estranho qualquer numa casa de banho de um cinema ou de um restaurante não deviam ser arte, dirão alguns. Só que, no fundo são, desde que assim sejam vistos e entendidos. E, sejamos honestas, há realmente algo de profundamente íntimo na partilha de qualquer pensamento que surja nos momentos mais vulneráveis, mesmo que seja na casa de banho.

Joana Rodrigues Stumpo By Joana Rodrigues Stumpo

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