Ponham-lhe uma bola de cristal entre as mãos e chamem-lhe vidente: em 1984, George Orwell deixou a sua previsão para o futuro e esta não podia ter sido mais na mouche. Big Brother is watching you.
Ponham-lhe uma bola de cristal entre as mãos e chamem-lhe vidente: em 1984, George Orwell deixou a sua previsão para o futuro e esta não podia ter sido mais na mouche. Big Brother is watching you.
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Estamos a ser observados e há pouca margem de dúvida nesta afirmação. Já tive uma boa dose de experiências que me levam a aceitar a realidade da nossa sociedade digital contemporânea. Antes que surjam os rótulos de conspiracionista, deixem-me esclarecer que não falo de vigilância por parte do governo, ao estilo de 1984 de Orwell, falo nos dispositivos eletrónicos dos quais nos rodeamos de bom grado. O momento em que me apercebi da gravidade da situação não terá sido há mais de dois ou três anos, já eu estava bem familiarizada com a política de cookies utilizada pela maior parte das aplicações no meu smartphone, que cuidadosamente faz a curadoria de anúncios de marcas de fast fashion, bijuteria e a ocasional câmara fotográfica com que sou confrontada. Lembro-me de ter tido uma conversa acerca dos passeios que costumava dar pela Serra da Arrábida com o meu cão — um pequeno bezerro de 30 quilos de seu nome Óscar Manuel —, enquanto o meu apêndice eletrónico estava pousado em cima da mesa, com o ecrã bloqueado. Não terei falado sobre o assunto mais do que dez minutos, mas foi o suficiente para ver que, quando abri o Instagram, os anúncios que me impingiram já não eram de roupa e acessórios, mas de coleiras e trelas de cães. Uma sensação avassaladora de euforia apoderou-se de mim. Já me tinham contado histórias de telemóveis que (alegadamente) ouvem as nossas conversas, e também tinha as minhas suspeitas, mas aqui tinha, perante mim, a prova flagrante de que o meu smartphone estava a bisbilhotar. Não havia qualquer outra explicação, não tinha pesquisado nada relacionado com animais nem tinha falado sobre o assunto por mensagens. Mesmo sem partir para o extremo que é assumir a vigilância audiovisual (se bem que a este ponto já não é apenas uma assunção, mas já lá vamos), temos provas desta espionagem em algo tão simples quanto a Google: a empresa recolhe tudo o que consegue e, no fim, traça um perfil do utilizador com idade, género e gostos, disponível para consulta no site do motor de busca.
Agora, como se passa de guardar as nossas pesquisas para o ato de, miraculosamente, ativar o microfone do dispositivo a partir do qual acedemos à Internet? É difícil apontar o início desta cadeia de dominós, mas sabemos o momento em que nos abriram os olhos para esta realidade. A data era 9 de junho de 2013 e o The Guardian acabava de publicar uma entrevista a Edward Snowden, gravada em Hong Kong, em que o antigo trabalhador da NSA (National Security Agency, nos Estados Unidos) revelava que a instituição estatal recolhia dados da população norte-americana através das suas comunicações, entenda-se mensagens e chamadas, fossem em texto, vídeo ou áudio. Segundo o analista, o propósito do governo sempre foi o de neutralizar ameaças à segurança nacional, mas o meio para este fim passava pela vigilância generalizada. O maior medo de Snowden, que está exilado na Rússia desde 2013, era que nada mudasse. Desde a estrondosa revelação, houve algumas mudanças, como a crescente transparência das variadas políticas de recolha de dados, mas, no que toca à preservação da privacidade, pouco ou nenhum progresso foi feito. A tendência parece ser retirar essa responsabilidade das mãos das empresas e colocá-la nas dos consumidores que, agora mais informados, devem tomar a decisão de aceitar as condições de uso ou recusar e não poder utilizar uma aplicação de todo. É o caso do Instagram, que em dezembro de 2020 atualizou a sua política de dados para informar da recolha de informação “do conteúdo que forneces através da nossa funcionalidade de câmara ou das definições do teu inventário da câmara, ou através das nossas funcionalidades ativadas por voz.” Apesar de não ficar claro, o que isto parece querer dizer é que estamos a viver numa espécie de “panótico digital” em que a observação incessante é a regra — uma versão tecnológica e fragmentada do conceito formulado por Jeremy Bentham. O filósofo concebeu, no final do século XVIII, a fórmula que garantia vigilância constante num contexto prisional: o “panótico original” é uma estrutura arquitetónica em forma circular com uma torre no centro. Neste estabelecimento, as celas dos prisioneiros estão espalhadas pelas paredes circulares e, na torre central, está o posto de guarda, com visão periférica de todas as celas. Segundo Bentham, a ideia é que os prisioneiros não possam ver o guarda, estando, assim, com medo de estarem a ser vistos, garantindo bom comportamento. Portanto, mesmo que não estejam, de facto, a ser vigiados, os detidos cumprem as regras, coagidos pela sensação de estarem a ser observados.
Nos dias que correm, dificilmente se conseguiria materializar este conceito, mas a verdade é que o estamos a viver de uma forma um pouco diferente. Em vez de estar centralizada, esta autoridade vigilante está fragmentada, espalhada não só pelos dispositivos eletrónicos que usamos no dia a dia, mas nas lojas, nos restaurantes, nas ruas e, em vez de nos sentirmos ameaçados, somos submissos e, de certa forma, desejamos esta observação omnipresente. A lógica é convincente: vou ser bombardeada com anúncios nas redes sociais, por isso mais vale deixar-me ser analisada e ter conteúdo feito à minha medida. O problema deste panótico digital é que passa por muito mais do que recolher e armazenar as nossas pesquisas pela Internet, a questão mais assombrosa é que todos os dispositivos que nos facilitam a vida de certa forma têm esse catch. E, vendo bem, é raro o aparelho que não trata dados como a moeda mais valiosa do mercado: utilizamos aplicações que registam os nossos padrões de sono, smartbands que armazenam os nossos valores vitais, inteligências artificiais que têm acesso às colunas e aos candeeiros da nossa casa, sacos de boxe eletrónicos que ajustam a intensidade do treino com base na nossa força física e até vibradores que armazenam numa app todas as sessões de masturbação. Pondo as coisas desta forma, até se torna desagradável — e algo repugnante — a ideia de ter informação tão íntima registada algures na Internet, mas o facto é que esta autoridade omnisciente e omnipresente tem benefícios dos quais muitos de nós não estamos dispostos a abdicar. Afinal, desbloquear o telemóvel com a impressão digital ou com o rosto é um facilitismo imprescindível, mesmo que isso signifique que a Apple nos conheça melhor do que nós próprios. É praticamente um dado adquirido que milhares destas pequenas empresas nos estão a vigiar através de telemóveis, computadores e equipamentos smart. Já no que diz respeito a instituições governamentais, é bastante mais difícil encontrar provas da existência de um panótico — salvo a exceção da CCTV. Embora sejam câmaras de segurança, muitas vezes privadas, de lojas, escritórios ou até mesmo instaladas à entrada de edifícios residenciais, sabemos que o Estado facilmente tem acesso a estas filmagens para propósitos judiciais. Ainda que as gravações não sejam todas entregues a uma entidade estatal, o facto é que, somando todas as câmaras de CCTV, a probabilidade é que estejamos a ser filmados a praticamente toda a hora. O único lugar onde nos podemos afastar da lente é no conforto do nosso lar e, ainda assim, há quem tenha esta vigilância mesmo dentro de casa.
Os circuitos fechados também têm as suas vantagens — logo à partida, é graças a câmaras de vigilância que o YouTube está repleto de compilações de apanhados, quedas engraçadas e fails. No que toca à nossa segurança, a CCTV tem o potencial para fazer a diferença no sistema judicial (num mundo ideal em que a burocracia seria diminuída significativamente). Quando utilizadas em tribunal, estas filmagens têm o poder de ilibar ou condenar alguém e um estudo feito em 2019 comprova a influência destas provas: segundo os investigadores Anthony Morgan e Christopher Dowling, na Austrália os casos em que a CCTV é requerida e utilizada em tribunal têm substancialmente mais probabilidades de ser resolvidos. Aliás, a câmara de vigilância de um autocarro foi crucial para encontrar Sarah Everard, a jovem inglesa que foi violada e morta por um agente da polícia em março de 2021. Seja a nível macro (para a segurança generalizada) ou micro (nos pequenos facilitismos do dia a dia) a vigilância constante tem os seus benefícios. Pronto, somos capazes de ver o lado bom do tal panótico digital, mas nos últimos anos temos assistido à transformação deste paradigma que, para além de condicionar a nossa privacidade, foi adaptado para se tornar numa fonte de entretenimento. Pensemos em tudo o que seja reality TV, Big Brother e as suas variantes: um grupo de pessoas fecha-se numa casa durante meses e há um canal na televisão onde podemos acompanhar tudo o que acontece lá dentro através de câmaras de vigilância. E o facto é que este é um tipo de conteúdo que muitas pessoas fazem questão de acompanhar — a estreia da nova temporada da edição portuguesa do Big Brother, no passado dia 11 de setembro, terá sido acompanhada por mais de um milhão de espectadores. Até a própria ficção já faz paródias desta metarrealidade, em que nós, pessoas reais, assistimos a personagens ficcionais a assistir a outra personagem ficcional, cuja vida é transmitida 24 horas por dia através de câmaras em tudo e mais alguma coisa (falamos de The Truman Show, a comédia que não deixa de nos alertar para esta situação altamente realista e realizável). Num mundo em que somos todos Truman Burbank de uma forma ou de outra, não devíamos nós, também, querer sair do set de filmagens? Talvez não. Não temos nada a esconder e, pessoalmente, não me sinto pronta para voltar à idade arcaica pré-aplicações em que tinha de apontar, numa agenda em papel, quando me aparecia o período.
Texto originalmente publicado na The Butterfly Effect Issue da Vogue Portugal, disponível aqui.
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