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O mundo não acabará à gargalhada

25 Oct 2021
By Nuno Miguel Dias

Estudo revela que a nossa civilização acabará às turras. Às ofensas verbais no trânsito. Às discussões nas reuniões de condomínio. De qualquer forma que não seja num abraço colectivo, desejando que nos encontremos “no outro lado” para prosseguirmos com a pândega.

Estudo revela que a nossa civilização acabará às turras. Às ofensas verbais no trânsito. Às discussões nas reuniões de condomínio. De qualquer forma que não seja num abraço colectivo, desejando que nos encontremos “no outro lado” para prosseguirmos com a pândega.

Quando “tudo isto” acabar, vai ser terrível. Acho que este é um ponto em que conseguimos concordar todos. Gritos, explosões, enormes bolas de luz? Não sei. Desconheço, também, qual das pragas nos afetará. Só sei que já tarda, porque se isto não anda igualzinho a Sodoma e Gomorra, então Sodoma e Gomorra eram um enfado. Se quando “O Fim” chegar for algo de remotamente parecido com as profecias antigas, escritas na Tora judaica e, mais tarde, transcritas do hebreu para o grego (e depois para o latim), por forma a ser incluída na Bíblia como Antigo Testamento, escolho a praga de gafanhotos. É a minha preferida. Deve fazer um efeito lindo. Algo muito próximo de Os Pássaros, do mestre Hitchcock, mas com um enquadramento não tão bom. Imagino sempre aquela malta que tem medo de baratas ou besouros a deparar-se, aos gritos histéricos, com um inseto que consegue atingir uns significativos 10cm de comprimento, aos milhões, a emaranharem-se nos cabelos, a entrarem pela t-shirt, a pousarem naquela parte das pernas que os calções ou a saia não cobrem. Depois, muitos anos depois, talvez uns mil, a civilização que vier a seguir não vai encontrar, como em Pompeia, mumificada pelas cinzas vulcânicas, gente que se abraçava ou que fazia “conchinha” no leito, um testemunho de quem decidiu unir-se na partida para que, no futuro, arqueólogos, turistas de passagem por Nápoles e o mundo inteiro soubessem que o amor já existia e não foi invenção de Hollywood. Eu posso aventar como serão as “estátuas humanas”, petrificadas por um armageddon qualquer, que serão encontradas, testemunhando a vida que levamos hoje. Haverá alguém sentado num banco de jardim para apanhar o WiFi de um apartamento que se esqueceu de codificar a password. Um homem no sofá a assistir àqueles programas em que três ou quatro indivíduos com a formação de um pastor da transumância discutem futebol. Outro homem numa poltrona ainda agarrado ao telemóvel onde estava a ver o Backroom Casting Couch (presume-se). Uma fila de Zé Tunnings no MacDrive, em Hondas Civic Type R e Seat Ibizas com bufadeira. Um skinhead com um cartaz onde ainda se lê “Portugal Não É Racista”. E muitos, muitos meninos sentados no chão do quarto a olhar para a TV, ainda com os comandos da Playstation na mão.

“Estranhos tempos, estes em que vivemos” é a frase mais transversal. Está em todos os tempos, na boca de todas as gerações. Normalmente, proferimo-la quando já temos 40 e tal anos. Quando passarmos a marca dos 50, a frase muda ligeiramente, querendo porém dizer o mesmo: “No nosso tempo é que era”. Aí está a base do Generation Gap, ou Conflito de Gerações, numa tradução paupérrima, mas habitual. Confundimos a falta de paciência para certas e determinadas atividades, porque estamos inegavelmente velhos, com nostalgia em relação ao tempo em que não havia redes sociais, mas socializávamos, por exemplo: “Marcávamos encontros com amigos pelo telefone fixo à hora X no sítio Y e, sem telemóveis para fazer a ridícula pergunta ‘onde estás?’, lá estavam eles” é, mais detalhe menos detalhe, a mais corriqueira conversa de quem já está a resvalar para a meia-idade. Sim, hoje em dia, os adolescentes socializam pelas redes. Mais no Whatsapp e no Instagram. Os miúdos mais pequenos são os reis do TikTok. E nós, que tanto os criticamos, somos os reis das selfies com amigos, pratos que comemos, o pão que fazemos e as férias que tiramos no Instagram, quais influencers de vão de escada. Já perguntaram aos putos o que é que eles acham das figuras que fazemos quando as publicamos? Já lhes disseram  que estão no Tinder e analisaram a sua expressão facial? Para já não falar no Facebook onde, convenhamos, toda a gente destila ódios, entrando em discussões ridículas sobre assuntos de que ninguém quer saber e que nunca teria se estivesse frente a frente com o “adversário”, numa mesa de jantar, o que insistimos em dizer que é a forma preferencial de interação social, embora o façamos cada vez menos. Há quem tenha perdido amizades de uma vida, há quem tenha feito amigos que não o são, há quem acabe relações porque o namorado comenta todas as publicações “daquela porca que está sempre a mostrar as mamas nas fotos de perfil”.

Mas afinal quem é que é o fedelho aqui? Socializamos cada vez menos, fechamo-nos cada vez mais na nossa concha, aceitamos cada vez menos a opinião contrária e, naturalmente, andamos irascíveis e temperamentais. Como é que chegámos aqui? Não sei responder. Mas sei que as redes sociais estão metidas ao barulho. Foram a invenção do séc. XXI, não há dúvida. Mas todos estes presentes vêm envenenados! Já a TV era tão prejudicial (mesmo a preto e branco) que eram precisos aqueles filtros a cobrir o ecrã, presos no tampo por uma sevilhana de plástico e um naperom. Os ecrãs dos computadores também deram origem a um aumento exponencial de consultas oftalmológicas. Depois vieram os telemóveis e foi um ver-se-te-avias em radiações diretamente no cérebro, do lobo frontal ao bolbo raquidiano. Mas nesse tempo havia, pelo menos, humor. O Ti Herman ofendia os mais puritanos porque fez a sua adaptação d’O Império dos Sentidos no seu programa de Passagem de Ano, com a frase “Ai ele é isso? Então vou já dar uma à velha”? Ninguém queria saber. O mesmo humorista decidia que, na última emissão do concurso Roda da Sorte, devia disparar tiros de caçadeira sobre os prémios em jogo? Disparava! Porquê? Porque podia. Mesmo já depois de ter visto cancelado um programa em horário nobre pelo Conselho de Administração da RTP devido às Entrevistas Históricas. Hoje, somos nós os Conselhos de Administração Social. Munimo-nos da nossa opinião, que achamos inviolável, damo-la nas redes sociais, sem ninguém no-la ter pedido, como se fôssemos doutorados em todos os assuntos ditos polémicos, e defendemo-la com unhas e dentes a ponto de fazermos uma figura que, há poucos anos, e muito menos maduros, não ousaríamos. Leia-se os comentários a notícias nas páginas de Facebook dos principais jornais e pasme-se com tanta pataquada. Se alguém ousa uma piada sobre qualquer assunto, surgem logo os mórmons da Cedofeita, os Adventistas do Sétimo Dia com Prisão de Ventre, os Síndromes Pré-Menstruais, as chamadas Virgens Ofendidas, mas com o rompimento do hímen alheio. E, no entanto, os miúdos olham, lá do alto dos seus memes que só eles entendem. Sabem porquê? Porque são de um refinamento que nós nos recusámos a acompanhar. Não estagnámos. Regredimos. Tanto!

No passado dia 14 de setembro, morreu Norm Macdonald, com apenas 61 anos. De cancro, claro. Com que tantas vezes brincou. Sim, era o mestre do humor cáustico. Canadiano de berço, fez carreira no stand up, desempenhou alguns papéis menores no cinema, escreveu argumentos de algumas grandes comédias, mas tornou-se memorável como pivô do Weekend Update, o sketch há mais tempo no ar inserido no programa Saturday Night Live da SNL, que parodia as notícias da respetiva semana. Norm fê-lo, como ninguém, de 1994 a 1997 e ficou conhecido como “o único que fez daquilo uma coisa engraçada” por todos os colegas. A que custo? “Só agora saiu uma notícia que garante que, certa vez, Madonna espalhou manteiga de amendoim sobre o corpo deJFK Jr e depois a lambeu. O que serve apenas para mostrar que Madonna é uma puta.” É só um exemplo. Sobre a mesma: “Queremos dar os parabéns à Madonna, que deu à luz uma lindíssima menina na segunda-feira passada. A bebé pesava 3kg, o que faz dela o quarto maior objecto a passar pelo canal reprodutor da cantora”. Tudo isto em horário nobre. Já imaginaram? Mas não se pense que Madonna, que era intocável nos anos 90, era o único alvo: “Este fim de semana, Michael Jackson casou pela segunda vez numa cerimónia secreta na Austrália. Interrogado sobre o que faz desta noiva uma mulher tão especial, o Rei da Pop exclamou ‘ela ensinou-me o poder da imaginação’, como imaginar que uma mulher adulta é um miúdo de dez anos” ou “Michael Jackson diz que não se importa que o filho que está para nascer seja rapaz ou rapariga. Desde que seja rapaz. Diz também que se for menina vai chamar-lhe Sharon e se for menino vai ter sexo com ele”, são só dois exemplos de entre tantos que servem para mostrar quão ácido Norman podia ser. E era-o sempre com aquele sorriso da criança que sabe muito bem quais as consequências dos seus atos. Só que eram os anos 90. Ninguém despedaçava um humorista numa rede social qualquer no dia seguinte, a ponto de se tornal viral e, por fim, ditar o fim de uma carreira. Mas não nos fiquemos por aqui: “Estudo recente diz que 56% dos acidentes automóveis de menor dimensão são causados por mulheres e que 75% das colisões fatais são causadas por homens. Não acreditem nas percentagens aqui mostradas, porque o cálculo foi feito por uma mulher. E se acham esta piada ofensiva saibam que foi escrita por uma mulher. Estou a brincar. Nós não empregamos mulheres”... Sim, a vida do homem acabaria aqui, sob acusações de machismo e misoginia. Não era nada disso que se passava. Norm “só” atirava em todas as direções, desde que soubesse que ia aleijar: “No seu livro, O.J. Simpson diz que teria morrido pela sua esposa Nicole. É mesmo azar, quando o único homem que a salvaria afinal a mata” ou “estive a ver uma prova de patinagem e não acredito que haja fatos mais apertados do que aqueles. Reparei numa atleta alemã na qual se podia ver todo o contorno do seu pénis”. Em 1997, Norm Macdonald foi despedido por, alegadamente, “não ter piada”. Em 2007, foi convidado para ser o apresentador principal de Saturday Night Live. Recusou. E falou sobre isso: “Se eu não tinha piada e agora já tenho, algo se passa. Uma pessoa não aprende a ter piada em apenas 10 anos. Continuo a não ter piada. O Saturday Night Live é que está uma merda”.

Em Portugal, Rui Sinel de Cordes foi obrigado a sair das redes sociais. Incrivelmente, o Portugal do séc. XXI provou ser, pelo menos nas redes sociais, um poço de fel fermentado a odiozinhos de estimação baseados em princípios que eram só asquerosos. O homem foi enxovalhado de uma forma tão vil como não conseguiram os autores de tantos autos ou cantigas de escárnio e mal dizer na Idade Média. Não quer dizer que seja um humor fácil. É preciso ter algum estofo para conseguir ouvir piadas do tipo roast sem sentirmos vergonha alheia pelos seus alvos. Como quando o compositor e pianista Bernardo Sassetti, cuja morte, em 2012, chocou Portugal, serviu para, em 2015, Rui Sinel de Cordes fazer uma série de espetáculos no Teatro Villaret intitulados Isto Era Para Ser Com o Sassetti. Pede-se a quem tenha um sensibilidade mais susceptível de ser magoada que não leia as seguintes linhas... “Nos últimos tempos, a minha sobrinha de 12 anos tem vindo passar o dia todo comigo a minha casa. Sempre que vem, passa o dia inteiro a chorar. A pergunta que eu faço é a seguinte: será que o meu esperma sabe assim tão mal?” ou “A Alemanha foi eleita o país com maior capacidade hoteleira da Europa. Não me espanta. Basta olharmos para a história para percebermos que a Alemanha tem experiência em meter muita gente em espaços apertados” ou ainda “o São Bernardo é um cão que tinha tudo para se dar bem numa tuna académica. São gordos, andam sempre com um barril de álcool atrás e sabem nadar”, a propósito dos estudantes que morreram numa praia do Meco. Por vezes, consegue chegar a um ponto onde poucos ousam sequer aproximar-se: “Não percebo porque é que há pessoas que gastam tanto dinheiro em prostitutas. Se eu quiser pagar para ter sexo, prefiro dar dinheiro a quem dou sempre. Ao segurança da morgue”, e normalmente fá-lo sobre um assunto que é o do dia: “A mãe de Renato Seabra diz que o seu filho seria incapaz de estrangular Carlos Castro. Ora aqui está algo que a minha mãe nunca diria sobre mim”. Sinel de Cordes não tem, como Norm Macdonald (Madonna, Michael Jackson e O.J. Simpson) alvos preferidos. Atira em todas as direcções, preferencialmente com piadas curtíssimas: “Quando o ex-futebolista Calado se casar, os convidados comem presunto com o quê?”, “na Somália, o que é que diz o horóscopo na parte Saúde, Amor e Dinheiro?”, “se a eutanásia não é legal em Portugal, como é que se explica o Natal dos Hospitais?” ou ainda “se eu fosse pedófilo, comia a Vanessa Fernandes, aquela do triatlo. Não dá prisão e não deixa de ser um corpo de um rapazinho de 14 anos”. Sem redes sociais, é extremamente difícil seguir o rasto dos espetáculos que Rui Sinel de Cordes leva por Portugal afora. Mas vale a pena estar atento, porque faria muito bem a este país abrir um pouco as mentalidades e ser mais recetivo ao humor cáustico. Mesmo que no dia seguinte vá toda a gente para as redes sociais chorar porque o homem falou de cancro, de pedófilos e de necrofilia.

Afinal, é como os avisos que Ricky Gervais faz à plateia nas cerimónias dos Globos de Ouro, transmitidas pela NBC, que costuma apresentar a convite da Hollywood Press Association (sabe-se lá porquê): “São só piadas, não quero saber”. Ora aí está um homem dotado de uma sensibilidade incomum. Incansável lutador pelos Direitos dos Animais e autor de séries (e filmes) tão engraçadas como profundamente enternecedoras, capazes de nos fazer ir, em apenas 30 segundos, da gargalhada ao choro compulsivo e de beiço trémulo, como After Life e o inacreditavelmente belo Derek, consegue ter a incomum coragem de olhar nos olhos dos maiores atores do mundo e ofendê-los ali do alto do seu palanque. Fazer críticas extremamente incisivas à organização. E àquele mundo que é de uma hipocrisia que só ele sabe apontar de forma tão acutilante. Incrivelmente, voltou a ser convidado para ser o apresentador da cerimónia. Ao todo, cinco vezes. Na última, e porque o era, avisou que se estava perfeitamente a borrifar para o que resultasse das suas piadas. Para quem desconhece o estilo de Ricky Gervais, sempre acompanhado do seu pint o’ beer e um sotaque britânico do melhor, fica aqui uma pequena lista, por cerimónia de entrega dos Globos de Ouro. Na 67.a Cerimónia, em 2009: “Ver todas estas caras aqui lembra-me de todos os grandes trabalhos que foram feitos este ano... por cirurgiões plásticos”; “se há alguma coisa que não pode ser comprada, é um Globo de Ouro. Oficialmente”; “a cerimónia dos Globos de Ouro é exibida em todo o mundo. Não olha a raças ou credos. Não celebra só o talento, celebra a diferença. Esmaga o preconceito e o estereótipo. Um estereótipo que eu odeio é aquele que diz que todos os irlandeses são bêbados, praguejadores e truculentos. Por favor deem as boas-vinda a Colin Farrell”. No ano seguinte, o discurso de entrada ficou célebre, principalmente porque depois da sua primeira apresentação, no ano anterior, o mundo inteiro estava de olhos postos no ecrã: “Bem-vindos à 68.a Edição dos Globos de Ouro, vai ser uma noite de festa rija e muita bebida ou, como Charlie Sheen lhe chama, pequeno-almoço. Foi um belo ano para o cinema 3D, excepto O Turista. E eu sinto-me mal por esta piada porque nem sequer vi O Turista. Quem o viu, na verdade? Também quero negar o rumor de que a única razão pela qual foi nomeado foi para que a Hollywood Foreign Press pudesse andar por LA com o Johnny Depp e a Angelina Jolie. Isso é um disparate. Também aceitaram subornos. Na verdade, aquilo que aconteceu foi que foram convidados para ver um concerto da Cher. Como é que isso é um suborno: ‘Olá, queres ir a um concerto da Cher?’, ‘Não’, ‘Porquê?’, ‘Porque estamos em 1975’. Mas também há grandes filmes que não foram nomeados... Nada para O Sexo e a Cidade 2? Eu acho que deveria haver um prémio para efeitos especiais. Os meus parabéns a quem tratou o cartaz em Photoshop. Meninas, nós sabemos a vossa idade real. Eu vi uma de vocês num episódio do Bonanza. Também não há nenhuma nomeação para Eu Amo-te Phillip Morris. Dois ato- res heterossexuais, Ewan MacGregor e Jim Carrey, fingindo que são gays. O que é o oposto de um certo Cientologista. O próximo convidado é conhecido pelas suas atuações em Hudson Hawk, Olha Quem Fala e O Quinto Elemento. Por favor deem as boas-vindas ao padrasto de Ashton Kutcher, Bruce Willis” (...) “A próxima convidada, Eva Longoria, teve a difícil tarefa de apresentar o Presidente da Hollywood Foreign Press. Isso não é nada. Eu estive mesmo agora a ajudá-lo a erguer-se da retrete e encaixar-lhe a dentadura”. Sim, foi este o nível numa cerimónia que acabou com: “Obrigado a todos aqui, lá em casa, obrigado à NBC, obrigado à Hollywood Foreign Press pelo convite e obrigado a Deus, por me ter feito ateu”.

Na 69.a Edição, a frase mais incrível foi: “Para quem não sabe, os Globos de Ouro são iguais aos Óscares, mas sem toda aquela... Estima. Os Globos de Ouro estão para os Óscares como a Kim Kardashian está para Kate Middleton. Um pouco mais barulhenta, um pouco mais histérica, um pouco mais bêbada, e mais facilmente comprada”, e, como achou que talvez tivesse sido uma apresentação mais “fraquinha”, apresenta-se, depois de um hiato, na 73ª Edição com isto: “Vocês são todas ricas celebridades, são estrelas globais com um talento incrível, a maioria de vós, outros só se casaram com a pessoa certa, vocês sabem quem são. Este ano vou ser simpático porque o presidente da Hollywood Foreign Press acabou de me dizer que se eu disser algo ofensivo, vem ao palco e tira-me pessoal- mente daqui. É uma oferta que eu não podia recusar. Sim, é esse o nível em que estamos. Um velhote a tirar-me daqui. Outra vez. Foram feitos muitos remakes com atrizes, Ghostbusters, Oceans Eleven, o que é óptimo para a indústria, já que garantem os lucros pagando-lhes metade do cachet. Calem-se, eu não quero saber. Se ganharem esta noite, lembrem-se, ninguém quer saber desse prémio tanto como vocês. Não se emocionem muito. É embaraçoso. Esse prémio é, sem ofensa, inútil. É um bocado de metal que um jornalista idoso e confuso quis dar-vos pessoalmente para poder conhecer-vos e tirar uma selfie. Eu tenho três. Um serve para a porta não fechar, o outro é para agredir ladrões e outro guardo na cabeceira não sei bem porquê, mas não interessa porque é meu. Ganhei-o justamente e tem a forma e o tamanho perfeitos. Por isso, se dúvidas houvesse, esta piada era sobre enfiar Globos de Ouro no cu. E pediram-me para ser o apresentador disto quatro vezes”.

Por fim, a 77.a Edição: “Ficarão felizes por saber que é a última vez que serei o anfitrião desta cerimónia. Por isso, já não quero mesmo saber. Estou a brincar. Eu nunca quis saber. Kevin Hart foi despedido pelos Óscares por ter feito uns tweets ofensivos. Sorte a minha, a Hollywood Foreign Press quase não consegue falar inglês. Estão aqui todos os grandes, Al Pacino, Robert De Niro, o Baby Yoda, ah esperem, é o Joe Pesci. Já ninguém quer saber de cinema, já ninguém vai ao cinema, toda a gente quer Netflix. Todos os grandes atores passaram para a Netflix, porque em cinema está tudo a fazer filmes de fantasia e a usar capas. O trabalho deles já não é representar, é vestir fatos cintilantes, ir ao ginásio duas vezes por dia e tomar esteróides. Martin Scorsese, o maior realizador vivo, foi notícia com os seus comentários controversos sobre os filmes da Marvel. Disse que não são cinema e lembram-lhe parques temáticos. Eu concordo. Embora não saiba o que é que ele anda a fazer em parques temáticos porque não tem altura suficiente para as montanhas russas. O Irishman foi um filme fantástico. Longo, mas fantástico. Não é o único. O Era Uma Vez em Hollywood teve quase 3 horas. Leonardo DiCaprio foi à estreia e, quando o filme acabou, o seu par era demasiado velha para ele. O mundo pode ver o James Cordon como um mariquinhas gordo (fat pussy) e também entrou no filme Cats. O que vale é que ninguém viu. Li críticas horríveis. Mas depois a Judi Dench defendeu o filme dizendo que aquele foi o papel que nasceu para desempenhar. Porque (risos e um “não posso fazer esta próxima piada”), não há coisa que adore mais que deitar-se na carpete, levantar a perna e lamber a própria pussy.” (...) “As companhias para as quais vocês trabalham, meu Deus, Apple, Amazon, Disney, se o ISIS começasse um serviço de streaming, vocês ligavam ao vosso agente, não era? Por isso, se ganharem um prémio hoje, não o usem para fazer um discurso político. Vocês não estão em posição de dar um sermão ao público sobre nada. Vocês não sabem nada do mundo real. A maioria de vocês passaram menos tempo na escola que a Greta Thunberg. Por isso, se ganharem, venham até aqui, aceitem o prémio, agradeçam ao vosso agente e ao vosso Deus e raspem-se daqui. Isto já dura tempo suficiente”.

Não querendo incorrer em grandes exageros, são precisamente este tipo de pessoas que são os verdadeiros heróis. Não há nada que faça mais pela nossa liberdade como o humor. E tempos houve em que eram as ditaduras que, através da censura, o limitavam. Nunca pensei que fosse vivo para ver sermos nós, como sociedade, a movermo-nos a ódio para o matar.

 

Artigo originalmente publicado na edição de outubro de 2021 da Vogue Portugal.

 

 

Nuno Miguel Dias By Nuno Miguel Dias

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