A criatividade não tem limites, mas há quem se sinta com autoridade para impô-los. Interpretações erróneas e condicionadas pelos ditames de cada época, por exemplo, baniram quadros, esculturas e performances que hoje são masterpieces. A proibição das seguintes obras mostra que, por vezes, quando a censura é grande, o público desconfia… que essas obras valem mesmo a pena.
A criatividade não tem limites, mas há quem se sinta com autoridade para impô-los. Interpretações erróneas e condicionadas pelos ditames de cada época, por exemplo, baniram quadros, esculturas e performances que hoje são masterpieces. A proibição das seguintes obras mostra que, por vezes, quando a censura é grande, o público desconfia… que essas obras valem mesmo a pena.
Há aquela frase quasi-meme que diz “the earth without art is just eh”, o que, em tradução livre, será algo como “a Terra sem arte é meh”. Uma verdade que para alguns parece absolu-ta, para outros relativa: é que ao longo dos anos - e ainda nos tempos modernos, há quem cite creative diferences no que diz respeito a considerar algumas obras como artísticas. “Blasfémia”, “chocante”, “pornográfico” onde, por vezes (outras, nem por isso), deveria estar “maravilhoso”, “brilhante”, “obra de arte”. Controversas é dizer pouco para peças que durante anos foram (ou, ainda, são) escondidas, malditas, proibidas. Mas quis a história que parte da infâmia resultasse na sua incontornável fama e, algumas, provavelmente nem desconfia que outrora foram incompreendidas e rotuladas de chocantes.
Como esta que vê na imagem acima: O Dia do Juízo Final(1535-1541), do renascentista Michelangelo, é um fresco na parede do altar da Capela Sistina e representa o Juízo Final na narrativa bíblica, mais concretamente a segunda vinda de Cristo e o julgamento final de Deus sobre toda a Humanidade. O pintor trabalhou nisto 25 anos depois de completar o teto da Capela. Mal sabia o falatório que geraria: a sua interpretação foi imediatamente reprovada pela Igreja Católica, que se insurgiu contra a pintura por inúmeras razões, como, por exemplo, o facto de o artista ter representado Jesus sem barba e ao estilo da mitologia pagã, mas também porque - o horror! - o quadro tinha cerca de 300 indivíduos ao longo da tela, a maioria homens, a maioria nu. Como poderia haver tanta nudez em solo sagrado? Não podia. Foi por isso que, em consequência, alguns pedaços de tecido e vegetação foram pintados sobre a genitália ofensiva (e, séculos mais tarde, removida, como parte de uma recuperação, no século XX). E nós que pensávamos que o free the nipple era um preciosismo do século XXI… As páginas seguintes, com outras obras igualmente questionadas, mostram que muitas vezes não, o problema já vem de longe.
A Origem do Mundo, Gustave Courbet, 1866
Um olhar sobre A Origem do Mundo (1866), de Gustave Courbet, e quase que até conseguimos imaginar o alerta escrito a pena num pergaminho: “A sua obra foi removida porque viola as leis da comunidade.” Se acharíamos estranho isso acontecer em 2021, mais óbvio parece o porquê de ter acontecido no sécuo XIX. Numa época (só alegadamente) mais puritana do que a que vivemos, a pintura é voluntariamente provocadora, mostrando um grande plano da vagina e ventre de uma mulher, num close up que podia ser considerado pornográfico - até para os standards de hoje. Aliás, foi: a policia francesa baniu um romance que usava uma reprodução do quadro como capa e, em 2011, o Facebook censurou a obra, removendo ou bloqueando contas que partilhassem a imagem do quadro. Mas o seu intuito não era pornográfico, apenas a reprodução d'"a origem do mundo”, numa pintura tida como fiel ao Realismo.
Les Demoiselles d’Avignon, Pablo Picasso, 1907
O homem que vemos nesta imagem é Pablo Picasso e, ao fundo, está uma obra que tem tanto de emblemática como de controversa. E seria assim, como pano de fundo e não sob os holofotes, que muitos preferiam ver Les Demoiselles d’Avignon (1907), uma peça cubista, do pintor espanhol, que ilustra cinco prostitutas e, no título, refere ainda uma rua em Barcelona famosa pelo seu bordel. O quadro foi mal recebido, mesmo pelos amigos do artista, não só pelas protagonistas e pela nudez, mas também pelo seu estilo, e pelo modo como as ilustrava de maneira angular, geométrica e deformada. Há gente muito quadrada.
Fountain, Marcel Duchamp, 1917
Quando a sua sanita é recusada por um “clube” que aceita virtualmente qualquer um, não se pode deixar de pensar que a nossa carreira foi por água abaixo. Mas não no caso de Marcel Duchamp: Fountain (1917), o urinol em porcelana que submeteu, de forma anónima (assinou simplesmente como “R. Mutt 1917”), como uma escultura acabada, à consideração da Society of Independent Artists, conhecida por dizer que sim a tudo desde que se pague o fee - e da qual Duchamp era co-fundador e membro da administração -, acabou por ser recusado pela mesma. Bom, na verdade, foi aceite (afinal, todas as obras eram, de facto, aceites, mediante pagamento de inscrição), mas nunca chegou a ser exposta. Houve quem achasse que era simplesmente uma partida; houve também quem - o jornal dadaísta The Blind Man, por exemplo -, pelo contrário, rotulasse a obra como arte porque o artista assim o tinha entendido. O seu impacto foi muito maior que a sua recusa e a controvérsia: desencadeou um diálogo até à atualidade sobre o que é, de facto, uma obra de arte. Não é à toa que, em dezembro de 2004, foi considerada a artwork mais influente do século XX por 500 profissionais do meio (à frente deLes Demoiselles d’Avignon, de Picasso, e Marilyn Diptych, de Warhol).
The Guitar Lesson, Balthus, 1934
Uma mulher a “tocar guitarra” numa menina é o que parece - ou ilustra - The Guitar Lesson (1934), de Balthus. A guitarra em si está inanimada no chão, enquanto esta professora de música agarra no cabelo da sua estudante menor e toca a jovem, deitada sobre o seu colo, semi-nua. A mão da mulher como se estivesse a tocar as cordas de uma guitarra recai perigosamente perto da vagina da criança, num quadro que alude à pedofilia. A obra foi de tal forma contestada quando foi exposta, enquanto parte do primeiro show do artista, em Paris, que foi saltitando de museu em museu sem nunca ter sido exibida, desde 1977 até hoje. Nunca ninguém se atreveu a fazê-lo - e percebe-se o porquê. Mas muitos continuam a contar a sua história, algo do desagrado de Balthus, que sempre defendeu que as suas obras eram para ser vistas e não alvo de análise. Afinal, quando a Tate fez uma retrospetiva do seu trabalho e lhe pediu uma nota biográfica, esta foi a sua resposta: “Sem detalhes biográficos. Início: Balthus é um pintor sobre quem nada se conhece. Vejamos, então, as pinturas. Cumprimentos. B.”
Erased de Kooning Drawing, Robert Rauschenberg, 1953
Sabe aquele episódio do Banksy e do quadro dele que foi destruído logo após ser leiloado? Esta história é igualmente caricata. Para Robert Rauschenberg, o seu Erased de Kooning Drawing (1953) era uma obra de arte brilhante, ainda que totalmente apagada. O artista tinha apenas 27 anos quando chegou à porta do abstracionista Willem de Kooning (na altura, no auge da sua carreira), com uma garrafa de Jack Daniel’s na mão - talvez para aquela dose de coragem líquida -, e lhe pediu que cedesse um desenho seu (nada de estapafúrdio, era comum artistas contemporâneos trocarem obras e os dois já se tinham encontrado na faculdade). A estranheza do pedido seguiu-se: queria apagá-lo. Um pedido ousado, já que, à época, havia quadros de Kooning vendidos por dez mil dólares, por exemplo. Mas o objetivo era esse - não fazia sentido avançar com o conceito de eliminar o traço da obra se fosse de alguém não consensual para o público enquanto criativo. “Se fosse o meu próprio trabalho a ser apagado, isso seria apenas metade do processo, e eu queria que fosse o todo”, explicou Rauschenberg. De Kooning estava cético mas, quando acedeu, escolheu a dedo a ilustração: “Tem de ser algo de que vou sentir falta”, disse ao jovem artista. A ilustração cedida era feita a lápis, tinta, carvão e grafite, e demorou dois meses a ser apagada. Quando finalmente a emoldurou, em 1955, para a expor, não recebeu críticas, mas toda a gente falava daquela folha em branco esborratada pelas “ruelas” do meio artístico e colocava na mesa a questão sobre se a “não-imagem” era também uma imagem da arte. Hoje, é tida como a obra mais controversa de Rauschenberg, ainda que não tenha sido particularmente escandalosa como outras.
Merda d’Artista, Piero Manzoni, 1961
Merda d’Artista (1961) de Piero Manzoni não podia ser mais fidedigna no seu título. Não sabemos se foi o ovo ou a galinha que veio primeiro, mas sabemos que foi a sanita (de Duchamp) e só depois o excremento, de Manzoni. O criativo avant-garde italiano colocou em 90 latas de metal 2.700 gramas das suas fezes, como forma de resposta (diz-se) a um comentário depreciativo do seu pai, dono de uma fábrica de enlatados, sobre o trabalho de Piero, equiparando-o a… bom, não há palavra melhor: cocó. Ultrapassou os limites (do decoro, da saúde pública, da sanidade)? Diz quem pagou 275.000 euros num leilão por uma destas “conservas de merda” que não.
Dinner Party, Judy Chicago, 1979
No menu desta noite: vulvas. É o que parece ter pensado a norte-americana Judy Chicago quando imaginou este Dinner Party (1979). O seu banquete disposto em triângulo, a comemorar a contribuição feminina, desde Sappho a Virginia Woolf e Georgia O’Keefe, para a história cultural mundial, tinha 39 lugares (para uma lista de 39 mulheres emblemáticas), dispostos com pratos pintados à mão onde se viam vulvas em flor. Alguns aplaudiram a audácia - a crítica feminista Lucy Lippard relatou a sua experiência como sendo fortemente emocional, sublinhando o quão foi ficando cada vez mais viciada nos seus detalhes e mensagens subliminares; outros acusaram a sua vulgaridade - como a artista britânica Cornelia Parker, que disse ao The Guardian que a instalação era mais sobre elevar o ego de Chicago do que comemorar as mulheres homenageadas. “Estamos todas reduzidas a vaginas, o que é meio deprimente”, rematou. O crítico de arte Hilton Kramer corroborou, comparando-a a uma campanha publicitária, de tão tacanha. A artista Maria Manhattan chegou inclusivamente a satirizar a instalação com o seu The Box Lunch (1980), numa galeria de arte do Soho, descrevendo-o como um “grande evento de arte homenageando 39 mulheres de distinção dúbia.” Apesar disso, a peça continua exposta no Brooklyn Museum e é tida como um marco na arte feminista.
Rhythm 0, Marina Abramovich, 1974
Em 1964, Yoko Ono organizou uma performance artística provocatória na qual convidava o público a pegar numa tesoura e a cortar um pedaço da sua roupa enquanto ela permanecia imóvel e em silêncio. As pessoas ficaram de tal forma chocadas que nem falaram sobre isso, confessou Ono, tempos mais tarde, sobre esta sua Cut Piece. Uma década depois, Marina Abramovich pegou no conceito para conceber Rhythm 0 (1974), mas elevou a fasquia a um nível mais macabro e perverso. A artista colocou à disposição do público 72 objetos (além da tesoura, tinha um chicote, uma pluma, uma rosa, um bisturi, uma arma, uma bala, uma fatia de chocolate…) que os participantes podiam escolher e fazer o que bem entendessem. A performance durou seis horas e, ao longo do tempo, a audiência foi escalando o grau de violência: Abramovic assume que ainda tem a cicatriz no pescoço de onde um dos participantes lhe tirou sangue e recorda que “estava preparada para morrer” quando um dos voluntários lhe apontou uma arma à cabeça, desencadeando uma luta dentro da galeria, a propósito dos limites já terem sido ultrapassados. Quando chegou ao fim, Marina diz que todos evitaram olhá-la nos olhos.
Dropping a Han Dynasty Urn, Ai Weiwei, 1995
São só uns vasos em cerâmica. Mas não são. São a Fountain de Duchamp, versão anos 90: Ai Weiwei fez um piscar de olho a Marcel com Dropping a Han Dynasty Urn (1995), onde deixava cair, e consequentemente destruía, urnas cerimoniais com mais de dois mil anos. A controvérsia não demorou a instalar-se, não só pelo valor real das urnas (diz-se que Weiwei pagou centenas de milhares de dólares pelos exemplares) como pelo facto de serem símbolos da história Chinesa, levando muitos a considerarem a performance como desprovida de ética. “A única maneira de construir um novo mundo é destruindo o velho”, respondeu Ai, citando palavras de Mao Tsé-Tung. E quebrando vasos, perdão, regras, perdão, limites.
The Holy Virgin Mary, Chris Ofili, 1996
Sensation foi o nome dado à exposição que estreou em Londres, em 1997, com uma multiplicidade de artistas cuja seleção do corpo de trabalho era mesmo esse: emocionar. E toda a gente sabe que, quando as emoções estão à flor da pele, a queda para a polémica é grande. Foi só quando a mostra chegou a Nova Iorque, em 1999, que The Holy Virgin Mary (1996), de Chris Ofili, foi largamente repudiada: a collage da Virgem inclui resina, tinta de óleo, poliéster, pins de mapas e… ah, sim, recortes de revistas pornográficas e excrementos de elefante. Os protestos de líderes religiosos, celebridades e até do presidente da câmara, Rudy Giuliani, que ameaçou retirar o subsídio de sete milhões de dólares da exposição, não foram suficientes para bani-lo para sempre e a Madonna de Ofili está agora na coleção permanente do MoMA.
Shark, David Cerny, 2005
No seguimento da arrojada instalação de Damien Hirst, The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living (1991) - onde um tubarão se suspendia numa solução de formaldeido -, o artista checo David Cerny colocou numa caixa de vidro uma escultura fiel do ditador deposto iraquiano Saddam Hussein, amarrado como um leitão e suspenso nessa fórmula aquosa. Os comentários sobre Shark (2005) dividiam-se entre os que acharam que a instalação colocava Hussein quase no papel de vítima e os que acharam que a obra era demasiado gráfica e gratuita. No final, a sua mostra agendada para a Bélgica, em 2006, acabou por ser cancelada, receando que algumas camadas da população a considerassem demasiado provocadora.
Tree, Paul McCarthy, 2014
O que é que vê nesta imagem? É isso mesmo: uma árvore de Natal. Foi com essa ideia em mente que, em outubro de 2014, o artista americano Paul McCarthy, colocou este butt plug, perdão, pinheiro insuflado, no meio da Place Vêndome, em Paris, com vista para o Ritz e para as mais prestigiadas joalharias da área. A receção deste Tree (2014) foi incrível, como deve imaginar: não havia representante de marca bling bling que não quisesse ceder um dos seus ornamentos para colocar neste butt plug, perdão, símbolo natalício gigante. Só que não: a “árvore” foi vandalizada repetidamente e o próprio artista foi esbofeteado no rosto três vezes por um transeunte profundamente ofendido.
Domestikator, Joep van Lieshout, 2015
Domestikator (2015), do artista holandês Joep van Lieshout, uma escultura massiva que parece representar um homem a ter relações sexuais com um animal de quatro patas, era suposto ser apresentada no Louvre, Paris, em 2017, mas o museu recusou por ser demasiado explícita para ali ser exposta. Não sabemos se os telhados de vidro do espaço são apenas literais ou se seriam, também, metafóricos, mas o espelhado Centre Pompidou, que não é estranho à controvérsia - a sua estrutura metálica não agradou os apreciadores da estética clássica parisiense, aquando da sua construção - não se coibiu de receber a obra. Van Lieshout explicou que o intuito da polémica peça era representar o processo de domesticação e dar início à conversa sobre a tendência dos humanos subjugarem a natureza.
Robert Mapplethorpe: Pictures, 2018
Foi em 2018 que a arte “chocou” Portugal, cortesia do fotógrafo Robert Mapplethorpe. A retrospetiva do artista, em Serralves, foi contestada ainda antes de abrir, pelo cariz gráfico do seu corpo de trabalho, que acabou mesmo por ser censurado naquele Museu. À data de abertura, 20 de setembro daquele ano, Robert Mapplethorpe: Pictures inaugura com 20 obras banidas e, por isso, retiradas da mostra; acesso a menores de 18 anos condicionado pela companhia de um adulto e duas salas com entrada apenas para maiores de idade; e culmina, 24 horas depois, com a apresentação da demissão por parte do diretor artístico do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, João Ribas, confessando que não tinha condições para continuar à frente da instituição no Porto. Felizmente para a arte - e a nudez artística - o Google não tem esse género de filtros.
Artigo originalmente publicado no The Forbidden Issue da Vogue Portugal, de abril 2021.Fotografias © Universalimagesgroup; Dea; G. Dagli Orti; Paul Popper/Popperfoto; Jeff J. Mitchell; Stan Honda; Picture Alliance; The Washington Post;Doug Kanter; Michal Cizek; Chesnot/Getty Images; Fotobanco.pt; D.R.For the english version, click here.
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