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De onde vem afinal a nossa obsessão pelo crime?

04 Aug 2021
By Margarida Oliveira

Filmes, séries, documentários, livros e podcasts sobre crimes reais e imaginados são consumidos diariamente por milhões de pessoas. Mas o que nos leva a ver Making a Murderer?

Filmes, séries, documentários, livros e podcasts sobre crimes reais e imaginados são consumidos diariamente por milhões de pessoas. Mas o que nos leva a ver Making a Murderer?

O ser humano tem uma mórbida curiosidade por histórias de crime, vejamos Trial By Media (2020) – uma séria sobre seis crimes, revisitados em formato documental não apenas pelo crime, mas pela reação pública. Reagimos ao crime e à reação que houve ao crime num movimento cíclico que coloca o público numa viagem de autorreflexão. A questão que se coloca é: porquê? De onde vem a nossa vontade de ver histórias de crime como entretenimento?

“A primeira e mais intemporal (explicação) decorre da perplexidade em que nos colocam atos e motivações que desafiam a nossa visão cor de rosa e plana da vida e do psiquismo”, afirma a Dr.ª Joana Cabral que nos apresenta a perspetiva da psicoterapia e psicologia clínica. “O certo e o errado estão e sempre estiveram altamente codificados, pela norma social, pela religião e pela lei, em critérios binários que reduzem tudo às dicotomias bom/mau, certo/errado, humano/desumano. No entanto, por muito que na maior parte do tempo estejamos ocupados da imagem e dos julgamentos rápidos, o magnetismo das profundezas da psique e as subtilezas das histórias e das circunstâncias são um dos grandes mistérios da vida. Todos nós sentimos necessidade de mergulhar nestes cinzentos e é mais fácil fazê-lo com as vidas de estranhos do que com as nossas”. Consideremos a complexidade moral de Game of Thrones, Breaking Bad e House of Cards (entre muitas outras) e nos fenómenos mundiais de entretenimento em que se tornaram. Todas estas séries tratam personagens (no mínimo) duvidosas, que se movimentam por situações inconcebíveis ao comum mortal – talvez por isso mesmo nos fascinem.   

Mas atravessamos agora do fictício para o real, vemos séries documentais sobre crime como em tempos víamos CSI (lembram-se do CSI? Cada spin-off com uma diferente música de abertura dos The Who, fica aqui a nota nostálgica). Os documentários de crime tendem, na maior parte dos casos, a seguir o percurso do criminoso ou agressor, desde a sua infância às suas relações pessoais, com perspetivas que se balançam entre o acusatório e o empático. Se por um lado o crime é condenado, por outro lado é estudado e avaliado com uma devoção que se arrisca pelo campo da admiração. Este distanciamento da vítima e aproximação do criminoso são será desejável, pelo que estudos indicam que o “efeito de glamorização e mediatismo que contribui para a fantasia de pessoas com perfil no espectro da psicopatia e alimenta as suas motivações”.

Dial M For Murder © Getty Images
Dial M For Murder © Getty Images

Mas o público de séries de crimes não será exclusivamente constituído por criminosos, então o que procuramos quando tentamos compreender os motivos por detrás de um crime violento? “Quando nos ocupamos da autópsia psíquica e de uma reconstituição das circunstâncias de um crime estamos a retomar a necessidade que temos de nos entender e aos outros à nossa volta”, afirma Cabral. “Oferecem-nos a possibilidade de nos afastarmos das nossas próprias angústias, anestesiando-as, ou de canalizarmos as nossas emoções para fora de nós, através das histórias de outros, o que nos permite lidar com o que nos ameaça de forma mais distanciada e, portanto, menos ameaçadora”. Arriscando a dessensibilização, vemos estes documentários como andamos de montanha russa, confrontando o medo sob um espaço controlado, e dominando este medo enquanto entretenimento.

Mas então e as vítimas? Não apenas as vítimas dos crimes, mas a família e amigos vitimizados por um evento traumático a alguém que lhes é próximo? Que o crime não se esgota necessariamente num único momento, e além das vítimas dos crimes, também as suas famílias e também os seus amigos podem ser repetidamente vitimizados em cada novo ciclo mediático. Num artigo de Melissa Chan, na Time Magazine, são partilhados emails da família de uma das vítimas referenciadas na série da I Am a Killer apelando aos produtores que não a realizassem. Este pedido não foi, claramente, seguido. “Este motivo deveria ser definitivamente considerado, não apenas no caso destas séries, mas também na forma como estes crimes são tratados na imprensa e no jornalismo de televisão. Estamos a falar de um assunto muito sério e que deveria estar sujeito a um escrutínio ético apurado e rigoroso.”

Não se pretende criminalizar o documentário, sendo que este pode também resultar na descoberta ou confronto de determinados aspetos de um crime, e até dar voz a pessoas cuja história anseiam partilhar. Mas quando tratamos de true crime, a consciência da verdade das imagens terá de ser relembrada, que o fascínio pela profundeza da psique não nos retire a mais superficial humanidade.

Margarida Oliveira By Margarida Oliveira

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