A história do veludo confunde-se com a história do mundo. Ela é o meio perfeito para explorar, não só o seu passado, como algumas das suas personagens mais célebres.
A história do veludo confunde-se com a história do mundo. Ela é o meio perfeito para explorar, não só o seu passado, como algumas das suas personagens mais célebres.
Artwork: João Oliveira
Artwork: João Oliveira
Tessitura Luigi Bevilacqua. É este o nome do último produtor de veludo tradicional em Veneza. Desde 1499 que a família Bevilacqua se encarrega de entregar o material mais luxuoso da História a algumas das suas figuras mais importantes. De aristocratas a papas, os artesãos italianos eram os responsáveis pela afluência do material no mercado de luxo do passado. Em tempos, a empresa chegou a ter mais de cem trabalhadores em simultâneo mas, nos dias que correm, este número encontra-se reduzido a uns meros sete. São estas poucas tecedeiras que se encarregam de preservar o património inestimável do veludo veneziano. O tecido é produzido nas mesmas oficinas que, antigamente, se encontravam repletas de vida e estão agora lotadas de teares vazios. A produção de um tecido deste género já não se enquadra num mundo que valoriza o imediato acima do tradicional. Cada tecido produzido pela Tessitura Luigi Bevilacqua é feito da mesma forma de há 300 anos, linha a linha, completamente à mão, exigindo uma dedicação e uma paciência cada vez mais rara. O veludo veneziano, mais que uma manufatura, é uma arte, um dos mais transversais símbolos de luxo do mundo. Desde faraós egípcios a monarcas dinamarqueses, muitos foram aqueles que, ao longo dos séculos, envergaram o tecido como derradeiro símbolo de status. Mas a história do veludo não escreveu a sua primeira página na província italiana do século XIV. Em vez disso, ela recua a um passado reconhecível apenas em contos de fadas. O veludo é a linha que liga esse mundo ao nosso, o fio que tece a história do mundo.
Veludo. Três sílabas que escondem em si a profundidade histórica do tecido. Oriundo do latim vellutus, ou vellus, significando “repleto de pelos” ou “pele de animal”, respetivamente, a sua origem etimológica revela-nos os primórdios ancestrais do tecido. Muito antes de invadir os mercados renascentistas europeus, anterior até à época medieval, o veludo remonta à cidade de Bagdade, em 786. Não, não nos esquecemos de um dígito, a origem do material recua a uma época onde os anos se escreviam com apenas três número. Certos históricos teorizam que a técnica para produzir veludo pode ser bem mais milenar, recuando dois milénios, ao início da Era Comum, leia-se 2000 AEC. O veludo, à semelhança de materiais como o cetim, são mais corretamente descritos como técnicas de produção do que materiais em si. A textura do veludo é alcançada através de um processo detalhado e complexo, especialmente numa época em que a sua produção à mão era a única opção. Se a sua origem “moderna” remonta ao Médio Oriente, numa altura em que o monopólio da sua produção estava concentrado no Egipto, à medida que o mundo comunicava entre si, o seu centro redirecionou-se para a Europa. As rotas de comércio do mundo antigo introduziram o veludo no mercado europeu onde, quase imediatamente, enfeitiçou os estratos superiores da hierarquia social. Graças à sua sumptuosidade, tornou-se o material por excelência dos trajes de monárquicos, eclesiásticos e até dos interiores dos palácios. A realeza e aristocracia europeia viram (ou melhor, sentiram nas suas mãos) o tecido como a metáfora ideal para representar a distância entre os seus contrapartes. Se o povo mal tinha dinheiro para linho, os privilegiados desse mundo escolhiam envergar um material complexo, pesado, inacessível. A obsessão com a exclusividade do material era tal que verdadeiras leis foram criadas para garantir que só um grupo selecionado de pessoas o podia usar. Sim, a obsessão com exclusividade na Moda não é recente, é milenar. Se achamos que gatekeeping roupa no Instagram é mau, imagine-se quão mesquinha era a nobreza renascentista para aplicar sentenças de morte a todos aqueles que pretendessem replicar as suas vestes. Foi exatamente isso que o rei inglês Henrique IV fez, no século XV, proibindo todos aqueles que não fossem aristocratas de utilizar o tecido.
O veludo é peculiar não só pela complexidade da sua produção, mas também pelo seu aspeto – a forma hipnotizante como reflete a luz cativou a atenção de alguns dos artistas mais importantes de todos os tempos. Lendas como Michelangelo ou Leonardo da Vinci ocupavam-se em tentar domar a técnica de produção do tecido. O fascínio da classe artística não se manifestava apenas em tentativas de produção, a sua representação estabelecia-se como uma imensa preocupação. De que forma podiam assegurar os pintores que toda a sumptuosidade do veludo era impecavelmente reproduzida na tela? Claro que a pintura não foi o único meio em que o veludo encontrou a sua representação artística, também na literatura existe uma multiplicidade de escritores enfeitiçados pelo tecido. Pense-se em Anna Karenina, de Leo Tolstoy, uma narrativa descrita por críticos como uma tempestade de veludo e intrigas. O comentário não se estranha, ao longo de mais de oitocentas páginas o mítico escritor russo detalha a história da personagem homónima à medida que esta sucumbe à decadência do amor e embarca numa viagem trágica rumo à loucura - e, eventualmente, à morte. O trajeto de Anna é de tal forma inspirador que inúmeras produções televisivas e cinematográficas já se ocuparam de dar cor às palavras de Tolstoy. De forma muito pouco surpreendente, os trajes em veludo são transversais a todos estes filmes e séries, não só pela precisão histórica, mas também pelo valor metafórico do tecido. O desejo latente, o escândalo iminente e o desastre inevitável são, de alguma forma, retratados perfeitamente pelo veludo. Mas nenhuma outra obra utiliza a metáfora do material de forma tão eficiente como E Tudo o Vento Levou (1939). No clássico filme, a personagem Scarlett O’Hara arranca as cortinas de veludo (verdes) da sala para as transformar num elegante vestido. Este ato desesperado é condizente com o estado da sua personagem: a menina mimada transforma-se numa vítima colateral da guerra civil americana e acaba na penúria, como muitos dos seus compatriotas. Transformar as cortinas numa peça de roupa é somente uma forma de tentar replicar riqueza, símbolo de um estatuto que já não possui.
Claro que, se procurarmos o valor metafórico do veludo, não precisamos de obras de ficção, mesmo que sejam as do mais alto calibre. Basta-nos pensar em figuras históricas como Marie Antoinette que, nas sombras do veludo, profetizava a sua inevitável tragédia. Desde os seus treze anos que a infame rainha de França substituiu as flores que lhe enfeitavam o extenso cabelo pelos laços de veludo, a analogia perfeita para o gosto pela decadência que a definiria para a eternidade. Marie Antoinette, eterna ícone de estilo, era a derradeira inspiração da Moda francesa. Conhecida pelo seu sentido de estilo, os aparentemente intermináveis recursos da Coroa permitiram que definisse as tendências da altura. Os robes à la française em veludo foram popularizados pela rainha que, até quando comparada com os estratos mais altos da aristocracia, se destacava pelo luxo dos seus vestidos. Independentemente do seu fatídico destino, a influência de Marie Antoinette é percetível nos dias que correm: designers tão distintos como Christian Dior, Vivienne Westwood, Christian Lacroix, ou Thierry Mugler utilizam a luxuosa estética da rainha como ponto de referência. De musa em musa se constrói a história da Moda, e se o legado aveludado de Marie Antoinette chega aos dias de hoje, outros existem que informam de forma igualmente significante o modo como pensamos no tecido. John Galliano, Karl Lagerfeld, Alexander McQueen, são apenas três dos titãs que se inspiraram em Marquesa Luisa Casati. Conhecida pelo seu estilo, paixão por drama e patronagem, Casati era herdeira de uma das maiores fortunas de Itália no final do século XIX. Órfã a uma tenra idade, aos quinze anos Luisa Casati era a mulher mais rica do seu país. Mas esta não é a sua única relação com o mundo da Moda. Inspiração do designer Paul Poiret, do pintor Augustus John e do escritor Jean Cocteau, Casati vivia obcecada com a ideia de se tornar numa obra de arte. Com dinheiro e conexões, a Marquesa era uma das personagens mais influentes do seu tempo. As suas festas eram lendárias, antros repletos das figuras mais importantes do mundo – o próprio Picasso relatava a excentricidade dos seus jantares. O seu gosto pela extravagância encontrava-se refletido no seu estilo, de sumptuosos robes de veludo adornados com penas a cobras pintadas de dourado (convenientemente sedadas, claro) a enfeitar o seu pescoço, Casati era uma verdadeira força da natureza. De certa forma, a herdeira foi a última representante da verdadeira decadência associada ao veludo. O aberto hedonismo com o qual Casati comandava a sua vida inspirou os maiores artistas da sua era, da mesma forma que o veludo tinha feito séculos antes. Mas foi também este a razão do seu fado: aos 49 anos Casati tinha acumulado uma dívida de mais de 25 milhões de dólares e, forçada a exilar-se em Londres, extinguiu também a paixão com a qual vivia anteriormente.
O veludo nunca deixou de ser uma constante desde que foi apresentado ao mundo, há séculos, mas o seu significado alterou-se quase completamente. Afastando-se cada vez mais da exclusividade do passado, ao longo do século XX diferentes estéticas instrumentalizam o tecido. Desde a divertida década de 60 à cultura boémia e hippie, dos crop tops dos anos 90 aos sets de loungewear de marcas de fast fashion, o veludo adapta-se ao mundo em que vivemos. Escusado será dizer que a manufatura do veludo se encontra praticamente extinta, substituída por robóticos processos industriais. A maior parte do veludo que se encontra hoje em dia é composto por materiais sintéticos como poliéster ou viscose. Até mesmo o chamado veludo de seda é, em grande parte, misturado com rayon, uma malha sintética. Acabamos a nossa jornada onde a iniciámos, nas salas repletas de teares vazios, um dos únicos sítios que mantêm o processo de manufatura original. A história do veludo é, em grande parte, a história de um certo passado que já não volta. Um tecido que, somente pela sua beleza, conquistou a humanidade. Inevitável símbolo de uma arte que se fossiliza, o veludo é uma relíquia de um mundo cada vez mais longínquo.
Publicado originalmente na edição The Velvet Touch da Vogue Portugal.