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O que é feito das cartas de amor?

18 Jan 2021
By Sara Andrade

Para onde foram as cartas de amor? Aliás, ainda se escrevem cartas de amor? E serão todas as cartas de amor mesmo ridículas? Ridículo é trocar uma carta de amor por um swipe right. Ou não?

Para onde foram as cartas de amor? Minguaram progressivamente até se abreviarem com um “dd tc?” ou um “m/f?”, esses sintetizadores do mIRC que evoluíram até aos dias de hoje para se transformarem em emojis e... siglas, quiçá? Aliás, ainda se escrevem cartas de amor? E serão todas as cartas de amor mesmo ridículas? Ridículo é trocar uma carta de amor por um swipe right. Ou não?

Para onde foram as cartas de amor??
Fotografia de Jean-Michel Bihorel

Cartas de amor, quem as não tem – ou teve? Os millennials, provavelmente. O mais aproximado de tal anacronismo deverá ser aquele GIF que pisca I love you e que se envia em qualquer rede social ou app de chat. Ou aquele meme com algum trocadilho da Internet. Alguns jovens do novo século talvez até tenham sentido o amor eterno professado com um simples swipe right. Outros receberam-no com um alerta luminoso no ecrã de um smartphone a anunciar aquele SMS a dizer “gst mm de ti <3”, aquele texto básico de profunda inspiração. Já não se escrevem cartas de amor? Mesmo sem ser daquelas à séria, com papel e caneta de tinta permanente, seladas com cera e um brasão… já não há DM’s poéticos, WhatsApp’s prosaicos, voices sentidos? Serão mesmo as cartas de amor ridículas?

Nem Álvaro de Campos as considerava assim – é verdade que começava desta forma o poema, mas admitia que ridículos eram aqueles que nunca tinham escrito cartas de amor. Essas cartas, que durante séculos palmilhavam quilómetros para cortejar a alma gémea… e não se poupavam nas palavras para dizer um simples “amo-te.” Quando Napoleão Bonaparte escrevia, em jovem, cartas da guerra à sua amada Joséphine, no século XVIII, não lhe enviava emojis de coração ou abreviava sentimentos; numa das missivas, dizia-lhe: “Há uns dias, achava que te amava; mas desde a última vez que te vi, sinto que te amo mil vezes mais. Desde que te conheci, adoro-te mais e mais a cada dia; isso só mostra o quão errada estava a máxima de La Bruyére sobre o amor vir todo de uma vez.”

Quando Patti Smith escreveu a Robert Mapplethorpe, em 1989, não esteve com meias palavras quando lhe abriu o coração por inteiro para lhe confessar que “muitas vezes fico acordada à noite a pensar se tu também estás acordado… tiraste-me do período mais negro da minha jovem vida, partilhando comigo o mistério sagrado do que é ser artista. Aprendi a ver através de ti e a nunca compor uma linha ou desenhar uma curva que não nasça do conhecimento que recolhi do nosso precioso tempo juntos…”.

"Deixar algo escrito à mão, ainda que possa ser um bilhete, tem sempre um gostinho especial." Joana Canha

 

Eu, um dia, num ano de outrora, tinha no vidro do carro um papel que dizia: “Olá, és gira. Queres ir beber um copo?” e o número de telefone. A eloquência possível do século XXI? Longe de ser a declaração de Bonaparte, pelo menos foi escrito em papel e caneta. Há algo de muito intimista em usar tinta e escrever pela própria mão em vez de teclar com os dedos. “Já se escrevem poucas cartas de amor, mas escreve-se mais do que antes (digitalmente)”, diz-nos Joana Canha, psicóloga clínica. “Mas a forma como nos expressamos faz a diferença. Deixar algo escrito à mão, ainda que possa ser um bilhete, tem sempre um gostinho especial. É mais pessoal, transmite uma sensação de ligação com a outra pessoa, é único e não dá para fazer copy/paste.”

O que não quer dizer que as palavras de amor dos tempos modernos não possam ser tão românticas como as que se escreviam a tinta da china. A plataforma pode mudar e o que se escreve ainda poder ser considerado uma carta de amor, na sua essência. Mas talvez os tempos modernos tenham colocado um novo modus operandi nos relacionamentos, que pode ter sido ainda mais incrementado com o advento das dating apps, depois de já ter sofrido alterações no paradigma com as redes sociais e a facilidade com que se “mete conversa” com um like. Agora, é mais fácil dizer “olá”. Impessoalmente, quase sem riscos.

“Temos assistido ao crescimento exponencial da utilização das redes sociais. Mas num ano de pandemia, onde há inúmeras restrições ao contacto com os outros, as redes sociais tornaram-se os novos cafés e bares. Com as inúmeras restrições que dificultam muito mais o contacto, socializamos muito mais online. O que antes era uma escolha, agora tornou-se necessário para que nos mantenhamos em contacto uns com os outros”, aponta a especialista. “A procura de contacto, estarmos próximos de outras pessoas, faz parte das necessidades humanas e (não pensando na pandemia que estamos a viver) as redes sociais e dating apps tornaram mais simples e até mais confortável a tentativa de contacto com os outros. Anteriormente, era necessário muito mais coragem para, fisicamente, tentarmos conhecer alguém. Fisicamente, sentimo-nos mais em risco de sermos rejeitados e é uma rejeição mais intensa, ao contrário se o mesmo acontecer digitalmente.”

Também é mais fácil ignorar (já ouviu falar em ghosting, essa arte de desaparecer sem deixar rasto ou indício que o justifique? Deixar de responder, de falar, de se mostrar, mesmo que a última interação tenha sido maravilhosa e não o tenha denunciado? Temos um artigo que vale a pena ler, sobre isso, intitulado Ghosting: onde é que já ouvi falar disto?.

Assim como é mais fácil desconfiar, “fazer filmes”, explorando a vida da pessoa nas suas plataformas de social media, ligando os nossos próprios condicionalismos para julgar, para o bem ou para o mal, o histórico daquela pessoa: “A utilização de redes sociais pode facilitar bastante o contacto entre as pessoas, no entanto, vários estudos têm demonstrado que há um enorme impacto negativo no decorrer de uma relação e até no luto da própria quando esta termina”, aponta Canha. “Parece haver uma ligação entre a utilização das redes sociais e o aumento de ciúmes. As redes sociais tornaram-se o ‘olhar pela fechadura’ na vida de outras pessoas (permitido pelas mesmas, uma vez que escolhemos o que queremos ou não partilhar). Assistimos a um crescente culto do mostrar ao mundo, de quebrar limites de privacidade das próprias relações – muitas vezes sem haver essa perceção – e até de nos sentirmos julgados pelos comentários ao que escolhemos expor. Contudo, e como em tudo na vida, o equilíbrio é a chave”, ressalva.

Neste jogo de descoberta online, existe outro perigo iminente e que tem a ver com a idealização do objeto de desejo. Se é verdade que não nos apaixonamos por alguém, mas antes pela ideia que temos desse alguém, os social media trouxeram consigo a possibilidade de se criar uma ideia (ainda) mais errónea baseada na versão editada que aprendemos a conhecer num feed de Instagram, Facebook, Tinder, etc., e que é mais difícil de falsificar presencialmente: “A maior vantagem [das redes sociais] será sempre a possibilidade de conhecer pessoas, de poder conversar com alguém”, começa a psicóloga. “Esse é o maior objetivo, independentemente de que tipo de relacionamento procuram (amizade, sexual, amoroso). Contudo, o risco é a idealização e, por consequência, a desilusão ou até o sofrimento. Quando falamos com alguém que não conhecemos através de apps ou chats, há uma enorme probabilidade de idealizarmos quem está do outro lado ou até mesmo uma idealização da relação. Quando há o contacto físico, a conversa pessoalmente, conseguimos perceber a própria linguagem não verbal da outra pessoa e consequentemente fazer uma melhor leitura de como ambos se relacionam.”

Isto assim fica complicado: é mais fácil conhecer pessoas, mas é mais difícil “conhecer” as pessoas. Isso significa que também é mais difícil apaixonarmo-nos? Ou mais fácil? “Apaixonar-se não é mais fácil ou mais difícil com a Internet. Apaixonar-se é algo intrínseco. Podemos ter inúmeras oportunidades para nos apaixonarmos, mas ainda assim não acontecer. Depende de vontade e disponibilidade interna (dois conceitos diferentes)”, desmistifica Joana Canha. “No entanto, ao socializar mais, ao conhecer pessoas novas, à partida, aumentam as nossas hipóteses de nos apaixonarmos. Aí, a Internett em tido um grande papel. Deita abaixo as limitações de espaço, de fronteiras física, e torna-nos conectáveis com o resto do mundo.”

Conhecemos mais pessoas, por isso aumentamos a nossa probabilidade de nos perdermos de amores por elas, mas também existe uma maior hipótese de nos apaixonarmos por alguém de quem temos uma ideia e essa ideia ser uma ilusão. Mas, na esperança que isso seja uma possibilidade mais do que uma probabilidade, continuaremos a acreditar que há mais amor a ser distribuído hoje em dia, nem que seja abreviado, por emojis, com siglas e memes e notificações de telemóveis.

E as cartas de amor, para onde foram?

“Não será o papel ou o smartphone a fazer a diferença”, acredita a psicóloga. “A forma como as pessoas comunicam está a mudar, mas isso não significa que as relações tenham de mudar por causa disso. Parece-me que têm que se adaptar à existência de redes sociais (principalmente através de uma boa comunicação). A percepção das relações parece estar em mudança, mas isso estará mais relacionado com a personalidade de cada um. No entanto, é indiscutível que as mensagens escritas estão a ganhar terreno à conversa presencial. Quando há alguma situação que necessita ser falada, cada vez mais, isso é feito através de mensagens escritas e não da típica conversa cara a cara.

O medo do confronto e do conflito, a impulsividade (não querer esperar até estar fisicamente com a pessoa) levam a que as mensagens escritas se tornem o método de eleição; mas também podem abrir caminho para interpretações contrárias à intenção inicial. As relações requerem tempo e presença, ainda que as mensagens ou bilhetes escritos tenham o seu papel na relação.”

Confrontos por escrito à parte, voltemos às declarações de amor – continuamos a fazê-las? Se sim, para onde vão, então, estas cartas de amor? Para onde quisermos, desde que as queiramos perpetuar. Até podemos escrevê-las em bits e bytes, porque quando se escreve algo bonito, não é o suporte que lhe retira beleza. Em todo o caso, da próxima vez que quiser dizer alguma coisa mesmo, mesmo, especial, ponha por escrito. Em papel, se possível. E tinta da china. Os emojis são opcionais.

Artigo publicado originalmente na edição Love da Vogue Portugal, de dezembro 2020.For the english version, click here.

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