15 milhões de peças de roupa em segunda-mão chegam a Acra semanalmente. Este é o destino do que já não se vende no Ocidente.
15 milhões de peças de roupa em segunda-mão chegam a Acra semanalmente. Este é o destino do que já não se vende no Ocidente.
Fotografia de Luca Meneghel, com realização de Michele Bagnara. Modelo Nana Skovgaard. Vogue Portugal, setembro 2019
Fotografia de Luca Meneghel, com realização de Michele Bagnara. Modelo Nana Skovgaard. Vogue Portugal, setembro 2019
Destralhar. Foi esta a palavra que se impôs circa 2019 após o lançamento daquele que seria o maior fenómeno de organização até ao momento. Marie Kondo e o seu método de “spark joy” funcionaram como um motor para que um pouco por todo o mundo sacos e sacos de roupa fossem entregues a lojas de caridade e de venda de roupa usada. O objetivo: encontrar uma nova casa e uma nova família a quem pudessem trazer alegria. O que Marie Kondo não sabia é que nem sempre isso acontece.
Uma peça doada a uma loja secondhand e que aí não seja vendida pode ter vários destinos. Existem serviços de reaproveitamento têxtil que recolhem a roupa em piores condições para que esta seja transformada e usada como matéria-prima para a produção de “tapeçarias, isolamentos e enchimentos”, explicou Daniela Pereira, gestora do projeto inVista nO Ambiente, em entrevista ao Dinheiro Vivo. É ainda possível que algumas peças para as quais não seja encontrada uma solução eficaz de reutilização acabem em aterros. Por ser uma solução muitas vezes adotada às escuras, é difícil saber qual a percentagem de roupa que vê o lixo como morada final. Sabe-se, todavia, que a grande maioria dos excedentes da indústria da Moda tem um destino internacional, nomeadamente ao ser exportada para países onde o setor se encontra em menor desenvolvimento.
O mercado mundial de troca de roupa usada é um negócio no quadrante dos mil milhões de dólares. Segundo o Observatório de Complexidade Económica, Estados Unidos da América, Reino Unido, Alemanha, China e Coreia do Sul representam os cinco países que mais peças de roupa em segunda-mão exportam. E quem se encontra do outro lado? Ucrânia, Gana, Quénia, Polónia, Rússia e Nigéria perfazem cerca de 21% do total mundial de importações. Um dos países que mais se destaca enquanto destinatário dos excedentes do mercado ocidental é o Gana, cuja capital, Acra, se tornou num depósito a céu aberto de peças que não encontraram o seu lugar em casas ocidentais. Só do Reino Unido chegam a esta cidade cerca de 50% das exportações britânicas. Ao todo, estima-se que o mercado de Kantamanto - o principal mercado ganês de roupa usada - receba mais de 15 milhões de peças todas as semanas. Sendo o Gana um país com uma população de pouco mais de 30 milhões, torna-se impossível que tal volume de encomendas chegue a ser efetivamente consumido por habitantes locais. Na verdade, os dados apontam para que 40% da roupa que chega a Acra tenha o aterro como rumo quase imediato.
Kantamanto Market © Getty Images
Kantamanto Market © Getty Images
Foi com esta lógica em mente que Liz Ricketts e Branson Skinner criaram, em 2011, a organização ativista conhecida por The OR Foundation. Acima de tudo, o seu trabalho procura “identificar alternativas ao modelo dominante da indústria da moda”, trabalhando na interseção entre “justiça ambiental, educação e desenvolvimento sustentável do setor”, como escrevem no seu website.
Diversas iniciativas da fundação têm sido desenvolvidas em redor do mercado de Kantamanto. Entre elas, destaca-se o projeto de multimédia Dead White Man’s Clothes. Traduzido da expressão tradicional Obroni W’awu, o nome desta ação de consciencialização representa a perspetiva da população ganesa face à roupa recebida. Sendo o desperdício um conceito estrangeiro aos habitantes de Acra, era deduzido que as peças em boas condições que chegavam à cidade pertenceriam à população ocidental que já havia falecido e ainda hoje são conhecidas como “roupa do homem branco morto.”
Um dos objetivos primordiais da The OR Foundation é chamar à atenção para os malefícios que podem estar associados a este mercado internacional. A nível económico, a importação de roupa usada “tem influenciado as dinâmicas sócio-económicas do Gana, conduzindo o consumo da indústria domésticas e artesanais para a tendência global de consumo rápido”, já que os baixos preços das peças importadas se revelam mais apelativos. Todavia, é importante frisar que a revenda de roupa usada não é um negócio lucrativo para a população ganesa. Na grande parte dos casos, o dinheiro angariado com a transação de roupa usada serve apenas para cobrir as despesas decorrentes do processo. E não é somente ao nível económico que as consequências transparecem. Poluição e problemas sanitários são exemplos do que pode também vir associado à importação de roupa usada.
O que se verifica no mercado de Kantamanto é apenas uma pequena parte das dificuldades associadas à gestão dos excedentes da indústria da Moda. Todos os anos, sem exceção, o número de peças produzidas e consumidas aumenta vertiginosamente. E todos os anos, sem exceção, o número de peças que chega a aterros e depósitos a céu aberto, como os que se encontram em Acra, é cada vez maior.