Eu menstruo, tu menstruas, elas menstruam. E apesar de todas nós, e mais meio mundo como nós, menstruarmos, ainda é horripilante escrever isto, dizer isto, quanto mais discutir isto...
Eu menstruo, tu menstruas, elas menstruam. E apesar de todas nós, e mais meio mundo como nós, menstruarmos, ainda é horripilante escrever isto, dizer isto, quanto mais discutir isto...
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"A menina por favor saia da sala." Não me consigo mexer. Os risinhos e as gargalhadas semi-histéricas de há um minuto deram lugar a um silêncio confrangedor. Todos olham para mim, ninguém olha para mim. Um ato absolutamente natural, quase mecânico, acabou por desencadear uma aula interrompida, uma expulsão, uma queixa. "É uma falta de respeito para comigo e para com os seus colegas." Tudo por causa de um nariz entupido. Tinha o nariz entupido, precisava de um lenço de papel, vasculhei a mochila e, em vez do dito lenço, tirei um penso. Um penso higiénico. Ato contínuo, pu-lo em cima da mesa, e o meu colega do lado fez uma graçola qualquer, daquelas que se fazem quando se tem 14 anos – porque, sejamos justos, que adolescente é que não perderia a cabeça perante tal objeto tão esotérico?
A piadola (que apaguei da memória) justificou a minha distração como vil e má, e fui prontamente convidada a abandonar o local onde apenas estão os puros de espírito. "O que é que lhe passou pela cabeça, Ana?", perguntou-me mais tarde a diretora de turma. Nada. Não me passou nada pela cabeça. Ou por outra, passaram-me várias coisas, uma delas porque raio é que fui expulsa de uma aula à pala de um penso higiénico. Fiquei cheia de pena de não o ter tirado da mochila de propósito.
O minúsculo universo onde nós, mulheres, nos movemos, está cheio de histórias destas. Só eu devo ter umas cinco ou seis, entre o episódio do liceu e a "aparição", leia-se, o momento em que per- cebi que não éramos lá muito iguais aos homens. Lembro-me de, pirralha, assistir ao desespero da minha mãe na pastelaria onde tomava o café todos os dias, quando inadvertidamente tirou um penso higiénico da carteira e o pousou em cima do balcão (está visto que na nossa família existe toda uma ligação entre o dito objeto e o ato de o retirar de malas). "Ó dona Odete, sente-se bem?", atirou um dos empregados, a desviar a atenção do sucedido. Ela sentia-se bem. Só se tinha enganado, e em vez de três moedas tinha pegado na coisa-que-nenhum-homem-quer-ver. Ficou tão incomodada (somos peritas em autocensura) que quase posso jurar que pediu desculpa a ele e a mim, uma criança de cinco anos que ainda nem sabia o que era isso de sangrar mês sim, mês também.
Se a linguagem lhe parece excessiva, pode ficar por aqui. Até ao último ponto final não encontrará metáforas bonitinhas. A ideia é chamar os bois pelos nomes. Menstruação, período, corrimento fisiológico de sangue e tecido mucoso do revestimento interior do útero pela vagina. Porquê insistir nisto? Porque, no geral, a sociedade ainda encara todas estas palavras como algo "sujo". Existem demasiadas conotações culturais e religiosas que pretendem diminuir as mulheres que estão “naquela altura do mês” (outra expressão insuportável de ouvir) como sendo "menos puras." Veja-se, por exemplo, a política adotada pela maioria das redes sociais, que estimulam a difusão de práticas de higiene – sejam normas de saúde a adotar, apoios a ONGs ou marcas de copos menstruais – mas que recusam qualquer imagem onde uma gota de sangue surja perto de uma vagina. Foi o que aconteceu com a poeta Rupi Kaur, que em 2015 viu uma fotografia sua apagada, aparentemente porque as suas leggings, e os seus lençóis, tinham sangue.
"Menstruação, período, corrimento fisiológico de sangue e tecido mucoso do revestimento interior do útero pela vagina."
Incomoda. E incomoda tanto que até o emoji do período foi tema de acesa discussão. Aquando da incursão do dito símbolo, em 2017, a escolha recaiu sobre um par de cuequinhas acompanhadas por sangue (e o que mais haveria de ser?), mas tal aberração foi rejeitada pela Unicode Consortium – a organização que coordena o desenvolvimento e a promoção do Unicode, ou seja, desses caracteres que nos habituamos a usar três em cada duas palavras – por isso, a opção final pendeu para a inocente gotinha de sangue que agora temos e que, convenhamos, poderia ser qualquer coisa, porque gotas de sangue há muitas, basta fazer um corte num dedo. E vemo-las aos molhos, se pensarmos na quantidade de sangue não censurado que nos habituámos a ver, desde cedo, em filmes de "ação e aventura", em noticiários... Sangue não censurado, claro.
"Eu não tenho dúvidas nenhumas que a única coisa que faz com o sangue menstrual seja considerado nojento é o facto de sair de uma vagina. Os homens estão sempre a sangrar na televisão/anúncios/filmes: ou porque são heróis num filme, ou porque são soldados na guerra, ou porque andam à porrada e são muito fortes. Lembremo-nos que Eva não só veio de uma costela de Adão, como comeu uma maçã vermelha e por isso todas as mulheres do mundo têm um sangramento vaginal que as castiga pelo pecado da primeira mulher no mundo. Ainda nos envergonha tanto porque continua a ser o não-segredo mais bem guardado do mundo. Toda a gente sabe que existe, mas ninguém fala, ninguém vê, é como se não existisse. Mas existe sim. Eu menstruo, nós menstruamos, e crescemos todos no mesmo lugar: uma vagina que menstrua." As palavras são de Tota Alves, 29 anos, uma das realizadoras da minissérie documental O Meu Sangue, estreada no passado dia 4 de março na RTP Play.
Ao longo de três episódios com cerca de dez minutos cada, exploram-se alguns dos tabus associados àquilo que devia ser uma coisa natural, um não-assunto, e que permanece um gigantesco elefante de porcelana nesta loja chamada planeta Terra. Bastante ativa nos social media em tudo o que diz respeito a menstruação, tem perspetivas bastante claras sobre o que está errado na forma como pintamos o problema. "O que mais me entristece é a comparação da menstruação com as fezes. É a prova mais evidente do nojo que há em relação a um sangue que é bom, que faz parte da vida de todas as pessoas, é natural e limpo. Incomoda-me que haja tanto repúdio e que ainda se utilizem palavras como 'impura' ou 'suja' para descrever uma pessoa que está menstruada."
E depois nada ajuda. São os anúncios que continuam a mostrar o período como sendo um líquido azul – para se ter noção do quão grave é a situação, só em 2010 é que a marca de tampões Always lançou uma campanha em que o dito spot era vermelho; a ideia foi de um estagiário que trabalhava para a agência de publicidade Leo Burnett, que detinha a conta da Always, e que apenas estava a desenvolver o seu portefólio pessoal. O seu chief creative officer (que Deus o abençoe) achou a ideia tão boa que acabou por publicar o trabalho – num ato de coragem, já que recebeu um coro de protestos.
São os preços exorbitantes dos produtos de higiene feminina – é fazer as contas a quanto gastamos a partir do momento em que começamos a menstruar. As pesquisas sugerem que uma mulher sangra, em média, entre 2.250 a 3000 dias ao longo da vida. Em Portugal, tampões, pensos higiénicos e copos menstruais pagam uma taxa mais reduzida de IVA (6%), mas no resto da União Europeia há uma enorme disparidade, com países em que os valores ascendem aos 27% – na mesma medida que o tabaco ou o café –, apesar de serem bens de primeira necessidade. Não vamos mais longe, porque em países como a Índia, as mulheres ficam isoladas quando estão com o período, mais de um terço das raparigas no sul da Ásia não vai à escola durante essa altura, e no Sri Lanka dois terços das meninas nem sequer está consciente do que é a menstruação antes de se deparar com ela. Valerá a pena lembrar, por esta altura, que nada disto é uma escolha? Que ninguém acorda uma manhã e decide começar a sangrar a cada 28 dias?
"Ao longo dos últimos anos fui ‘colecionando’ histórias dentro da minha cabeça. Histórias minhas, histórias de outras mulheres. Houve uma em particular que me marcou muito. Há uns oito anos, uma colega de trabalho foi fazer compras a um shopping e, quando estava na fila de uma loja, disseram-lhe ao ouvido que tinha uma mancha de sangue nos calções. Os calções eram brancos. Ela teve muita vergonha e foi-se fechar na casa de banho. Lavou os calções na água do autoclismo, secou no secador de mãos e meteu papel higiénico nas cuecas. Isto é o cúmulo da vergonha de estar menstruada. Aconteceu em Inglaterra. Ainda hoje penso nesta história com regularidade. Isto fez com que criasse uma espécie de 'pasta' no meu cérebro com vários acontecimentos deste tipo, meus e de outras pessoas."
A pasta de Tota deu origem à minissérie da RTP, onde se dá voz a diferentes gerações de mulheres – que tiveram experiências diferentes na sua relação com o período – e onde se pergunta, acima de tudo, porquê? Porque é que ainda temos vergonha de falar neste assunto? Não é preciso procurar muito. A minha amiga D. sabe três ou quatro coisas sobre o período. Tem 36 anos. Começou a menstruar aos 12. Pensando bem, deve saber... 279 coisas, que são as vezes que já sentiu na pele o que é estar "naquela altura do mês." Andamos para trás no tempo. "Lembras-te quando me apareceu pela primeira vez?", pergunta-me. Lembro-me. "Liguei-te em pânico. Achei que me estava a esvair em sangue. Tu dizias-me que era normal, eu insistia que ia morrer, que não podia ser." Eram outros tempos. Não havia Internet. Não se falava destas coisas (não é que hoje se fale muito).
"Recuso-me a dizer essas coisas tipo 'o Benfica joga em casa' ou assim. Estou com o período, ponto."
Pergunto-lhe se acha que há um estigma à volta da palavra "período." Responde-me, segura: "Há. Recuso-me a dizer essas coisas tipo 'o Benfica joga em casa' ou assim. Estou com o período, ponto." E com os pensos e tampões, como é? "Ah, isso é ainda pior. Ao meu marido, que é todo esquisito, faz-lhe imensa confusão ver tampões. Tenho de esconder. Com as minhas colegas, e com amigas com quem estou mais à vontade, não tenho problemas. Digo que vou mudar de tampão. Não quero saber." Nisto tudo, o que é que a chateia mais? "Que partam do princípio que estou assim ou assado porque estou com o período. Aquelas coisas 'ai, agora está de mau humor porque está com o período', ou 'está insuportável, deve estar com TPM.' Há uns anos, numa feira, entrei num restaurante e o empregado começou a desatinar e às tantas disse-me 'você só pode estar naquela altura do mês.' É uma falta de respeito." Neste caso, não é só o país que temos, é o mundo que temos. O problema é global.
Há, no entanto, uma luz ao fundo do túnel. E é do tamanho da Escócia. Isto porque o parlamento escocês aprovou, no final de fevereiro, um projeto de lei para disponibilizar produtos de higiene feminina de forma gratuita a todas as mulheres. O plano do Governo, designado "Period Products Bill" – com um custo anual de implementação de cerca de 29 milhões de euros – consiste em oferecer, gratuitamente, tampões e pensos higiénicos em locais públicos previamente designados. A medida fará da Escócia o primeiro país do mundo a avançar com uma regulamentação deste tipo, e tem como objetivo combater o "period poverty", designação dada aos altos níveis de pobreza, e consequente falta de meios de higiene, que afeta todas as mulheres que não conseguem suportar as suas necessidades básicas durante a menstruação.
Na verdade, apesar de ser um país daquilo a que nos acostumámos a chamar de "primeiro mundo", uma em cada cinco mulheres escocesas não consegue comprar produtos de higiene íntima, garantiu um estudo divulgado pela associação Women for Independence, em 2018. A pesquisa revelou também que 45% das inquiridas já terá usado "papel higiénico, jornais, meias, toalhas ou roupas antigas" como alternativa aos tradicionais produtos de higiene, leia-se, pensos, tampões ou copos menstruais. Noutras vitórias, ou melhor, noutros campeonatos, o documentário Period. End Of Sentence foi galardoado, em 2019, com o Óscar de Melhor Curta Documental, provando que nem todos os temas-tabu estão condenados a caixas de Pandora eternamente fechadas. O filme, realizado por Rayka Zehtabchi, conta a história de um grupo de mulheres indianas que produzem produtos de higiene – combatendo assim o (gigantesco) estigma que existe contra a menstruação no seu país e conquistando alguma independência financeira – e convenceu os membros da Academia.
Agora só falta sermos nós, mulheres, a darmos o próximo passo. E se noutra vida me cruzar com aquela professora e voltar a tirar, por engano, um penso higiénico da minha mochila – e, loucura das loucuras, o colocar em cima da mesa – sou eu que faço questão de me levantar e sair da sala de aula.
Artigo originalmente publicado na edição de abril 2020 da Vogue Portugal.