Entrevistas  

Com três produções Saint Laurent em Cannes, o diretor criativo Anthony Vaccarello fala sobre fazer filmes

15 May 2024
By MARK HOLGATE

Gray Sorrenti/ Cortesia Saint Laurent

Hoje em dia, Anthony Vaccarello não está apenas de olho na Moda, mas também no cinema, com três produções Saint Laurent no Festival de Cinema de Cannes.

Anthony Vaccarello, diretor criativo da Saint Laurent, terá muito trabalho no Festival de Cinema de Cannes deste ano. A Saint Laurent Productions, uma unidade relativamente nova criada pela casa para produzir filmes de cineastas icónicos - a sua primeira proposta, em 2023, foi Strange Way of Life, de Pedro Almodóvar - vai estrear três filmes este ano no festival: The Shrouds, de David Cronenberg, Parthenope, de Paolo Sorrentino, e Emilia Perez, de Jacques Audiard, com Selena Gomez, Zoe Saldaña e Edgar Ramirez, entre outros.

O que se segue é uma conversa com Vaccarello na preparação para Cannes. E o que emergiu da nossa conversa é que, embora Vaccarello seja um cinéfilo, também percebeu astutamente que a melhor forma de um nome venerável da Moda fazer a diferença criativa no mundo atual - ao mesmo tempo que alia duas das grandes obsessões culturais de França, a Moda e o cinema - era oferecer o tipo de apoio financeiro que permitiria aos realizadores fazer o tipo de filmes que realmente querem fazer.

A Saint Laurent produziu os figurinos dos três filmes, mas não se verá qualquer tipo de jogo comercial - seja através da colocação de produtos ou com os figurinos transformados em coleções cápsula e afins. Vaccarello é um designer perspicaz que compreende que, muitas vezes, a criatividade e a comercialidade têm de estar de mãos dadas - no entanto, com este projeto de paixão, ele acredita que, por vezes, também se podem admirar mutuamente à distância.

Cortesia Saint Laurent Productions

Anthony Vaccarello: O cinema sempre foi algo que me interessou muito, muito - nasci na Bélgica, que não é o país mais excitante do mundo [risos], e por isso o cinema foi um bom campo para explorar, para ver algo que não era a minha vida real... para fugir um pouco e sonhar. Na escola de Belas Artes que frequentei antes de La Cambre [a famosa escola de Moda em Bruxelas], vi o trabalho de realisateurs [realizadores] como [Pier Paolo] Pasolini e [Rainer Werner] Fassbinder, e queria ver mais e mais, aprofundar o que eles faziam. Não era fã de tudo o que eles faziam, mas os seus filmes estranhos eram o meu género.

É interessante que diga Fassbinder e Pasolini, porque o trabalho de ambos os realizadores é visualmente belo, de formas muito diferentes - bem, talvez belo não seja a palavra certa; talvez impressionante. É um tipo de beleza: uma beleza suja.

Sim, exatamente. De que filmes gostou particularmente? De Pasolini, Salò [Salò, ou os 120 dias de Sodoma] e Teorema [Theorem].... Salò foi um grande choque para mim.

Nunca consegui ganhar coragem para o ver. Sei que não é exatamente uma experiência de visualização confortável. É forte - e está relacionado com o que está a acontecer hoje, penso eu. E de Fassbinder, quero dizer: todos eles. De Querelle a The Bitter Tears of Petra von Kant....

Sim, a Petra von Kant é espetacular: A personagem é uma designer de Moda, certo? Sim, adoro isso.


Sempre achei que era um pouco cliché assumir que os designers se inspiram em filmes - sabe, “Oh, estava a olhar para os figurinos de tal e tal para esta coleção” - mas gostava de saber se o cinema tem algum peso na sua forma de pensar como designer. Talvez o sentido de escapismo, ou a noção de uma determinada personagem? Quando olho para as suas coleções, vejo e sinto sempre uma personagem muito mais do que uma série de inspirações visuais. Quando olho para os filmes que adoro, não estou a pensar no visual, ou em roupas específicas - veja-se Belle de Jour, por exemplo: A atração é sempre mais a personagem que se mistura com a história e que faz com que um filme seja algo que se recorda. Era essa a pergunta, ou não?

Uma espécie de pergunta [risos] - acho que estou interessado, dado que lançou a Saint Laurent Productions, em saber se o cinema estimula algum dos seus processos criativos de alguma forma… A Saint Laurent sempre foi uma casa tão cinematográfica, mas pensei que seria bom para a casa estar diretamente ligada à produção de filmes, em vez de se limitar a fazer figurinos, o que é mais esperado.

O próprio Saint Laurent fez figurinos para filmes, como Belle de Jour... Belle de Jour, e La Chamade, que também era protagonizado por Catherine Deneuve - e Saint Laurent também fazia figurinos para o teatro, o que não é a minha praia. Mas nunca produziu filmes.

Sei que se tornou muito amigo de Catherine Deneuve. Já falou com ela sobre entrar no mundo do cinema? Sim, ela disse: “É corajoso e é uma coisa boa para o cinema”. Sei que alguns produtores franceses são um pouco frios quanto à ideia de uma casa de Moda produzir filmes, mas não estão habituados a isso. É interessante mudar as regras.

Fale-nos um pouco sobre a criação da Saint Laurent Productions. Quando comecei na Saint Laurent, sempre quis ver a minha coleção captada por um mestre, da mesma forma que as colecções da Saint Laurent eram fotografadas por Helmut Newton. No início, colaborava nestes pequenos filmes sobre as colecções com Wong Kar-wai ou Brett Easton Ellis; sempre quis ter os melhores realizadores para associar ao nome da Saint Laurent. Começou assim, lentamente: um pequeno clipe de um filme de quatro, cinco minutos.

Depois conheci o Gaspar Noé e tornámo-nos muito próximos. Começámos com um pequeno clipe de filme e depois fizemos a nossa primeira curta-metragem [Lux Aeterna, ou Self 04, que tinha como protagonistas, entre outras, Béatrice Dalle e Charlotte Gainsbourg], que foi a Cannes [em 2019]. Quando penso na minha carreira na Saint Laurent, é uma das minhas melhores recordações, porque foi selecionado para ser exibido às 10 da noite - e quando era miúdo via sempre o festival de Cannes com a minha mãe, e aquelas coisas que eram exibidas às 10, ou à meia-noite, eram sempre os filmes que me interessavam: os controversos, como Crash de David Cronenberg.

Estar lá com o Gaspar e a Béatrice foi um momento importante. Comecei a pensar em trabalhar com cineastas que admirava quando era mais novo, e começámos com o Pedro [Almodóvar], que era para mim como o meu padrinho. Correu super bem e pensámos: “Muito bem, vamos continuar a realizar esse sonho”.

Pode falar um pouco mais sobre o impulso de trabalhar com realizadores específicos? Desde o início, o objetivo era ajudar os realizadores a fazer os seus filmes, porque hoje em dia é cada vez mais difícil para o cinema conseguir o orçamento para fazer o que quer sem sufocar a produção de forma a que tenham de mudar a sua visão. O meu papel [na Saint Laurent Productions] é escolher o cineasta.

[Quando trabalhamos juntos] eles partilham o que querem fazer, os guiões, falamos do elenco. É assim que construímos o projeto. Tenho muito respeito pelo que eles fazem e sinto que não seria pertinente da minha parte dizer: “Estás enganado”. Os realizadores com quem trabalhamos são mestres na sua área.

Para nós, na Saint Laurent, dá-nos novas formas de comunicar. Ao fazer estes filmes, o nome da Saint Laurent fica para sempre. Quando o nome está num cartaz, é tão rápido - um mês depois, esquecemo-nos dele - mas daqui a 20 anos o nome Saint Laurent ainda lá está.

O próprio Saint Laurent era uma espécie de auteur da Moda: Quem ele era, e a sua visão, são tão evidentes nas suas criações, da mesma forma que pensamos na produção criativa de um [Jacques] Audiard, ou de um Cronenberg, ou de um [Jim] Jarmusch. Penso que a Moda e o cinema também são semelhantes na medida em que ambos têm aspetos criativos e comerciais, com diferentes designers ou realizadores a darem prioridade a um ou a outro. Com a sua última coleção, lembro-me de me ter dito, nos bastidores, que nem tudo tem de ser orientado pela comercialidade. É bom, por vezes, mostrar [uma coleção] e poder ter a liberdade de falar sobre arte e beleza - que nem tudo se baseia no dinheiro e na rentabilidade.

“Quem gosta dos filmes dele, gosta de Pedro Almodóvar”, diz Vaccarello sobre o lendário realizador espanhol.
Nico Bustos/ Cortesia Saint Laurent Productions

Disse que era um fã de longa data de Almodóvar. Como foi conhecê-lo pela primeira vez? Conhecemo-nos no Sunset Marquis [em Los Angeles]. Estava muito stressado, porque às vezes pensamos que os espanhóis, tal como os italianos - eu sou italiano -, vão ser muito calorosos e não são [risos]. Os filmes dele são histéricos e coloridos, e ele era o oposto disso, mas, ao mesmo tempo, era o que se espera de Pedro Almodóvar. Não sei bem como dizer isto, mas se gostamos dos filmes dele, gostamos de Pedro Almodóvar.

Tem contactado com os realizadores cujos filmes está a produzir, enviando-lhes mensagens ou telefonando-lhes para saber como está a correr? Depende da relação - com o Pedro ou com o Jim, sim.

Gostaria de lhe perguntar sobre os figurinos do filme de Almodóvar. Como é que foi esse processo? Foi interessante - estamos tão habituados a ver Westerns a preto e branco, mas quando o Pedro encontrou fotografias a cores do Last Train from Gun Hill, o filme em que se inspirou, as cores eram realmente muito fortes. Houve uma cena com o Pedro Pascal em que [Almodóvar] queria um casaco verde brilhante e eu pensei: “É um bocado estranho, mas tudo bem: é o Almodóvar.

Ele era muito específico em relação a todos os pormenores visuais - queria que parecesse um verdadeiro Western, sem qualquer toque moderno, mas com roupas que se encontrariam numa feira da ladra. Foi um pouco o que eu fiz quando comecei na Saint Laurent [voltando aos arquivos da casa], por isso brincámos com o primeiro arquivo do que eu fiz.

Foi o que fizemos também com os outros realizadores: Percorríamos os arquivos. Estou na Saint Laurent há oito anos e, com todas as coleções que fiz, há toneladas de roupas que podem ser usadas para criar guarda-roupas. Mas a maior parte do vestuário era personalizado e específico para o filme e a personagem.

Iglesias Mas/El Deseo/ Cortesia Saint Laurent Productions

Foi a Cannes com Almodóvar em 2023 e este ano tem lá três filmes: Emilia Perez, de Audiard, The Shrouds, de Cronenberg, e Parthenope, de Paolo Sorrentino. São três filmes muito diferentes e três realizadores muito diferentes, todos com carreiras muito profundas. É importante que os realizadores com quem trabalha já estejam bem estabelecidos? Desde o início, foi importante pensar no trabalho de produção prolongado e, sejamos honestos: é um orçamento, por isso é mais fácil trabalhar com pessoas que sabem fazer um filme e têm uma visão que eu adoro e respeito. Mas gostaria de alargar o que fazemos a jovens realizadores no futuro.

É uma altura interessante: A Amazon, ou a Apple, são alguns dos nossos maiores produtores, e podemos olhar para algo como a Met Gala para ver como o poder da cultura pop pode ajudar respeitosamente a financiar o trabalho de uma instituição cultural importante como o Costume Institute. Exatamente. Quer dizer, [os realizadores] estavam um pouco nervosos no início, mas depois perceberam: não se trata de colocar uma das nossas malas na sequência de abertura de um filme, ou de falar da marca durante o mesmo: Não quero ver o nome da Saint Laurent usado dessa forma e não vou produzir um filme sobre Moda ou usar um filme como uma oportunidade para fazer uma marca brilhar.

Reparei que nunca lançou nenhum produto ou coleção a partir dos filmes que produziu... Claro, totalmente. Não há nenhuma t-shirt Saint Laurent num filme.

Cortesia Saint Laurent Productions

Sei que é fã de David Cronenberg. Pelo que ouvi de The Shrouds, parece que tem a marca registada dele, o arrepiante, não é? Sim, é estranho. É muito ele, é muito... os filmes dele têm sempre aquela coisa esquisita da tecnologia com o corpo humano. Gosto do facto de ser sempre a mesma obsessão, mas tratada de forma diferente: Nunca se está a ver a mesma coisa, mas vê-se que ele volta ao mesmo tema.

E o que é que o atraiu para Sorrentino e Audiard? Jacques é um dos melhores cineastas franceses independentes - adorei Un Prophète com Tahar Rahim e De battre mon cœur s'est arrêté com Romain Duris. [O seu cinema] é sempre muito moderno e pessoal. Emilia Perez foi muito novo na sua abordagem e muito diferente do que ele fez no passado, mas, ao mesmo tempo, quando o vejo, vê-se claramente que é ele. Nunca é um cliché.

O mesmo acontece com Paolo Sorrentino. Para mim, foi como trabalhar com um novo Fellini. Gosto da poesia do guião - algo que parecia leve e fácil, mas que era apenas a superfície. Havia algo mais profundo nas entrelinhas. É um filme muito emotivo, provavelmente o mais emotivo até agora.

Cortesia Saint Laurent Productions

Há mais alguém com quem gostaria de trabalhar? De todas as pessoas com quem gostaria de trabalhar, seria Martin Scorsese. Conheci-o durante uma festa depois dos Óscares e foi super inspirador. Para mim, é o mestre dos mestres - adoraria fazer algo com ele. E, claro, Francis Ford Coppola.

Por último, gostaria de saber: Como é que é ver o seu nome nos créditos do filme? Fiquei emocionado quando estava sentado ao lado do Pedro em Cannes e vi o meu nome - os gráficos do filme são super arrojados e super vermelhos, e quando vi o nome dele e depois o meu nome, fiquei tipo, "Caramba!" Quando se é um miúdo de Bruxelas e se vê o nosso nome em frente de toda a gente em Cannes, é emocionante. Houve uma pequena lágrima.

Traduzido do original, disponível aqui.

MARK HOLGATE By MARK HOLGATE

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