Os códigos da Valentino estão presentes nas criações de Michele, mas também está presente uma energia cool, que é toda sua e que grita 2025. Modelo: Luiza Perote em Valentino. Editora de Moda: Tabitha Simmons. Fotografia: Annie Leibovitz.
Quando Alessandro Michele estava a crescer em Roma, na década de 1970, um dos seus hobbies favoritos era ir ao guarda-roupa da mãe e passar as mãos pelo tafetá esvoaçante, pelas lantejoulas brilhantes e outros adornos do passado.
A mãe de Michele trabalhava como assistente de um executivo numa empresa de produção cinematográfica, uma carreira que exigia uma apresentação deslumbrante, e um vestido acabou por cativar particularmente a imaginação de um jovem Michele. Feito de crepe de chine ao estilo de Valentino, era comprido e de gola alta, com um corte a direito de uma forma que relembrava Michele uma vela. A parte da frente do vestido era totalmente preta, o que a mãe de Michele considerava ser elegante. No entanto, no verso, estava bordada uma borboleta enorme, em rosa e lilás – um gesto elegante mas subversivo, que sugeria metamorfose e beleza transitória. A mãe de Michele explicou que tinha comprado o vestido para uma premiere; pareceu-lhe, recordou mais tarde, “como se ela me estivesse a dizer: ‘Usei-o num mundo que agora já não existe’”.
Quatro décadas depois dessas aventuras de guarda-roupa, Michele entrou, no ano passado, na posse de outro tesouro do vestuário: o arquivo da casa Valentino, para a qual foi nomeado diretor criativo na primavera de 2024. No seu primeiro dia nos escritórios da Valentino, num palácio renascentista na Piazza Mignanelli, em Roma, Michele entrou num armazém extraordinário de peças de vestuário, sapatos e outros objetos, todos eles construídos com uma leveza requintada que desmente um rigor quase arquitetónico. No seu anterior papel como diretor criativo da Gucci, um cargo que ocupou durante quase oito anos, até finais de 2022, Michelle estabeleceu-se como um curador exímio, remodelando a marca com o seu gosto pelo vintage e estilo boémio e vestindo os seus admiradores com peças que pareciam ter sido encontradas em saldos de igrejas inglesas ou retiradas dos guarda-roupas da nobreza italiana. A entrada no arquivo de Valentino – e o acesso aos técnicos especializados cujo saber-fazer sustentava o seu conteúdo notável – deu a Michele uma oportunidade sem precedentes: alimentar a sua própria imaginação, manipulando, avaliando e recriando o legado material do seu famoso antecessor.
No final de uma tarde de sábado em setembro, pouco menos de seis meses após o seu primeiro dia no arquivo, Michele estava em Paris, nos escritórios da Valentino na Place Vendôme, onde estava a dar os últimos retoques no que seria a sua primeira apresentação de ready-to-wear para a marca, a ser apresentada na tarde seguinte. Faltava tomar algumas decisões sobre acessórios e calçado, e fazer ajustes de última hora no comprimento das bainhas ou decotes. Michele sentou-se numa cadeira numa das pontas do que outrora tinha sido uma grande sala de receção, com tetos altos e detalhes dourados. As mesas compridas estavam cobertas de acessórios: turbantes, óculos e carteiras, incluindo uma seleção de clutches que pareciam ornamentos de porcelana em forma de gatos. Membros da sua equipa sentavam-se ao seu lado; o seu parceiro, Giovanni Attili, pairava ao fundo. Na ponta da sala, em frente a um grande espelho emoldurado, estava um espelho ainda maior. À medida que cada modelo caminhava em direção a ele, Michele podia ver simultaneamente a roupa de frente e de trás, de modo a verificar a sua consistência interna e subversividade – o diálogo entre, por assim dizer, o decote preto alto e a borboleta com bordados vívidos.
O ambiente era calmo. “Está uma confusão”, brincou Michele, quando me juntei a ele e à sua equipa. “Podemos relaxar um pouco, está quase tudo pronto.” Michele, que fez 52 anos em novembro, estava vestido com calças de ganga azuis, uma camisa de xadrez Black Watch e um par de Vans vermelhas e brancas. O seu cabelo caía-lhe sobre os ombros, como Jesus Cristo pintado por Caravaggio, apenas preso por uma trança folgada de cada lado. Os seus pulsos estavam tão carregados de pulseiras – camafeus com elos, diamantes brilhantes, diversas braceletes – que tilintavam de cada vez que fazia um ajuste. As modelos estavam também adornadas de acordo com a estética de abundância peculiar de Michele. “Tente andar com as mãos nos bolsos”, pediu a uma delas, vestida com uma saia castanha, de comprimento à altura da barriga da perna, uma blusa de gola alta e um casaco de pele, tudo feito com o mesmo tecido de seda com padrão do arquivo da Valentino; usava também um par de óculos de sol ao estilo John Lennon dos quais caíam lantejoulas e uma corrente dourada volumosa com um pendente brilhante, como um troféu de rapper misturado com a herança valiosa de uma duquesa viúva. “É difícil ficar de pé?” Michele perguntou a outra modelo, que tropeçava com sapatos de tiras pretos e dourados, combinados com collants brancos rendados, um body de lantejoulas e um negligé de georgette-crepon com folhos – o tipo de roupa adequada para encomendar caviar e ostras ao fim da tarde, no serviço de quartos do Beverly Hills Hotel. “É melhor continuar a andar”, disse-lhe Michele, com compaixão.
Outra modelo surgiu com uma roupa que brincava com o conservadorismo: calças cinzentas de cintura alta, feitas à medida, com um casaco de cor creme e em padrão polka-dot. O casaco estava preso com um laço de cetim no tom de vermelho que Valentino Garavani – que desenhou as roupas que carregam o seu nome durante 45 anos antes de se reformar, em 2008 – tornou seu décadas antes; foi complementado com luvas feitas com uma delicada rede preta picotada por pontos bordados em branco. O cosplay austero foi, no entanto, minado por jóias punk: um piercing para o nariz com um diamante, como se tivesse sido feito para um touro imperial, bem como uma forma crescente de jóias suspensa do lábio inferior – sadomasoquismo para o rosto. Houve um alarido e um frenesim de pesquisas no Google em torno da modelo, quando alguém salientou que, com o seu rosto em forma de coração e os seus longos cabelos castanhos, estava parecida com Isabelle Adjani. A rapariga corou com a comparação e sorriu tanto que as jóias dos lábios caíram.
Vermelho profundo: o vermelho é cardeal no universo Valentino, mas na opinião de Alessandro Michele, visto aqui no seu escritório na sede da casa em Roma com a modelo Ali Dansky, nem tudo tem de ser tão brilhante. “Gosto desta poeira à volta da marca. O pó é precioso”.
Durante várias horas, a equipa trabalhou sem parar, Michele sustentado por um prato de fatias finas de prosciutto. “Está cansada?”, perguntou ele a uma mulher que vestia uma camisola amarela da Valentino com uma fita métrica pendurada ao pescoço – a chefe das costureiras, que estava a trabalhar em ajustes um andar acima. Michele disse-me que a qualidade do trabalho que Valentino Garavani tinha comandado tinha sido uma revelação. Mostrou-me um vestido sem alças, até ao chão, de seda e chiffon, num azul cerúleo com padrão polka-dots; tinha um corpete com pregas horizontais, com uma explosão de folhos na cintura descaída, por baixo da qual caía uma saia com plissados estreitos, com mais folhos em cascata a rodar abaixo do joelho. “São tão complicadas”, disse Michele, sobre os plissados irregulares. “É como um origami. É inacreditável. Ele tinha uma forma muito específica de ser engenheiro.” Fiquei intrigado com o facto de Michele estar a usar a terceira pessoa: O vestido era uma reprodução aproximada de algo do arquivo ou algo novo? Era Valentino Garavani ou Alessandro Michele?
“Este é ele, comigo”, respondeu Michele. “É quase ele. Tentei torná-lo um pouco diferente. Por vezes, tento reproduzir o mesmo, porque é tão fascinante. Mas acho que estamos os dois no mesmo vestido”. O vestido não se parecia com nada que eu tivesse visto alguém usar durante décadas; poderia ter vindo do guarda-roupa da Princesa Diana, no início dos anos 80. “Eu gosto dele porque parece muito démodé agora, mas as coisas que parecem velhas e démodé são as melhores”, disse Michele. “Além disso, daqui a um mês, vão estar super na moda.”
Essa metamorfose – de démodé a totalmente atual – começou na tarde seguinte, quando a coleção foi apresentada, não num local chic no centro de Paris, como era prática da Valentino, mas na Périphérique, um espaço de artes marciais que foi repensado para a ocasião. Convidados e amigos de Michele, incluindo Elton John, Harry Styles e Hari Nef, entraram pelo chão de espelhos estalados e sentaram-se em poltronas e chaises envoltas em lençóis de pó, como numa mansão degradada à espera de renovação, assombrada por fantasmas elegantes. Os modelos percorreram um caminho ondulante entre os espectadores, oferecendo uma exibição íntima de ricos brocados, peles drapeadas, musselina flutuante, rendas delicadas, lantejoulas cintilantes e folhos esvoaçantes, com uma banda sonora triste da canção do século XVII Passacaglia della Vita, sobre a transitoriedade da vida. Quando o vestido azul apareceu, a cerca de dois terços do fim, a modelo estava estranhamente descomposta, de cabeça descoberta e praticamente sem maquilhagem – como uma criança que tinha acabado de vestir um vestido da gaveta de disfarces da mãe. Enquanto percorria a passerelle, a longa coluna do vestido caía a direito; espelhadas no chão fragmentado, as complicações rodopiantes da saia de musselina brilhavam e esvoaçavam, vivas como uma chama azul pura.
Quase dois meses depois, encontrei-me com Michele no seu escritório em Roma. Mobilado com uma secretária dupla do século XIX e com uma cama de dia do século XVIII com almofadas de cetim amarelo, o quarto era um mosaico dos seus ocupantes anteriores: desde o teto em cascata do final do século XVI aos murais do século XIX, passando pelo papel de parede falso de boiserie, instalado por Valentino Garavani nos anos 80 e agora enrugado pela idade. “É uma espécie de diálogo sinistro com o belo teto”, diz Michele. “Gosto da confusão.” Estava ansioso, acrescentou, por explorar as relíquias dos séculos passados que tinham sido cobertas pelo papel de parede agora vintage de Valentino.
Conheci Michele em Roma, na primavera de 2016, pouco mais de um ano depois de ter sido nomeado diretor criativo da Gucci. Naquela manhã, ele parecia pouco alterado, com a mesma barba luxuriante e cabelo invejavelmente espesso, escuro e com risco ao meio, embora nesta ocasião o usasse num par de tranças apertadas. A única diferença que notei foi nas jóias que adornavam os seus dedos; em vez de anéis de prata, como usava há oito anos, Michele tinha passado a usar ouro antigo com um brilho quente. Usava uma camisola de caxemira cor de vinho e calças largas de bombazina castanha. À volta do pescoço, tinha uma série de colares: um babete de camafeus neoclássicos do século XVIII; um fio de pérolas selvagens; e uma longa corda de contas de cerâmica turquesa com decorações florais pendentes que datam ao final da era ptolomaica. Não era, reconheceu, uma peça para usar no dia a dia: uma garfada na mesa do almoço poderia infligir danos que tinham sido evitados durante 2000 anos.
O carisma pessoal de Michele é considerável: é vulnerável, cativante e intelectualmente curioso. “Podemos passar um segundo com ele e é como passar três dias com outra pessoa”, disse-me o seu amigo íntimo Elton John num email. (John também notou outro dos atributos sedutores de Michele, indetetável em fotografias: a sua predileção por uma fragrância fabricada pela primeira vez há quase 200 anos pelo boticário florentino, Santa Maria Novella). Nos anos em que esteve à frente da Gucci, Michele sentia-se em casa ao lado de Jared Leto ou Harry Styles na passadeira vermelha. Mas antes da sua ascensão, Michele, que trabalhava na empresa há 13 anos, era um desconhecido. Tendo trabalhado como mão direita de Frida Giannini, a sua antecessora imediata como diretor criativo, mas também com Tom Ford, que nos anos 90 tornou a Gucci sinónimo de sensualidade e elegância ao estilo dos anos 70, Michele tinha um conhecimento enciclopédico da marca. No cargo mais alto, acrescentou a isso o seu próprio sentido estético idiossincrático, que fundiu um fascínio pela ornamentação renascentista, o drama barroco, o punk do século XX e dezenas de outras influências.
No início, a nova Gucci de Michele foi recebida com desconfiança, mas, em pouco tempo, a sua visão foi acolhida com entusiasmo tanto pelos críticos como pelos consumidores. A criatividade rebelde de Michele estava, no entanto, associada a uma ética sólida de trabalho. “O grande segredo de Alessandro é que ele é realmente alguém com quem é divertido estar – há sempre tempo para uma piada – mas há sempre seriedade”, disse-me Michela Tafuri, que trabalhou com Michele durante grande parte das últimas duas décadas. Ginevra Elkann, cineasta, amiga e vizinha de Michele em Roma, disse-me: “Ele parece muito exuberante, e é-o, sem dúvida. Mas há um lado aprumado que não se esperaria – algo organizado e preciso. Ele não está em todo o lado”.
A organização e o trabalho árduo de Michele valeram a pena para a Kering, a empresa-mãe que detém a Gucci; as receitas da marca cresceram durante o seu mandato de pouco menos de 4 mil milhões de euros para cerca de 10 mil milhões na altura em que ele e a empresa se separaram, no final de 2022. “Deixei a empresa porque havia algo que já não estava a funcionar”, disse-me Michele. O crescimento estava a ser feito a uma escala que já não era humana. “É impossível – não é natural”, disse ele. “O melhor crescimento é aquele que se faz lentamente – é preciso preocupar-se com a forma como se cresce. É como um corpo. Precisa de tempo”. O ritmo era insustentável para Michele, a nível pessoal e até criativo. “Estava a arriscar-me a ser prisioneiro daquele lugar – sempre com as mesmas pessoas no avião, no hotel. Estava um pouco dentro de uma bolha”, diz-me. A Valentino, por outro lado, faturou cerca de um décimo dos valores da Gucci: uma operação de uma pequena boutique por comparação.
Antiguidade e modernidade: um laço vermelho reluzente compensa uma peça de folhos, transparência e bordados dourados como pergaminhos antigos usados pela modelo Jiahui Zhang – vista aqui no Museo Nazionale Etrusco di Villa Giulia, em Roma.
Impedido por um acordo de não concorrência de um ano, Michele dedicou-se a outras paixões: restaurou um apartamento num célebre palácio romano que se distingue pela sua própria torre medieval; está agora cheio de objetos das coleções de Michele, que incluem pinturas renascentistas e azulejos de Delft. Iniciou o restauro de um castelo na sua propriedade rural em Lazio, a norte de Roma, onde comprou uma área rupestre para a salvar da invasão da suinicultura industrial. A coleção imobiliária de Michele ainda não compete com a de Valentino, que circulava entre a sua villa romana, um château nos arredores de Paris, casas em Nova Iorque, Londres, Capri e Gstaad e o seu iate. Michele adquiriu, no entanto, um apartamento num andar de um palácio veneziano do século XV, mostrando-me, numa fotografia do seu telemóvel, como está rodeado de canais em ambos os lados. “Gosto de sítios bonitos”, diz, impotente. “Não me interessam os carros, nem nada do género – a única coisa que me interessa são os lugares históricos. Gosto dos sítios onde as pessoas morreram, onde as pessoas viveram.”
Quando Pierpaolo Piccioli, que passou 25 anos na Valentino, deixou o cargo de diretor criativo, em 2024, Michele foi a escolha óbvia, disse-me Jacopo Venturini, o CEO da empresa. “Sabia que ele adorava trabalhar num arquivo e, na Valentino, temos um arquivo muito grande”, afirmou Venturini. “A Valentino não é uma caixa vazia. Não é uma marca onde se pode fazer o que se quiser, porque temos um passado.”
Valentino Garavani e a marca que ele, juntamente com o seu sócio e ex-parceiro, Giancarlo Giammetti, fundaram, fizeram parte da história romana. Tendo-se proposto, em 1960, a criar uma casa de Alta-Costura equivalente às de Paris, Valentino vestiu princesas e esposas de presidentes, bem como aqueles que aspiravam a parecer-se com elas. Quando era adolescente e crescia em Roma, Michele foi mais influenciado pela música e pelas inovações de designers como Vivienne Westwood do que pelo estilo de Alta-Costura que Valentino criava. Mas o próprio Valentino era uma grande personagem na cidade. “Ele era conhecido, como o Papa”, disse-me Michele. “Por vezes, o Papa passava de carro e o Valentino também. Em Roma, temos uma ligação tão fácil com o poder – estamos em contacto com o Império Romano e com uma longa história humana. Gosto de juntar Valentino e o Papa, porque Roma tem a ver com Deus, mas também tem a ver com decadência, beleza, riqueza e relações amorosas.” Michele só conheceu Valentino, atualmente com 92 anos, de passagem, há alguns anos, embora o homem mais velho tenha enviado uma mensagem ao mais novo quando este foi nomeado pela primeira vez.
“Não falei realmente com o Sr. Valentino, mas é como se tivesse falado com ele, estando em sua casa – é possível extrair muitas coisas das relíquias, das peças da sua vida”, disse Michele. “Também podem contar-nos uma história muito diferente. Podem dizer-nos coisas que talvez ele nunca dissesse à nossa frente – sobre a sua alma delicada e a sua ideia de liberdade.”
Embora os clientes de Valentino fossem frequentemente figuras do establishment, o próprio Valentino estava longe de ser convencional ou conservador, observou Michele. “Pensamos nele como um homem muito clássico, mas isso é errado”, afirmou. Tal como Yves Saint Laurent, Valentino só passou a ser considerado o padrão de elegância devido à sua inovação. “Com toda a mudança que introduziram na cultura, tornaram-se a cultura”, disse Michele. “Por isso, abordamo-los como clássicos. Quando vemos uma senhora com uma camisa de cor fúcsia e uma saia de veludo preto, dizemos: 'Ela é elegante, tem um ar tão clássico, tão Saint Laurent'. Ou quando vemos uma senhora com um vestido chic com folhos, dizemos: “É tão Valentino”. Mas eles fizeram muitas revoluções. Esquecemo-nos. Valentino, ele viveu a sua vida como homossexual nos anos 70. Ninguém o fez, no mundo da Moda. Ele fê-lo de uma forma sem arrependimentos”.
Em Paris, a coleção de Michele e o ambiente atmosférico no qual foi apresentada foram recebidos com agrado e entusiasmo por críticos e fãs que apreciaram a forma como Michele combinou a sua própria estética maximalista com o legado de artesanato refinado de Valentino. Michele ficou bastante satisfeito com a receção, embora quando o encontrei dois dias depois do desfile, estivesse a ver alguns comentários menos elogiosos nas redes sociais, onde alguns observadores se queixaram, com uma veemência considerável, que ele estava simplesmente a repetir o que tinha feito na Gucci. “É uma coisa muito interessante sobre o nosso tempo – o facto de as pessoas serem tão violentas contra as pessoas que são livres de fazer o que querem fazer”, observou. Um comentador tinha-se insurgido contra os acessórios divertidos de Michele: “Está a gritar por uma senhora com uma mala de gatinho!”, disse ele. Ele suspeitava que os seus críticos eram motivados pelo seu próprio sentimento de falta de poder. “Quanto mais livre se é, mais as pessoas enlouquecem”, continuou. “Acho que as pessoas sentem que não são livres. E se estivermos a gerir a nossa liberdade, pensam: “Porque é que tu fazes o que queres e eu não posso fazer o que quero? Isso é interessante”.
Durante a sua licença sabática, Michele terminou um livro, La Vita delle Forme (A Vida das Formas), com Emanuele Coccia, professor de filosofia. Michele sempre apresentou uma perspetiva crítica e teórica à sua produção criativa, influenciada em parte pelo trabalho intelectual de Attili, o seu parceiro, um professor de planeamento urbano. Durante o tempo em que não trabalhava, Michele por vezes infiltrava-se nas aulas de Attili na universidade de Roma. “Na minha próxima vida, quero estudar toda a minha vida”, diz-me. Attili encorajou-o a dar tempo ao tempo depois de deixar a Gucci. “Foi ele que disse: 'Nós podemos mudar a nossa vida. Tu podes mudar a tua vida. Eu estou bem. ”
No livro, cuja publicação em inglês está para breve, Michele descreve as ideias que estiveram na base do que, nos últimos anos, procurou explorar na passerelle. Estas incluem o seu então inovador posicionamento sobre as identidades de género não binárias e a sua expressão – um gesto que, nos anos seguintes, se tornou quase comum. Em cada uma das suas colecções, escreve, “persegui um ideal de beleza e ambiguidade que revive nos corpos e identidades esquecidas.... Desde o início... tornei num híbrido tudo o que encontrei: como forma de incluir a diversidade dentro de cada forma”.
Inevitavelmente, Michele disse-me que o seu trabalho na Valentino iria continuar as explorações que tinha feito na Gucci: a sua sensibilidade intelectual e estética é constante, mesmo que o património material no qual está a trabalhar seja diferente. “Acho que vai mudar um pouco – cinquenta-cinquenta”, disse-me. “Quero manter a alma, mas tornar a marca mais viva. Mas eu gosto desta poeira à volta da marca. O pó é precioso”.
Quando Michele começou a planear a sua primeira coleção de Alta-Costura para a Valentino, não conseguia parar de pensar num quadro que comprou há alguns anos e que está pendurado atrás de uma mesa de jantar na sua casa em Roma. Pintado por François Quesnel, que viveu em Paris no final do século XVI, e cujas obras Michele coleciona, mostra uma mulher com um vestido escuro, estreito na cintura e com um corte muito baixo no corpete, com o rosto e o decote emoldurados por um delicado colarinho branco vertical, o pescoço adornado com uma gargantilha de pérolas.
“Ela era uma mulher rica”, explicou Michele durante um almoço de alcachofras fritas e linguado de Dover no Ristorante Nino, um local da velha guarda perto do escritório da Valentino. “As pessoas pensam que o vestido preto tem apenas a ver com luto, mas tinha a ver com riqueza, porque era a cor mais preciosa de sempre. Isto é uma espécie de falso preto – beringela escura.” O que atraiu Michele não foi apenas a cor, mas o simbolismo codificado no quadro. Na parede atrás dela está pendurado um retrato de si própria quando era uma mulher mais nova, e ao seu lado está a sua filha pequena – para demonstrar o seu papel maternal. Da sua cintura, uma corrente de ouro suspende um medalhão que contém um retrato do seu falecido marido. “Ela tinha este legado de um grande reino dele”, disse Michele. “É uma forma muito interessante de dizer: 'Sou uma mulher poderosa'. “Ele tinha enviado uma imagem do quadro ao diretor do atelier de Alta-Costura. “Eu disse: 'Vamos começar por aqui. Se calhar vamos longe com isto, mas vamos começar.
Resposta às preces: A abordagem sem restrições de Michele ao design da Valentino está a ser alimentada por Roma. “Tem a ver com Deus”, diz sobre a sua cidade-mãe, “mas também tem a ver com decadência, beleza, riqueza e relações amorosas”. O resultado? Roupas de outro mundo.
Michele fez lindos vestidos únicos enquanto esteve na Gucci, como o vestido rosa de seda e chiffon até ao chão com um decote profundo e apliques de estrelas e luas que Florence Welch usou nos Grammys em 2016, do qual me disse: “Senti-me tão confortável – e senti-me tão eu própria. O Alessandro viu o que era bonito e excitante na forma como eu me queria vestir”. Mesmo antes da sua primeira coleção de Alta-Costura para a Valentino (o desfile teve lugar esta tarde em Paris), Michele demonstrou a sua interpretação do virtuosismo da Valentino ao vestir Apple Martin, a filha de Gwyneth Paltrow e Chris Martin, para o Le Bal des Débutantes em Paris, em novembro, criando um vestido azul-celeste sem alças com seis camadas de chiffon de seda plissé. (Paltrow e Chris Martin também usaram Valentino.) O desfile de Alta-Costura de hoje é, no entanto, a primeira oportunidade que Michele tem para oferecer uma coleção completa de vestidos únicos, feitos à mão, não para artistas ou para os seus descendentes, mas para os guarda-roupas de senhoras de posses – o equivalente moderno da mulher no retrato por cima da sua mesa.
Foi necessária uma mudança cognitiva para não pensar em como replicar um design, como faria reflexivamente para ready-to-wear, explicou Michele; as proezas técnicas dos alfaiates da Valentino desafiam a sua imaginação de uma forma quase metafísica. A Alta-Costura, disse, “é um vestido que não responde à vida real”. E continuou: “Podemos pôr no vestido o que quisermos, sem limites. Talvez seja difícil, porque eu gosto de ter limites. Estou sempre a lutar com os limites. Estou sempre a tentar ser como a água, atravessando o pequeno espaço para destruir as coisas que estão dentro dos limites. Aqui, não há ninguém contra mim”. E continua: “A liberdade é uma coisa tão delicada, sabe. Significa... completamente nua. Significa... completamente quem somos”. Havia outra diferença significativa no processo: Nas colecções ready-to-wear, a equipa de Michele apresenta-lhe um modelo completamente vestido, como na prova em Paris. Mas para a Alta-Costura, explicou, a modelo fica diante dele quase nua, enquanto as costureiras constroem o vestido em cima dela – agrupando-se em torno do corpo despido numa atmosfera que Michele descreveu em termos sacramentais.
“A Alta-Costura é a semente onde tudo começou – é um rito arqueológico que estamos a manter vivo”, disse-me. “Quando vejo os alfaiates a rodear aquela modelo e o vestido comigo, mantendo vivo esse rito, sinto que há um espírito, um espírito muito forte e poderoso, que é preciso preservar. Como uma coisa religiosa”. As costureiras, disse ele, “sabem como gerir a coisa, como as freiras, como as vestali” – as sacerdotisas da Roma antiga que cuidavam da chama sagrada no templo da deusa Vesta, cujas ruínas se encontram no Fórum, a uma curta distância a pé do palazzo Valentino. A comparação recordou a Michele, uma vez mais, a passagem fugaz da vida e a brevidade da existência individual face a milhares de anos de história. Mais prosaicamente, recordou-lhe a natureza transitória da Moda. Sobre a cultura que se tornou a sua herança na Valentino, disse: “Eles querem manter e preservar a chama para sempre, e eu vou ser uma das pessoas que tentam gerir a chama. Mas vou ser apenas um. A chama é a coisa que temos de manter viva”.
Traduzido do original, disponível aqui.