O ovo ou a galinha? É uma adivinha um pouco mais traiçoeira que a outra, a original, porque nos obriga a pensar como se fôssemos crianças. Mas só aparentemente. Em quase todas as culturas, o ovo é primordial. Tanto na alimentação como na simbologia. Ou seja, um ovo é tão mais que apenas um ovo. Basta colocar a criatividade ao serviço da célula.
O ovo ou a galinha? É uma adivinha um pouco mais traiçoeira que a outra, a original, porque nos obriga a pensar como se fôssemos crianças. Mas só aparentemente. Em quase todas as culturas, o ovo é primordial. Tanto na alimentação como na simbologia. Ou seja, um ovo é tão mais que apenas um ovo. Basta colocar a criatividade ao serviço da célula.
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Artwork de João Oliveira © Getty Images
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Nas semanas que antecederam a redação deste texto, sucederam-se coisas tão incríveis a um ritmo tal que, de repente, o Sporting sagrar-se quase-campeão ou a aterragem da sonda Perseverance em Marte pareciam coisas tão banais como usar máscara na rua. Mas no meio de tanto pequeno passo para o homem e salto gigante para a humanidade, algo chamou, de forma especial, a atenção deste moço a quem os anos 80 bateram como se durante os mesmos tivesse sido criança. Ou como se, enquanto não era hora de o Vasco Granja mostrar bonecos de plasticina no Segundo Canal, acrónimos como IRA ou ETA recheassem os noticiários desses longínquos tempos. O segundo caía como uma bomba (passo a ironia inusitada) porque Espanha era (como ainda é, da última vez que lá passei), aqui ao lado.
O interesse nesse assunto acompanhou-me até aos tempos da faculdade onde, já démodé perante a contemporaneidade (e os contornos altamente macabros) do conflito dos Balcãs, ainda deu muitas linhas escritas, trocas de galhardetes e discussões acesas. Serve isto para dizer que, durante a feitura deste texto morreu, dessas novas causas naturais que advêm da COVID-19, o pérfido General Galindo. Em nome da contextualização, Enrique Rodríguez Galindo era um “soldado-raso” da Guardia Civil espanhola que subiu a pulso e a mais algumas coisas até chegar a General, já no Quartel de Intxaurrondo que, sob o seu comando, se tornaria o centro nevrálgico da luta antiterrorista no País Basco. Só que o jornal El País desenterrou alguns factos que, entretanto, foram dados como provados.
Em Abril de 2000 foi condenado a 71 anos de prisão pelo sequestro e assassinato de dois independentistas bascos ocorrido em 1983. Essa teria sido uma das primeiras ações dos GAL (Grupos Antiterroristas de Liberación), que praticaram o Terrorismo de Estado (conhecido como Guerra Suja) contra a ETA, a mando dos dois primeiros governos de Felipe González e que eram financiados por altos funcionários do Ministério do Interior. Mas até 1987, pelo menos, as torturas e as mortes encheram o currículo do General Galindo, um especialista tal em desumanidade que ficou também provado ter pertencido ativamente a uma rede de tráfico de droga e de seres humanos. Uma das suas vítimas, o cineasta Ion Arretxe, contou ao El País que um grupo de operacionais o raptaram e mantiveram numa cave, durante vários dias, privado do sono com recurso a espancamentos. Galindo apareceu ao quinto dia. Ordenou que lhe “dissesse o que sabia”. À resposta negativa, “me retorció los huevos”, revelou Arretxe ao jornal.
A fixação dos espanhóis por huevos é lendária. Revueltos, rotos, duros, rancheros, estrellados, carlistas, encapotados, locos, de chistorra, de pisto, em tortilla, e isto é apenas o que vem nos manuais de cozinha de nuestros hermanos, pelo que imagino o que irá pelas casas particulares, com avós extremadas e mães afoitas em agradar. Não encontrei a receita de huevos retorcidos mas imagino que isso fosse uma especialidade de Galindo, coitado, que agora já não retorce mais nada a ninguém. A gastronomia dos nossos vizinhos ibéricos está para os ovos como a dos alentejanos está para o pão. Moldou, inclusivamente, a nossa. Pelo menos na Páscoa. Porque é nessa altura que, munidos de uma semana de férias, gostam de vir a Portugal fazer uma dieta de Bacalhau. O velho Brás, morador no Bairro Alto, sabia disso. A história mal contada é a de que este lisboeta castiço teria só os ingredientes constantes na receita e decidiu improvisar. Comigo não pega. Bacalhau, cebola, alho, azeite, batatas fritas, ovos, azeitonas e salsa não é “improvisar com o que se tem.” É uma despensa cheia. O que eu estou em crer que terá acontecido é que o “inventor” do Bacalhau à Brás ficou de confecionar algo para uns espanhóis e, não sabendo quais as preferências gastronómicas da turba pensou, e muito bem: “Desde que leve ovos, eles comem”. E vai de confecionar a base de tantas e tantas receitas do fiel amigo, que é a cebolada com o bacalhau desfiado, juntou-lhe mais qualquer coisa (batatas fritas) e no fim é mexer aquilo tudo para dar ar de huevos revueltos. Sucesso garantido. Mas seria muito ingénuo da nossa parte pensar que só os espanhóis é que são loucos por ovos, a proteína animal por excelência.
Desde que o bicho homem percebeu que isso de caçar é coisa para cansar as perninhas e torrar a paciência com esperas intermináveis, ainda para mais com fome, optando pela inteligentíssima alternativa de domesticar alguns animais, que a importância dos ovos se lhe afigurou como total. E o mais triste é perceber que o dilema de então subsiste nos substratos mais pobres de todo o mundo, Portugal incluído: matar a ave e comer-lhe a apetecível carne ou tirar apenas partido do seu ciclo reprodutor, que é, felizmente, muito mais frequente que os 23 dias dos humanos? A opção é tão óbvia como aplicável também ao gado que fornece leite para sustento das suas crias mas, também, de quem o apascenta por verdejantes prados e encostas, principalmente se for, como eu, apreciador de tudo o que é queijo, quanto mais fedorento, melhor… A galinha fica para um dia de festa. Até lá, comem-se ovos. Em Portugal, os ovos fizeram nascer esse inegável património que é a doçaria conventual. Porque o povo contribuía para a nobreza com impostos obrigatórios mas também, de forma voluntária, imbuído de fé, para o sustento dos conventos. E o que é que o povo tinha para contribuir? Ovos! Por gestão interna das oferendas, as madres separavam as claras, destinadas a engomar os hábitos, das gemas, que fizeram nascer o Pão de Rala, a Encharcada, as Barrigas de Freira, o Pudim do Abade, o Toucinho do Céu, os Papos de Anjo, as Castanhas de Ovos, o Tecolameco (aposto que este não conheciam) e, claro, os Pastéis de Tentúgal aos quais o médico/poeta Jorge de Sousa compara o coração de Portugal: “Portugal / Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém / Sabes / Estou loucamente apaixonado por ti / Pergunto a mim mesmo / Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu / mas que tem o coração doce ainda mais doce que os / pastéis de Tentugal / e o corpo cheio de pontos negros para poder / espremer à minha vontade.”
Dos muitos exemplos que poderia dar em relação ao facto de termos, como humanos, fraca capacidade de autocrítica, fica aquele em que imaginamos os nossos antepassados, não necessariamente pré-históricos, sempre “à batatada”. Por territorialismo, por escassos recursos alimentícios, por questões étnicas e raciais ou só porque não éramos (somos?) muito avançados mentalmente, é fácil criar a imagem de homens peludos em pelejas violentíssimas. Alguns milhões de anos volvidos, temos então que continuamos absolutamente na mesma. No trânsito, na fila do multibanco, na caixa de supermercado e, sobretudo, em certas redes sociais. Agredimo-nos a torto e a direito, nem que seja verbalmente. A intolerância é o maior dos veículos. E essa vem sempre da falta de instrução. O que nos faz pensar que seríamos muito mais tolerantes em tempos idos. Hoje, ser nómada é ser cigano. E ser cigano é não querer trabalhar. É ser subsídio-dependente e criminoso. Se se é sedentário, é-se gordo. E quem diz isto são os médicos, não um ébrio de tasco. Que raio de evolução da espécie é esta em que dominar o meio por forma a poder subsistir sem estar constantemente em busca de melhores pastagens nos tornou doentes? É simples. Deixámos de comer, para além de frugalmente, sazonal e saudavelmente. É aí que entram os ovos. Tempos houve em que o seu risco para a saúde era apregoado aos sete ventos. Três ovos por semana e, mesmo assim, com muito cuidado, diziam os maiores especialistas em nutrição. Provavelmente, os mesmos que diziam, nos tais longínquos anos 80, que a sardinha era altamente prejudicial para a saúde. Até que alguém descobriu o Ómega3, esse milagroso ingrediente que combate o colesterol mau e tira todos os óxidos que os tempos modernos nos impõem. Presentemente, podemos consumir os ovos que quisermos. Para alguém que, como eu, nasceu nos anos 70, ouvir que se pode comer ovos todos os dias é como se, agora, alguém dissesse que a COVID-19 é uma invenção do G8 e, portanto, pode tudo ir para a farra à noite, encher restaurantes, abraçar a família e viajar. Ovos mexidos ao pequeno-almoço, um ou dois ovos cozidos a meio da manhã para “matar o bicho”, dois ou três ovos estrelados ao almoço, tigeladas ao lanche, ovos com farinheira ao jantar e mousse de chocolate à ceia? Ó, admirável mundo novo! Poderá muito bem estar aqui a solução da dieta universal. Para quem pretende enveredar pelo vegetarianismo, o ovo possui toda a proteína a que se está habituado, numa só célula (sim, empiricamente, um ovo é uma célula visível sem recurso a um microscópio, com membrana plasmática, citoplasma e núcleo, ou seja, casca, clara e gema, respetivamente). Depois, temos que os ovos, principalmente se cozidos, engordam muito pouco. São ou não são boas notícias?
Desviemo-nos um pouco da gastronomia, que isto não é só comezainas. A simbologia do ovo. Nascimento, criação e uma nova vida através da transformação. É uma forma primitiva e embrionária de vida, associada assim à energia vital e à renovação da natureza, por representar fertilidade e eternidade e, subsequentemente, o renascimento, a renovação, a transformação, o divino, a sabedoria e até a riqueza. Para o cristianismo, é a ressurreição (para quem quiser perceber porque raio é que na Páscoa há tantos ovos coloridos). Os Incas associavam-lhe o Sol e a Lua, representados, respetivamente, nos ovos de ouro e prata do templo de Coricancha, em Cusco, no Peru. Também são muitas as culturas (existentes e extintas) que associam o ovo à génese do mundo, sendo o “ovo cósmico” aquele que encerra o potencial da vida, da egípcia à celta, passando pela grega, fenícia, hindu, tibetana, chinesa e japonesa. Para a igreja ortodoxa, a Páscoa constitui um momento crucial do calendário litúrgico. No século XIX, a tradição mandava trocar ovos de galinha decorados e três beijos para festejar a ressurreição de Cristo. Na Páscoa de 1885, o czar Alexandre III encomendou ao joalheiro oficial da Corte, Karl Gustavovich Faberge (ou Peter Carl Fabergé) uma joia em forma de ovo para oferecer à czarina Maria Feodorovna. Foi a primeira de 56 encomendas entre 1885 e 1916, tendo a produção sido interrompida devido à revolução bolchevique (1917). Platina, ouro, prata, cobre, quartzo, jade ou lápis-lazúli eram as matérias-primas, já o ovo, esse, era decorado com várias joias que nem só diamantes. Cada ovo era único e as suas decorações eram inspiradas em obras de arte e/ou cenas de história da Rússia. No seu interior, uma surpresa, qual Kinder da realeza: uma galinha, um coelho, uma coroa imperial, uma carruagem, um biombo e muitos outros motivos em miniatura. Hoje, os ovos Fabergé estão espalhados pelo mundo, na mão de colecionadores e com um preço inestimável.
Por cá, e como bons portugueses, os ovos são mais populares como forma de petisco. Tão populares que estão presentes na tradição oral, por via, claro está, de ditados populares, cujo significado é, muitas vezes, curiosíssimo. “Um ovo quer sal e fogo”, é óbvio. Por seu lado, “Lá vai o mal onde comem o ovo sem sal” remete para a necessidade de desconfiarmos de quem não presta aos ovos a sua devida homenagem. “Ovo assado, meio; ovo cozido, ovo inteiro; frito, ovo e meio” hierarquiza a nobreza da forma de o cozinhar, ao passo que “Ovo brando, comer embaraçado” é muito mais que apenas um ditado gastronómico, chamando a atenção para o facto de que sermos brandos pode dar problemas. Mas o mais belo, o que constitui uma popularucha ode ao alimento primordial é: “Quem me dá um ovo não me quer morto”, que alude ao seu valor nutricional. “A criado novo, pão e ovo; depois de velho, pão e demo” alude à necessidade de emprestar vigor, através de uma alimentação correta, aos mais novos, embora também deixe entrever aquilo que será tristemente endémico na nossa cultura: o abandono dos mais idosos. “De mau corvo, mau ovo” revela a necessidade de ter boas aves para ter bons e deliciosos ovos. “Mal vai a raposa quando anda aos gritos e pior quando anda aos ovos”, “Cacarejar e não pôr ovo”, “À galinha aperta-lhe o ninho e pôr-te-á o ovo”, “Deu-me Deus um ovo, e esse, goro”, “Rainha é a galinha que põe ovos na vindima” ficam à vossa consideração. E se, modernamente, se tende a ignorar a importância dos ditados populares, pensem bem se gostariam de ficar para a vida com quem “nem sabe estrelar um ovo”, meus comensais.
Este artigo foi originalmente publicado na edição de março de 2021 da Vogue Portugal.
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