Artwork de Miguel Canhoto.
Mascaram-se bigodes e rapam-se lábios. Face ao aterrador mito do buço, nenhuma mulher portuguesa se encontra segura.
O conceito de bigode português é basilar à cultura portuguesa. Quando ele veio à baila na ocasião desta edição dedicada a Portugal, confesso que, de forma egoísta, pensei apenas no meu próprio bigode. Ele, a minha fonte de orgulho inegável, peça central da minha cara, é cuidado atentamente todos os dias. Quase de forma imediata conjurei centenas de argumentos, todos concorrentes à edificação da genética portuguesa. Pretendia afetar modéstia, quem sabe até queixar-me da maçada que é ter de aparar o meu bigode, dia sim dia não, para que este não me tape a boca. Apenas passado mais tempo do que aquele que gostaria de admitir é que me ocorreu que, a despeito do meu ego folicular, o mito do bigode português pouco tem a ver comigo, mas sim com a maldição do buço feminino, uma praga que há séculos persegue as mulheres portuguesas. Acusadas de não depilarem os seus bigodes, a população feminina é assombrada por qualquer mísera sombra acima dos seus lábios.
Mas de onde vem tal malicioso mito? Bem, como todos os factos históricos que se baseiam em fontes tão débeis como rumores, as respostas variam. No entanto, a maioria parece satisfeita em fazer dos britânicos o bode expiatório. De acordo com a história que se conta online (sim, história com h minúsculo), o mito do bigode das mulheres portuguesas origina-se nos ciúmes que as mulheres da corte inglesa sentiram de D. Catarina de Bragança, a rainha portuguesa que casou com o rei Carlos II de Inglaterra em 1662. O apuramento destas más-línguas foi catalisado pela aparência da rainha. A sua pele morena, ou pelo menos bronzeada em comparação à das mulheres nativas do país chuvoso, estimularam as suspeitas que a sombra acima dos seus lábios tinha uma consistência peluda. Sim, aparentemente, o agradecimento dado à criadora da tradição do chá das cinco foi uma chávena de xenofobia. A origem do mito é discutível, mas a sua perpetuação não é difícil de entender. Como qualquer outra forma de ridicularização, a noção de que as mulheres portuguesas são geneticamente propensas ao crescimento de pelo facial é apenas uma metáfora para a imagem de Portugal como um país rural e primitivo.
Se é de piadas feitas à custa de Portugal que se fala, seria pecaminoso ignorar O Amor Acontece (2003). A comédia romântica é mais que um clássico natalício, é uma das poucas ocasiões em que a cultura portuguesa chegou à escala de blockbuster mundial. Mas, ainda que não queiramos ser pobres e mal-agradecidos, o retrato dos portugueses é tudo menos favorável. Do comentário sobre o bigode da deslumbrante Lúcia Moniz à falsa tradição de cumprimentar estranhos com beijos na boca, Portugal inteiro é equacionado a uma aldeia remota. Fora o icónico filme natalício, menções do buço português nos media não são fáceis de encontrar. Uma pesquisa preliminar revela apenas protestos contra o estereótipo, com páginas inteiras dedicadas a defender que, ao “contrário do que é assumido pela comunidade internacional, as mulheres portuguesas não têm os genes para crescer um bigode.” A população portuguesa, historicamente dada a uma boa manif, ecoa argumentos de injustiça para trás e para frente. Estes resultados são, no entanto, limitados a pesquisas em português, assim que a curiosidade nos convence a mudar de língua para o universal inglês, os produtos variam de forma significante. Testemunhos no Reddit são igualmente fervorosos, mas mais reduzidos (suspeitamos que são apenas as mesmas vozes portuguesas apenas traduzidas). Hoje em dia, o departamento de relações públicas das mulheres portuguesas é bem mais eficiente. Nas redes sociais, particularmente no TikTok, uma rapariga portuguesa é uma tendência desejável. Popularizada no final do ano passado, uma #PortugueseGirl é sinónimo de calças com padrões coloridos, camisas largas e sapatos “feios” (clarifique-se, feio é neste caso usado como sinónimo de chique). Ainda que a fantasia vendida internacionalmente seja desejável, o que é facto é que, por terras lusas, a mesma mulher seria classificada de beta (um termo usado da forma mais carinhosa possível). Mas, ainda que não lhe faltem sabrinas coloridas e carteiras volumosas, a sombra pesada no lábio superior encontra-se ausente.
Nem precisamos de ir tão longe. Não sentimos necessidade de nos defender enquanto nação face a acusações que procuram humilhar o género feminino. Em 2024, qual é o problema de mulheres que escolhem ter pelo facial? O que existe de tão errado com um bigode? Não deixemos que a libertação do corpo feminino face a expetativas sociais seja restrita ao pelo corporal. Das axilas às pernas, o pelo feminino só se aceita quando se pode esconder. Talvez um bigode, um elemento central na cara de uma pessoa, seja um manifesto demasiado revolucionário, uma ameaça à estabilidade patriarcal. Ao pensar em mulheres corajosas o suficiente para assumir com orgulho o seu pelo facial, poucos nomes surgem para além de Frida Kahlo que, em adição à sua icónica monocelha, ostentava também um esplendoroso buço. E, ainda que a mexicana tenha transformado a sua mágoa numa expressão artística digna do fado português, o que é facto é que não existe nenhuma celebridade portuguesa com os mesmos cojones que Khalo tinha. Claro que a ausência se sente apenas nos media porque, ao crescer no Ribatejo, o que não me faltaram foram materializações do mito. O buço era aliás tão comum entre as mulheres que me demorou algum tempo a entender que não era “normal.” Na, como a minha avó ainda lhe chama, “escolinha,” auxiliares, professoras e até as mães de muitos dos meus colegas tinham uma leve sombra sobre o lábio superior. Havia uma mãe em específico, chamemos-lhe de Betinha, que tinha um conjunto de buço e patilhas que, para um rapaz pubescente, era alvo de uma incrível fonte de inveja.
A Betinha era, em geral, uma mulher incrível. Mesmo que de uma idade avançada, recusava referir-se a si mesma na primeira pessoa, tratando-se sempre na terceira pessoa com a autonomeada alcunha de “a menina”. “A menina ontem foi beber um café e nem sabes quem é que encontrou.” “A menina ontem teve tanto azar que pisou uma poça.” As idiossincrasias linguísticas da Betinha são algo que gostaria de poder revisitar enquanto adulto, a sua originalidade é apenas um sonho distante para a maioria dos escritores. Fora o facto de se tratar como a Rainha de Inglaterra, a Betinha era uma mulher extremamente simpática, sempre pronta a oferecer uma palavra carinhosa. Ainda que a admiração que nutria pela senhora esteja intacta após tantos anos, a dissolução do encanto pelo seu pelo facial foi diligente. Olhares maldosos e línguas venenosas, também elas típicas das pequenas aldeias portuguesas, quebraram-me a admiração. Após a trágica perda, sempre que via a Betinha tinha o mesmo pensamento: “Porquê manter o bigode?” Certamente esta estava consciente da maldade alheia, já que as fofocas da pequena cidade se ouviam em todas as esquinas e becos. O preço de uma Gilette, ou quem sabe mesmo cera para depilação, parece barato se apaziguar as vozes perniciosas. O sacrifício da inocência pueril teve a recompensa do discernimento ponderado. Talvez a Betinha e D. Catarina de Bragança não sejam assim tão distantes. Tal como a monarca, a amável senhora era confrontada com rumores e, impávida face à maldade ignorante, não sentia a necessidade de mudar a sua aparência física. É possível que seja esse o segredo do buço português: uma benesse sentida apenas por aqueles que se orgulham do seu bigode, independentemente do género e da opinião alheia.
Publicado originalmente na edição "Portugal With Love" da Vogue Portugal, de junho 2024, disponível aqui.
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