The [Un]Popular Issue
Madeleine Albright dizia que “há um lugar especial no inferno para as mulheres que não ajudam outras mulheres.” Nós acrescentamos, certos de que teríamos a sua aprovação, de que esse lugar também será ocupado pelas mulheres que compram falsificações.
Não é preciso procurar muito para, no meio de vídeos que cumpram o nosso algoritmo, sermos confrontados com uma voz mecânica que anuncia “Prada bag finally restocked” (“carteiras Prada finalmente de novo disponíveis”) ao mesmo tempo que dezenas de carteiras — todas elas embaladas num plástico seboso —, são atiradas para o chão daquilo que parece ser um armazém de condições duvidosas. A mensagem “only 450” aparece em letras garrafais sobre o ecrã, como que a indicar que cada um daqueles achados custará “apenas” 450 dólares (cerca de 410 euros). À primeira vista, e provavelmente à segunda, e à terceira, qualquer ser humano - até mesmo os que não sabem quem é Miuccia Prada -, consegue ver que nenhuma daquelas peças é verdadeira, tal é o aspeto das “caixas” de formato quadrado, com correntes douradas, que alguém se apressa a despejar, como se fossem lixo. Ainda assim, o vídeo tem mais de 300 comentários, com utilizadores sedentos de informação: do serviço de entrega à forma de pagamento, é bem possível que todas aquelas carteiras sejam vendidas enquanto o diabo esfrega um olho; no meio da alegria de encontrar algo “tão barato” (?), ninguém questiona o facto de esses 450 dólares serem um investimento em vão, porque nada disso é Prada, nem no mundo virtual nem fora dele. Aparentemente, isso é irrelevante. Quem segue esta pequena loja de roupa feminina (cuja dimensão em nada se assemelha a outras, que chegam a ter milhares de seguidores e anunciam à boca cheia, de forma muito mais “pornográfica”, que têm carteiras falsas “igualzinhas às originais” de todas as marcas de luxo possíveis e imaginárias) está à procura de um logo, de uma aproximação a um sonho qualquer.
Bem-vindos ao fabuloso mundo do TikTok, onde a contrafação de bens de luxo se discute sem pudores, como se fosse uma conversa de WhatsApp sobre o melhor sítio para jantar fora. A par do Instagram e do Reddit - onde existem dezenas de grupos que debatem a melhor forma de comprar fakes, qual máfia organizada - a Internet é um submundo repleto de pequenos criminosos que não se coíbem de tentar “passar a perna” aos compradores que são idiotas ao ponto de pagar o preço real por uma Diana (Gucci) ou uma Puzzle (Loewe) - e, obviamente, às marcas, que demoraram anos e anos a fazer com que determinado produto se tornasse desejável, aniquilando não só o valor da sua propriedade intelectual e da sua criatividade, como toda a cadeia de produção que as mesmas comportam — aliás, se nos indignamos sempre que uma marca de fast fashion copia o trabalho de um artista independente, para onde é que vai essa indignação quando é uma marca “grande” a ser copiada? Só porque há mais dinheiro envolvido não deve haver respeito? Porque é precisamente isso que esses internautas, que passam horas em fóruns que detalham o vendedor que melhor copia a carteira X ou Y, pensam: que não só estão acima da lei como possuem um segredo só deles, que os torna estupidamente mais espertos do que todos os outros. Será que são? Ou estarão apenas a colmatar uma necessidade mais profunda, que nada tem a ver com a aquisição de bens? Quando questionamos alguém sobre fakes, muitas vezes a resposta que chega do outro lado é “Mas porque é que hei-de pagar 5000 euros por uma carteira?” Ora aí é que está. Ninguém tem de pagar 5000 euros por uma carteira, porque ela não está à venda sob coação — ninguém nos aponta uma arma na rua e diz “Ou compras esta carteira de 5000 euros ou levas um tiro.” Da mesma forma que é bem provável que passemos uma vida inteira sem ter um Ferrari, ou uma penthouse em Nova Iorque, ou um jato privado, é bem possível que não sejamos capazes de adquirir uma peça de designer com vários dígitos — e está tudo bem. Ou devia estar. A nossa felicidade não depende do que trazemos ao ombro. Quem argumenta “Mas porque é que hei-de pagar 5000 euros por uma carteira?” acusa, desde logo, um sintoma: que apesar de não querer/não poder pagar esse valor, acha que tem direito a ter esse mesmo bem que, de certa forma, renega. A questão é que não tem. Tal como se costuma dizer, o universo não nos deve nada. Há dezenas e dezenas de pequenas marcas e designers (com talento incrível, sublinhe-se) cuja carreira beneficiaria horrores se toda a gente que tivesse disposto a pagar 450 euros por uma Prada falsa investisse nas suas criações. O problema está na percepção que essa Prada falsa provoca — neles e nos outros. De facto, o problema está mais enraizado do que aparenta.
Este não é um dilema novo. Sempre existiram produtos falsificados, basta pensarmos nos comerciantes de rua que, de forma mais ou menos assumida, vendiam artigos nas grandes cidades, nas praias e nas feiras. O seu approach (“Senhora, tenho esta Chanel quase igual à verdadeira!”) era quase sincero, perto do que hoje se encontra em muitos sites de contrafação. Na última década, com o boom das lojas online “de luxo”, o foco do negócio mudou. Agora o que se oferece são “cópias autênticas”, tão autênticas que quase ninguém as consegue distinguir das originais, as chamadas superfakes. Como é que chegámos aqui? Lara Osborn, VP, Procurement and Authentication no Fashionphile (um dos sites mais relevantes na compra e venda de bens de ultra-luxo), tem uma teoria: “À medida que a corrida para a próxima carteira ‘it’ cresce e os designers se tornam mais estratégicos com os seus lançamentos, para não falar das plataformas sociais cada vez maiores que alimentam a consciencialização, o potencial de quota de mercado aumenta para os falsificadores. Se juntarmos a isto as melhorias na cadeia de fornecimento e os avanços na tecnologia de design (pense-se na fast fashion), torna-se mais possível e lucrativo do que nunca criar réplicas de alta qualidade dos modelos mais vendidos e dos recém-lançados. Neste momento, estamos também a atravessar uma tendência infeliz, especialmente com a inflação ainda em alta, em que as ‘imitações’ e as réplicas 1:1 são aceitáveis e até celebradas em certos círculos.”
A celebração a que Osborn alude é uma das incógnitas mais estranhas dos últimos tempos: mulheres ultra-ricas, com elevado poder de compra, que têm o armário cheio de Birkins falsas. E que fazem questão de o dizer, como já aconteceu mais do que uma vez com milionárias americanas, que ostentam as suas carteiras fake em vídeos feitos nas suas mansões de milhões de dólares. Tendo em conta esta disseminação das superfakes, como é que tudo isto afeta o processo de autenticação? “No Fashionphile, estamos no mundo da autenticação desde o início do mercado de revenda de carteiras nos EUA e, nesta altura, é uma segunda natureza para nós. O que é considerado uma superfalsificação pelos meios de comunicação social é normalmente muito identificável como uma contrafação para a nossa equipa de autenticação, em grande parte devido à sua experiência e exposição maciça a artigos de luxo verdadeiramente autênticos.” As palavras de Lara são um bálsamo, talvez sustentado pelo historial do Fashionphile, mas é sabido que nem todos os sites de venda em segunda mão funcionam assim - há vários locais onde as equipas de autenticação são compostas por pessoas sem conhecimentos suficientes para atestar a veracidade de uma peça. A Forbes fez um artigo sobre isso em 2019, e há cada vez mais experiências negativas partilhadas por internautas que acreditaram estar a comprar uma Dior verdadeira... e receberam uma cópia.
Se pensarmos que, atualmente, a nossa vida é controlada vinte e quatro horas por dia, como é que tudo isto se passa sem que nada aconteça? Aparentemente, a contrafação é um crime - e é. No entanto, milhares e milhares de pessoas não se importam de ser apanhadas nesta teia - que pode incorrer em penas de prisão-, que envolve tanto compradores como produtores. O que nos leva a uma questão: se a maioria destas imitações provém da China, como é que conseguem atravessar fronteiras, com tanta legislação já implementada — nomeadamente em países como a França, onde a falsificação é um crime grave —, para as detetar? Sarah Davis, fundadora e presidente do Fashionphile, explica que os meios ainda são escassos: “Pode haver legislação, mas não há equipas de peritos em autenticação nem ferramentas disponíveis para os funcionários aduaneiros identificarem as contrafações de maior qualidade que se misturam com os produtos autênticos que atravessam as nossas fronteiras todos os dias.” Consequentemente, o impacto deste “negócio paralelo” na economia e, em última instância, na propriedade intelectual dos autores destas peças, é gigante, tal como atesta Davis: “A contrafação tem implicações reais na nossa economia. Não só é literalmente ‘o maior empreendimento criminoso do mundo’, como se provou que as vendas de contrafação deslocam postos de trabalho no nosso país. Por último, quando as contrafações são tão próximas da ‘coisa verdadeira’, prejudicam realmente a marca. Por que razão pagar por um artigo autêntico se ninguém o consegue distinguir e se os outros andam com o que parece idêntico a praticamente toda a gente, por uma pequena fração do preço? Especialmente quando estas falsificações estão a inundar o mercado.” Ainda assim, e por mais que essas contrafações sejam “tão próximas da coisa verdadeira”, elas nunca serão a coisa verdadeira. O que é que alguém que gasta 800 dólares numa Chanel falsa espera conseguir com essa compra? “Uma pessoa que gasta 800 dólares ou mais numa Chanel falsa espera parecer que está a usar uma Chanel autêntica sem pagar os mais de 11 mil dólares que teria de gastar para a comprar.” O velho síndrome do impostor, uma vez mais. Fake it till you make it. Mas convém não esquecer que o primeiro a ser enganado é o comprador da Chanel falsa, o resto são apenas espectadores ocasionais.
* O título deste texto é uma alusão a uma campanha contra a contrafação lançada em 2012 por um grupo de marcas de luxo francesas. À época, vários outdoors com slogans irónicos (o uso da palavra ladies era um trocadilho com a imagem da carteira Lady Dior, que surgia em grande plano) foram espalhados pelos aeroportos franceses, nos meses de verão, para sensibilizar os viajantes para este problema. Nesses outdoors podia ainda ler-se: “Em França, a compra ou transporte de um produto falso é uma infração punível com uma pena até três anos de prisão e 300 mil euros de multa.”
Originalmente publicado no The [Un]Popular Issue, em julho/agosto de 2023.
Most popular
Relacionados
John Galliano nas suas próprias palavras: O designer reflete sobre uma década extraordinária na Maison Margiela
23 Dec 2024