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Revenge Porn | Send Nudes?

08 Mar 2023
By Sara Andrade

Não é esta a questão a colocar. A questão é outra: que género de sociedade estamos a criar que encoraja a disseminação e partilha, sem consentimento, por terceiros, de imagens íntimas e pessoais? Onde a vítima tem vergonha e o agressor é “desculpado” e, até, desresponsabilizado pelo público? Se nunca ouviu falar de revenge porn, saiba porque é que o conceito é maior do que o termo e porque é que pode acontecer com qualquer pessoa. Consigo também.

Não é esta a questão a colocar. A questão é outra: que género de sociedade estamos a criar que encoraja a disseminação e partilha, sem consentimento, por terceiros, de imagens íntimas e pessoais? Onde a vítima tem vergonha e o agressor é “desculpado” e, até, desresponsabilizado pelo público? Se nunca ouviu falar de revenge porn, saiba porque é que o conceito é maior do que o termo e porque é que pode acontecer com qualquer pessoa. Consigo também. 

Artwork de João Oliveira.

"Send nudes.” Uma expressão tão popular no vocabulário atual que é, inclusivamente, usada em jeito de graçola, como um punchline ou um twist jocoso no meio de uma conversa. E deveria ser isso mesmo — uma opção privada, encarada de forma descontraída, reflexo de uma liberdade de expressão e escolha que deveria ser preservada. Mas há um lado desta prática que tomou proporções que estão longe de ter piada, antes pelo contrário. E não tem a ver com o ato de enviar fotografias íntimas para alguém — se é algo que traz prazer sem prejudicar terceiros, porque não enviar uma, ou muitas, fotos sedutoras? O que talvez se tenha perdido pelo caminho é que send nudes não é sinónimo de share nudes sem autorização, uma prática que tem vindo a acontecer cada vez mais, movida por diversas motivações, entre elas, aquela que deu origem ao termo “revenge porn.” Entende-se por revenge porn o ato de partilhar publicamente imagens íntimas de alguém, sem o seu consentimento, por vingança — normalmente associados a parceiros revoltados com o final de uma relação —, só que, atualmente, a ideia de revenge porn é muito mais ampla do que esta disseminação para efeitos de punição de um(a) ex. Os episódios relacionados com este conceito multiplicam-se, originando situações de bullyingpublic shaming, extorsão, coação e, de uma maneira geral, abuso sexual. O termo é, portanto, falacioso e redutor, pelo que é de extrema importância clarificar: “Podemos começar pelo termo pornografia. Sem querer debater toda a questã o da indústria pornográfica, entende-se que as pessoas envolvidas estão de forma consensual a prestar um serviço que passa pela gravação de imagens e/ou de fotografias de cariz sexual que vão ser expostas numa plataforma, e que, de certo modo, vão beneficiar desse serviço. Neste caso, a vítima vê uma imagem íntima sua divulgada, de forma não-consensual, e que não é suposto ser partilhada noutras plataformas. O uso do termo pornografia também acaba por quase retirar a gravidade do que está a acontecer àquela pessoa.” Os esclarecimentos são de Carolina Soares, técnica operacional da Linha Internet Segura e porta-voz do complexo trabalho feito pela APAV – Associação de Apoio à Vítima neste campo. “O termo vingança, por sua vez, pode ser redutor, porque quando falamos em revenge porn a maioria das pessoas tende a pensar num cenário que remete para um parceiro que se está a vingar de algo que a outra pessoa fez no momento de terminar a relação e isso coloca a culpa na vítima — parece que fez algo contra alguém que não caiu bem e que as suas fotografias foram divulgadas. Além disso, o motivo que origina o comportamento não tem de ser sempre a vingança. Pode ser só despeito ou motivos financeiros e aí já estamos a falar de extorsão ou simplesmente de um desejo de expor o outro, ou seja, não necessariamente em resposta a um comportamento da vítima”, clarifica. “Revenge porn é deveras apelativo, mas é muito prejudicial à vítima e à forma como o problema é encarado, pois coloca muito do ónus da culpa na pessoa que se deixou fotografar ou enviou as fotografias, parece que ela própria estava a querer ou a fazer atividades desse tipo, como se beneficiasse daquela campanha. Uma pequena alteração no vocabulário pode fazer imensa diferença não só na perceção do crime pela própria vítima como eventualmente mais para a frente, naquilo que pensamos que tem que ser alterado em termos de políticas, de atitude pública, social e cultural em relação a este fenómeno. Nós usamos outros termos, como abuso sexual baseado em imagens ou divulgação não consensual de imagens íntimas.”

Ao clarificar o termo, Carolina Soares toca em diversos pontos-chave deste flagelo que, assegura, compõe “a esmagadora maioria dos casos que recebemos.” Não é difícil perceber o porquê  da sua proliferação, à primeira vista: o aumento da comunicação digital e da informação que armazenamos digitalmente e o consumo cada vez maior da Internet parecem rastilhos óbvios. Mas não são os únicos: uma análise mais profunda revela dimensões sócio-psicológicas que, inadvertida ou conscientemente, alimentam este género de comportamento. “A facilidade com que se escreve e partilha algo online também conduz, com frequência, à sensação de impunidade, faça-se o que se fizer atrás de um ecrã”, aponta Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica. “A falta de literacia e etiqueta tecnológica, a desresponsabilização que prolifera no online, a atenção que os media convencionais dão a este tipo de conteúdos partilhados e o voyeurismo proliferado pela comunicação social e pelas redes sociais constituem fatores que ajudam a explicar a proliferação destes comportamentos e algumas reações ao mesmo.” Case in point: o documentário da Netflix O Homem mais Odiado da Internet conta a história de Hunter Moore, responsável pelo site IsAnyoneUp, morada digital que partilhava nudes sem consentimento — de mulheres, maioritariamente, mas também de homens, alegadamente submetidos por terceiros na posse de tais imagens. Cada post vinha ainda acompanhado de informação pessoal da vítima, como a conta de Instagram e outros dados (como número de telefone), tornando ainda mais devastadores os efeitos de quem se descobria naquela situação, com consequências não só a nível da saúde mental, mas também no quotidiano, como perda  de emprego e fim de relações. Revoltante, correto? Parece ser a resposta emocional óbvia — só que não: avançar no documentário é perceber que a prática é quase categorizada como entretenimento e não crime, muitas vezes (quase sempre) com mais penalizações para a vítima do que para o agressor. É a vítima que carrega em si a vergonha de ter imagens íntimas partilhadas, de ser alvo de chacota ou julgamento, até de sentir uma dose de ingenuidade por ter alinhado ou enviado ou feito aquelas imagens, sentimentos ratificados pela descredibilização que lhes é incutida pela audiência e até, por vezes, por figuras de autoridade. Há quem, por outro lado — supreendentemente ou não — idolatre o mentor por detrás deste tipo de abuso sexual, considerando-o uma espécie de role model, divinizando-o e criando espaço para um culto com repercussões quase criminosas. A título de curiosidade, a plataforma registou, num mês (novembro de 2011), lucros na ordem dos 13 milhões de dólares (através da venda de publicidade e merchandising) e 30 milhões de visualizações. Ações que são “consequência do défice de competências pessoais e emocionais, que se traduz em comportamentos mais impulsivos, em busca de prazer mais imediato, sem ponderação das consequências”, explica Filipa Jardim da Silva. “Existem mais pessoas a pedir ajuda psicológica no seguimento da partilha pública de imagens e informação sobre si, sem consentimento”, acrescenta, corroborando o manifesto aumento de casos enunciado pela APAV.

Uma das consequências mais diretas (e injustas) destes episódios é, tal como referiu Carolina Soares, o ónus que recai sobre a vítima, seja colocado pela própria seja imposto pela sociedade. O documentário supracitado relata uma história que começa em 2010 e termina em 2012 (altura em que o site encerra de vez, no seguimento de uma investigação do FBI, um processo legal conjunto contra Hunter Moore e uma série de tentativas de shutdown da plataforma por parte de vítimas e ativistas anti-bullying), mas uma década depois parece não ter mudado muita coisa — nem o comportamento dos agressores, nem as condicionantes sociais que levam a tal, refletindo-se da pior maneira nas vítimas: “São várias, e nefastas, as consequências psicológicas e emocionais decorrentes de atos como o revenge porn ou o sextortion”, aponta a psicóloga. “Há uma sensação de desproteção e impotência, que ativa todo o sistema nervoso, mobilizando as várias respostas possíveis de luta-ou-fuga, congelamento ou colapso. A devassa da privacidade suscita vergonha, e muitas vezes culpa, na própria vítima. A sua identidade fica fragilizada, a sua autoestima e autoimagem são severamente afetadas, e um conjunto de comportamentos podem advir daí, como isolamento, alterações de sono, de comportamento, de alimentação, toma de substâncias, automedicação ou automutilação. São situações que afetam não só a pessoa-alvo mas os seus vários sistemas sociais, o que torna o impacto destas situações tão grande e intenso, podendo levar à rutura de relações pessoais, conflitos familiares e sociais e até consequências negativas a nível profissional. Em função de fatores inerentes à personalidade da pessoa afetada, da sua história de vida, do momento atual em que se encontra, da rede de suporte de que dispõe e até da cultura onde está integrada, os efeitos tenderão a ser mais ou menos severos, mas haverá sempre um dano na saúde mental e física. Em algumas situações, perante uma falência de recursos emocionais e um enorme sofrimento psicológico, o suicídio surge como opção e como ato consumado, como já se verificou em algumas situações tornadas públicas.” O alerta de Filipa Jardim da Silva não surge em vão. Em dezembro de 2021, a egípcia Basant Khaled suicidou-se na sequência da publicação de fotos íntimas alteradas para parecerem suas — o responsável foi um jovem com quem Khaled recusara sair. Basant tinha 17 anos. Na carta de suicídio escreveu: “Mãe, espero que compreendas que esta rapariga não sou eu. Estas fotos são falsas, eu juro por Deus. Sou uma jovem menina e não mereço o que me está a acontecer. Estou muito deprimida, não aguento mais isto. Estou cansada. Sinto-me a sufocar. Não sou eu, educaste-me bem.”

"É, de facto, um abuso sexual. Um abuso sexual feito através de imagens íntimas, mas não deixa de o ser.” - Carolina Soares

A palavra “abuso” parece, agora, demasiado parca para a dimensão de uma tragédia, potencialmente fatal, que continua a merecer um certo desinteresse por parte da sociedade. “Acho que muitas vezes as pessoas não dão a importância suficiente. É, de facto, um abuso sexual. Um abuso sexual feito através de imagens íntimas, mas não deixa de o ser.”, assegura Carolina Soares, da APAV. A análise chega, infelizmente, de uma experiência dolorosa com diversas vítimas: “Qualquer imagem que surja na Internet, sobretudo de uma mulher que possa estar a mostrar os seios ou a zona genital, é sempre vista de maneira negativa pela sociedade. A culpa, de alguma forma, parece ir para a pessoa que tirou, ou se disponibilizou, para a fotografia, e não para quem a está a divulgar. E isto é verdade para uma série de outras atitudes, com bases culturais que dificultam muito, depois, a atuação. Não só são um propulsor das atitudes e motivações de quem está a divulgar a imagem, mas também para a vítima, pois terá muita dificuldade em falar e em pedir ajuda. Seja aos amigos, aos próprios companheiros atuais, no caso da imagem ter acontecido no decorrer de relações anteriores, aos pais… têm muita vergonha. E se têm essa vergonha e essa dificuldade, é porque isso lhes é imposto socialmente. […] Isso não está a alterar-se, ou pelo menos nós não o sentimos. Há aqui trabalhos que terão de ser feitos a vários níveis, alguns a curto e outros a longo prazo. […] As plataformas têm de ser mais responsabilizadas, é preciso exigir mecanismos de identificação mais eficazes, mais céleres, tecnologia que permita um maior bloqueio ou uma destruição rápida destas imagens... Precisamos de estratégias, ou de alguma pressão, para que os governos criem políticas e façam uma alteração do quadro legal em torno deste tipo de crimes — existem países que estão a tentar desenvolver um panorama jurídico que o torne independente e isso facilita, mas não resolve o problema de base. Que é, certamente, cultural.” Este é um ponto importante, porque se foca na raíz da questão, na sua génese. Soares continua: “Aí já será um trabalho a full time e a longo prazo, nas escolas, educacional, sobre a imagem que temos dos nossos corpos, da nossa vida íntima e sexual e da nossa liberdade para fazermos o que queremos fazer e não termos medo ou vergonha da forma como isso mais tarde nos vai afetar; sobretudo não usar esse tipo de conteúdo contra os próprios. É trabalho a ser feito com as comunidades, com as famílias, com a sociedade civil, criando consciência através de artigos como este, por exemplo, que estão a discutir o tema e a ajudar pessoas que já passaram por isso e as que poderão vir a passar a terem mais informações do seu lado e sentirem-se reconhecidas, que têm apoio e, eventualmente, também, mudar o prisma das pessoas quando se veem perante imagens deste tipo e decidem partilhar.”

É também por isso que o trabalho de apoio emocional como o de Filipa Jardim da Silva é tão importante, a par com o acompanhamento proporcionado pela Associação de Apoio à Vítima — e que é bem mais complexo do que se possa imaginar. Ao nível de uma investigação policial, a APAV não só serve de ouvinte, como alerta e age no sentido de ajudar quem quer que esteja a passar por este flagelo: “Fazemos o acompanhamento destas denúncias não só no início, nas primeiras interações, que são muitas vezes por telefone ou por email, como depois reportamos e, aí sim, já beneficiando muito da rede de contactos que a APAV tem, com uma série de gabinetes espalhados pelo país — juristas, psicólogos, assistentes sociais — e é aí que fazemos um redirecionamento, ao qual a pessoa pode aceder de forma gratuita e confidencial, tal como acontece com qualquer outro caso de violência.” A psicóloga, por sua vez, confirma que é “um processo que beneficia de acompanhamento profissional considerando a sua severidade emocional e impacto na vida de uma pessoa e de todos os seus sistemas sociais. Há uma reabilitação importante a fazer a nível de confiaça porque a determinado momento a sensação que estas pessoas têm é de que não podem confiar em ninguém, nem agora nem no futuro. O trabalho referente à responsabilização versus culpa é também fundamental; há muita culpa associada com frequência a estes atos e reforçada pela sociedade. ‘Fui eu que troquei aquelas mensagens’, ‘Fui eu que enviei aquela fotografia’, ‘Fui eu que concordei em nos filmarmos’. Contextualizar comportamentos e decisões é importante neste processo. Por vezes, quem foi vítima de um comportamento danoso destes fica também preso na tentativa de vingança e de justiça, o que também não será produtivo.”

Muitas das situações que chegam à Associação têm origem na Linha Internet Segura. “Foi criada em 2019 por haver especificidades técnicas no apoio a vítimas do crime online”, elucida Carolina Soares, “como as ferramentas que utilizamos no sentido de tentar remover conte dos de cariz íntimo, bem como outro tipo de parcerias. Fazemos um trabalho com a vítima, tentando perceber como começaram a contactar, se é ou não um parceiro a divulgar, se pode ser uma ameaça vazia, emails que muitas vezes são bluff, etc. E fazemos um levantamento da prova digital, que é essencial. Muitas vezes, as vítimas querem bloquear automaticamente o agressor, mas perdem a prova digital; se a seguir quiserem reportar o caso, não conseguem — por exemplo, no WhatsApp, como as mensagens são encriptadas, a plataforma não acede ao conteúdo. Por isso é muito importante, quando as ameaças acontecem, que haja capturas ou gravações de ecrã que as comprovem, se não nem a plataforma nem a Polícia Judiciária conseguirão aceder àquele conteúdo. A atuação será sempre mais célere.” Carolina Soares continua a descrever o intrínseco e alargado trabalho que a associação faz. Quando se fala em apoio à vítima este é, de facto, literal: “O nosso objetivo aqui é, por um lado, prestar apoio emocional, ou seja, garantir que a pessoa percebe que não tem culpa, que quem está aqui a cometer o crime é quem ameaça ou quem divulgou os conteúdos, e não a pessoa que se fotografou ou que estava simplesmente numa conversa mais sexual ou íntima, e que tem todo o direito a isso. Há até uma campanha chamada Safer Nudes, cujo intuito é passar que o objetivo não é as pessoas deixarem de ter este tipo de interações, apenas ter consciência dos perigos e fazerem-no com mais segurança. E nós fazemos muito esse trabalho”, refere a representante da APAV. “Depois, ao longo do processo, garantir que aquele corpo digital é removido. Existe um data body que extravasa para o nosso mundo físico e que tem imensas consequências psicológicas gravosas na pessoa; tentamos ser um suporte confidencial (sem autorização não contactamos as autoridades) e fazemos sempre o caminho que, para as vítimas, faz mais sentido, apresentando estas alternativas, que será a comunicação com as plataformas, o reportar perfis, o bloquear emails, fazemos as verificações nos motores de busca, acompanhamos pessoas que já fizeram transferências patrimoniais junto de bancos… E depois ensinamo-las a reforçar a segurança e a privacidade.” Existe um “acompanhamento na parte da literacia digital para que isto não volte a acontecer. Porque o objetivo não é deixarem de usar estas plataformas, antes sentirem-se fortalecidas no conhecimento que têm na navegação digital e que o façam com maior segurança.”

É por isso que a mensagem a passar não deve ser a condenação do ato de fazer ou tirar fotografias, mas antes a disseminação não consensual, muitas vezes agravada por um móbil criminoso, das mesmas. Carolina Soares mencionou a campanha Safer Nudes. Em outubro de 2020 surgiu, no nosso país, o movimento #nãopartilhes — precisamente com o objetivo de consciencializar e sensibilizar a sociedade, e alertar para este tipo de comportamentos abusivos. O que este género de iniciativas têm em comum é a mensagem da desresponsabilização das vítimas, ao retirar o peso da vergonha ou ingenuidade, imposto pela sociedade, que não deveria existir: “E isso até é, creio, inconsciente: frases como ‘Pôs-se a jeito’ são por vezes ditas sem se pensar muito no assunto, normalmente por pessoas que nunca passaram por isso, mas não quer dizer que não possam passar por isso no futuro”, alerta Carolina Soares. Outra salvaguarda tão verdadeira quanto importante: este abuso sexual baseado em imagens não discrimina. “É importante que exista a noção de que qualquer pessoa pode, em algum momento, ser vítima de uma situação destas. Pessoas de idades e géneros diferentes, de meios sócio-culturais diferentes, podem ser igualmente afetadas. A partilha de uma imagem íntima nesse contexto privado e de confiança, não diz nada de absoluto em relação à pessoa. Mas precisamos cada vez mais de ter a noção de que o que guardamos online, num telemóvel ou num PC, pode ser acessível por qualquer pessoa, pelo que é importante que os níveis de literacia tecnológica possam melhorar a par dos níveis de literacia emocional e para a saúde”, alerta Filipa Jardim da Silva.“O problema não é novo”, constata a representante da APAV, “mas a Internet e a tecnologia são propulsores, no sentido em que a sua evolução tem permitido chegar a pessoas não conhecidas, e que de outra forma não teriam as suas fotografias acessíveis. Qualquer um de nós está exposto.”

“A nível da sexualidade e individualidade a nossa sociedade tem um longo caminho a percorrer. Muitas pessoas continuam a acreditar que existe um certo e um errado absoluto para tudo, que só podemos ser uma coisa ou outra. Ou somos responsáveis e bem sucedidos, ou somos divertidos e irresponsáveis. Ou somos sérios e estamos numa relação comprometida, ou somos fáceis e libertinos. Sobretudo em relação às mulheres." - Filipa Jardim da Silva

Como se combate, então, este flagelo? Antes de mais com sanções e punições, para dissuadir futuros episódios. “Sem dúvida que a impunidade que envolve estas situações tende a reforçar a sua repetição, a agudizar ainda mais a impotência das vítimas e a facilitar a desresponsabilização dos agressores”, relembra a psicóloga. O quadro legal nacional e internacional só há uns anos começou a moldar-se para acautelar este género de crimes, com vários países (Reino Unido, Canadá, Malta, Israel, Estados Unidos, por exemplo) a avançarem com a criminalização, de forma autónoma, da captação ou divulgação não consentida de conteúdos digitais de carácter sexual. No caso de Portugal, está previsto como uma alínea extra ao crime de violência doméstica que se traduz num agravamento de pena, ou seja, uma denúncia relacionada com o abuso sexual baseado em imagens, ocorrendo no âmbito da violência doméstica, traz ao culpado mais dois a cinco anos de pena. Fora deste contexto, pode incluir-se, ainda, em crimes como extorsão (se implicar chantagem em troco de algo contra a vontade da vítima) ou devassa da vida privada, por exemplo. O quadro legal é recente: até 2018, os tribunais aplicavam a estes casos o disposto no artigo 199º do Código Penal, relacionado com gravações e fotografias ilícitas, uma referência por demais redutora para a dimensão do fenómeno. Foi a Lei n.44/2018, de 9 de Agosto, que veio reforçar a proteção jurídico-penal da intimidade da vida privada na Internet. Tendo em conta que esta é uma legislação que está ainda nos primeiros passos, pode parecer pouco (aliás, há petiçõees e propostas de lei a pedir um quadro penal menos tímido), mas é, ainda assim, um degrau em direção ao objetivo de erradicar este género de situações. Carolina Soares acrescenta: “Há quem defenda que não há necessidade de se criar nova legislação, porque vamos estar a acrescentar dificuldades ao processo. Devemos trabalhar com conceitos que já existem, mas talvez desenvolver um pouco mais no que diz respeito à compreensão destes crimes, ou seja, às motivações, aos comportamentos e à forma como depois são enquadrados nas várias leis existentes, haver penalizações mais a sério quando estes crimes acontecem e eventualmente trabalhar mais este limbo em que a pessoa está a ser ameaçada, mas ainda não foi nada publicado. Muitas vezes, as pessoas dizem que até foram à esquadra, mas que a polícia não podia fazer nada porque o conteúdo ainda não tinha sido publicado. E eu creio que, se a pessoa já est a ser ameaçada, se está a ser extorquida em troca da não divulgação de imagens, já está a ocorrer um crime.”

E isso leva-nos a outra forte (se não a mais forte) arma de combate: “Se nós, como sociedade, consideramos que determinado crime é grave, isto depois tem uma repercussão no quadro legislativo e na forma como esse crime é de alguma forma punido”, aponta a técnica da Linha Internet Segura. A resolução começa, também e talvez principalmente, em nós, enquanto seres sociais — na forma como mudamos as condicionantes que temos e como podemos evitar que as futuras gerações perpetuem o estigma, interrompendo o ciclo vicioso com educação, consciencialização e mudança de mentalidades. “Temos uma severa falta de empatia e compaixão, na sequência de um défice generalizado de competências emocionais e pessoais” lamenta Filipa Jardim da Silva. “Competências que não são ensinadas, treinadas ou promovidas nos sistemas educativos atuais, que não são veiculadas junto das famílias para que os pais possam fazer o seu melhor trabalho, que ainda não estão suficientemente disseminadas nos contextos organizacionais.” A psicóloga acrescenta: “A nível da sexualidade e individualidade a nossa sociedade tem um longo caminho a percorrer. Muitas pessoas continuam a acreditar que existe um certo e um errado absoluto para tudo, que só podemos ser uma coisa ou outra. Ou somos responsáveis e bem sucedidos, ou somos divertidos e irresponsáveis. Ou somos sérios e estamos numa relação comprometida, ou somos fáceis e libertinos. Sobretudo em relação às mulheres, a maneira de vestir, o tamanho e forma do corpo e o movimento do corpo é catalogado sempre de forma redutora. Isso acontece quer na exposição de imagens sexuais íntimas como na devassa de momentos privados, como foi o caso da primeira ministra finlandesa que por se estar a divertir simplesmente numa festa se viu envolvida em acusações de consumo de drogas e perda de legitimidade política para assegurar as suas funções. Haverá sempre, naturalmente, uma componente pública e uma componente privada, o ser humano beneficia de privacidade, um lugar seguro onde é como quer ser e onde faz o que quer fazer sem olhares alheios, sem pressões nem comparações. Se a vergonha diminuir, essa arma de coação torna-se mais frágil, mas não deixará de ser criticável o ato de disseminação não consentida de imagens ou informações íntimas”, esclarece. E deixa um apelo: “É urgente fomentar a inteligência emocional junto de crianças, jovens e adultos. Sem estas competências pessoais, emocionais e sociais assentes em autoconhecimento, autocontrolo, regulação emocional, empatia e colaboração tenderemos a perder os alicerces que sustentam uma comunidade saudável. É urgente promover a saúde mental de forma transversal e acessível, em todos os segmentos da sociedade. A probabilidade destes comportamentos desadaptativos serem realizados em conteúdos de doença psicológica ou vulnerabilidade emocional é maior. Como também é crítico recuperarmos níveis de cidadania perdidos, com mais convivência de qualidade entre as pessoas, com mais relações colaborativas, não só em momentos de crise mas no dia a dia.” Filipa Jardim da Silva sabe do que fala, visto que já contactou com os dois lados da questão: “Já acompanhei adolescentes e adultos que foram os responsáveis pela divulgação de imagens íntimas de outra pessoa. Só o facto de procurarem ajuda já é um bom indicador no sentido de assumirem e se consciencializarem de que este comportamento não é aceitável. Outras vezes, vem na sequência de pressão familiar ou social, e há um caminho mais longo a fazer na consciencialização. O trabalho será sempre na direção de fomentar responsabilização e aprendizagem com o sucedido, como em tudo na vida. Nãoé produtivo vitimizar e também não é vantajoso culpabilizar de forma extrema e absolutista. Há que apoiar as pessoas, vítimas e agressores, num trabalho de reforço de competências pessoais e emocionais, para poderem extrair aprendizagens construtivas de situações negativas e danosas, responsabilizando-se por aquilo que está no seu campo de ação, com maior foco no momento presente e no futuro, do que propriamente em mudar algo do passado.” E, se esta mensagem para o presente e futuro não ficou clara, relembramos: há um lado inquestionável nesta matéria. O da liberdade de expressão e de escolha — escolher tirar e enviar (ou não) nudes — sem se ser julgado por isso e, acima de tudo, sem que isso signifique uma permissão social para que terceiros os possam partilhar sem consentimento. Tal como é ignorância (diria até estupidamente imbecil) dizer que uma mulher foi violada porque usou uma minissaia, ninguém se pôs a jeito com a divulgação de imagens íntimas só porque as tirou. 

*Se é vítima ou conhece alguém que está a ser vítima de divulgação não consensual de imagens íntimas, contacte a APAV através do número gratuito 800 21 90 90 ou linhainternetsegura@apav.pt.

Publicado originalmente na edição Gossip da Vogue Portugal, de setembro 2022.For the english version, click here. 

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