Quando nos falha a voz, Rupi Kaur oferece-nos o seu timbre. Quando nos faltam as palavras, Rupi Kaur escreve-as. Quando nos falta o chão, Rupi Kaur desenha-o. Quando nos falta o teto, Rupi Kaur abraça-nos. E quando nos faltar o sustento, a força e o ser, é em Rupi Kaur que vamos encontrar tudo aquilo que precisamos para voltar a nós.
Rupi Kaur ©Fotografia de Carlota Gerrerro. Realização Sina Braetz.
Rupi Kaur ©Fotografia de Carlota Gerrerro. Realização Sina Braetz.
É possível que já tenha ouvido o nome dela. É possível que se lembre dele. É possível que o tenha esquecido no meio de tantos outros. É possível que saiba quem ela é, nem que seja pelo facto de ter lido sobre ela num qualquer artigo sobre normalizar a menstruação. É possível que se tenha sentido chocada pela imagem de uma mulher deitada numa cama, com uma mancha de sangue nas calças. É possível que se tenha sentido empoderada, compreendida e representada quando alguém a partilhou consigo. É possível que já tenha visto os seus poemas de duas linhas no feed de Instagram de uma amiga. É possível que não tenha gostado deles. É possível que os tenha lido todos os dias desde então. É possível que, depois disso, não se tenha sentido sozinha.
Tudo porque Rupi Kaur – a mulher orgulhosamente canadiana, a imigrante orgulhosamente Punjabi Sikh, a filha de um refugiado orgulhosamente ativista, a poetisa orgulhosamente feminista – existe. Tudo porque Rupi Kaur – a voz, a mão e a consciência por detrás de milk and honey e the sun and her flowers, duas coleções de poesia que conseguem ser, simultaneamente, as nossas melhores amigas e as nossas piores inimigas – não se deixou silenciar. Tudo porque Rupi Kaur – o amor, a perda, o trauma, a cura, a feminilidade, a resiliência, a migração, a raiz, a herança, a esperança, a revolução – nos sussurrou delicadamente, com a força de um grito de paz, “and here you are living/ despite it all” (“e aqui estás tu a viver/ apesar de tudo”).
Qual foi o seu primeiro encontro com a poesia?
O meu primeiro encontro com a poesia foi, provavelmente, quando ainda era uma criança. Durante a minha infância, estive sempre rodeada pela poesia. É uma parte muito significativa da minha fé e da minha espiritualidade. As escrituras Sikh, escritas em verso, são cantadas quando uma criança nasce, são recitadas quando alguém se casa, ou quando alguém parte deste mundo. Por isso, a poesia sempre fez parte da minha vida diária. Aprendi, desde muito cedo, que a poesia é a forma como conseguimos explicar ideias complexas, de um modo simples. Em algumas noites, o meu pai sentava-se, a analisar um único verso durante horas. Eu sentia-me fascinada pela forma como cinco palavras podiam ter tanto significado. A forma como podemos aprofundar, aprofundar e aprofundar, e mesmo assim existirem elementos por explorar.
O que é que a poesia significa para si?
A poesia é a forma como vivo a minha vida. Nos meus melhores e nos meus piores momentos. A poesia é a forma como processo as minhas experiências. A forma como reflito. A forma como recupero. E, no final, os poemas são o resultado de todas as minhas reflexões, e de todas as lições que aprendi.
O quê, ou quem, a inspirou a começar a escrever?
Não me lembro de um momento em específico que me tenha inspirado a começar a escrever. Acho que foi mais um conjunto de momentos que me levaram a isso. Desde tenra idade, estava sempre a escrever e a desenhar. A “expressão” é a minha arte. E a poesia é o meu meio mais recente. Em criança, eu recorria à expressão porque havia muita coisa a acontecer em casa e eu não sabia como lidar com isso. Não podia falar sobre estas coisas com os meus pais. Não tinha primos nem irmãos mais novos com quem pudesse passar o meu tempo. Que me fizessem sentir visível. Por isso, na minha solidão, recorri ao desenho. Nessa altura, não tinha as palavras certas para descrever aquilo que estava a sentir. E era por isso que o desenho me atraía tanto. Não precisava de palavras para desenhar. Alguns anos depois, desenhar já não era suficiente. Precisava de algo mais. Foi aí que comecei a escrever pequenas frases no canto superior dos meus desenhos. Depois de passar alguns anos a fazer isso, comecei a escrever estes poemas longos, e fazia performances dos mesmos em eventos de open mics. E foi aí, quando peguei no microfone, que me apaixonei profunda e totalmente. Depois desse momento, não havia volta a dar. Daí em diante, decidi que me iria desafiar a encontrar as palavras para aquilo que me estava a incomodar. Decidi que era necessário encontrar as palavras porque me fazia sentir empoderada.
Fale-nos um pouco sobre estes elementos desenhados que acompanham os seus poemas. O que a levou a querer acompanhar as palavras escritas com ilustrações feitas por si?
Aquilo que me levou a ilustrar a minha poesia foi o facto de sentir saudades de desenhar. Quando comecei a atuar poesia falada e a participar em slams poéticos e open mics, parei de desenhar por completo. Anos depois, senti-me culpada por ter abandonado aquele que foi o meu primeiro amor, o desenho, e pensei se haveria alguma forma de o recuperar. Comecei a desenhar outra vez, mas estava a roubar-me tempo de escrita. Foi aí que perguntei a mim mesma se haveria alguma forma de juntar estes dois meios. Depois de vasculhar a minha mente por ideias, a visão de desenhos com linhas simples quase que caiu no meu colo do nada. Sempre desenhei à mão, mas sabia que se estes desenhos tivessem de acompanhar os poemas teriam de ser digitais. E decidi experimentar. Em termos de design, este estilo acabou por resultar para mim porque os meus desenhos eram suficientemente simples para não serem uma distração em relação às palavras, mas eram simbólicos o suficiente para ajudarem a puxar a visão das palavras a outro nível. Eu estudei retórica e design na universidade, e acho que isso penetrou a forma como eu crio estes poemas. Queria fazer algo clean, claro e conciso, para que os meus leitores se pudessem focar somente nos poemas.
Tem um poema que lhe seja particularmente especial?
Gosto muito do timeless, do the sun and her flowers, e adoro este, do milk and honey:
you must have knownyou were wrongwhen your fingerswere dipped inside mesearching for honey thatwould not come for you
Quem são os artistas que a inspiram?
Existem tantos. Sharon Olds, Marina Abromovich, Adele, Beyonce, Kahlil Gibran, Nizzar Qabbani, Amrita Sher-Gil, Frida Kahlo.
O seu pai é refugiado, e já falou abertamente sobre a sua experiência de, aos sete anos, estar com ele na rua, a protestar contra o genocídio feminino. De que forma é que isto a influenciou?
O meu pai sempre foi um ativista. Lembro-me de ele me obrigar constantemente a ir com ele a protestos pelos direitos humanos, aos fins de semana. Hoje, sinto-me muito grata por isso, mas, aos sete ou nove anos, ficava desconsolada porque ia perder os desenhos animados de sábado de manhã para andar de um lado para o outro no meio da rua. Ele também me inscrevia em competições de discursos e fazia-me escrever sobre os atentados aos direitos humanos, antes de eu saber sequer o que os direitos humanos eram. O meu pai é uma pessoa muito moral e muito ética, uma pessoa que sempre foi muito apaixonada pela defesa das comunidades que são oprimidas, e isso está muito entranhado em quem eu sou, hoje. Na sua raiz, é daí que a minha poesia vem. O ativismo e a arte estão unidos um ao outro. Estão interligados. Para eu me sentir bem com a minha arte, ela tem de ter esse mesmo ativismo.
Numa entrevista com Emma Watson, partilhou que só vestiu criadores indianos durante a sua tour no Reino Unido e a sua experiência enquanto mulher indiana e canadiana é algo sobre o qual é muito vocal. O que é que a herança significa para si?
Enquanto imigrante, sempre me senti muito confusa em relação à minha identidade. Dentro da minha casa, eu era Punjabi Sikh. Mas quando fui para a escola, no Canadá, as outras pessoas eram todas diferentes. E a minha identidade Punjabi Sikh não era celebrada. Na verdade, era ainda menos celebrada por mim. Eu tinha vergonha de ser diferente, de não ser como a maioria. Demorei anos a parar com este ódio pessoal e aprender que o sítio de onde eu vinha era belíssimo. Por isso, a herança significa tudo para mim. A herança é onde eu me enraízo. É onde eu encontro a minha verdade. Onde eu encontro as minhas pessoas. Onde eu encontro a minha espiritualidade. E onde eu me ligo.
Começou por partilhar os seus poemas em plataformas sociais, gradualmente avançando do Tumblr para o Instagram antes de, em 2014, ter publicado milk and honey, o seu primeiro livro. Em 2017, foi a vez de the sun and her flowers, a sua segunda coleção de poesia. Como foi este processo de transição, mas também de crescimento, das redes sociais para estes dois livros?
Partilhar a minha poesia nas redes sociais foi muito divertido. Era entusiasmante porque eu tinha estas ideias há anos, mas sempre as guardei para mim mesma. Quando as comecei a partilhar, os meus leitores começaram a encontrar-me. Tínhamos diálogos e conversas que me viriam a ajudar a crescer enquanto pessoa. O livro foi um pedido dessa comunidade digital. Por isso, devo muito aos meus leitores, pelo seu carinho e apoio constantes. Publicar o milk and honey foi uma jornada. Às vezes olho para trás e ainda não consigo bem processar que isso aconteceu. Não consigo acreditar que o livro vai fazer cinco anos em novembro! Sinto-me muito abençoada. Escrever o milk and honey foi simples, porque eu não estava a tentar escrever um livro. Estava só a escrever porque adorava escrever. Por isso, não havia qualquer pressão para alcançar determinado objetivo.
Escrever o the sun and her flowers foi um processo muito diferente porque, de repente, “escrever”, algo que eu adoro tanto, algo que eu fazia como um hobby, transformou--se na minha carreira. Apesar de achar isso ótimo, não percebi que seria algo que viria com uma pressão tremenda. A pressão que eu senti para recriar o sucesso do milk and honey deixou-me debilitada. Escrever esse livro foi o meu maior desafio criativo, porque tive de superar os meus próprios medos, as minhas dúvidas interiores e a minha síndrome de impostora para o conseguir completar. Para além disso, são dois livros muito diferentes. O milk and honey é uma jornada interior. É bastante egoísta e faminto pelo ego. Por outro lado, o the sun and her flowers é uma viagem exterior. É saíres de dentro de ti mesma e andares pelo mundo fora. Neste segundo livro, comecei a considerar temas que me são exteriores, o que, por si só, foi muito divertido e diferente.
De onde surgiu a inspiração para esses dois livros?
Os poemas que estão nos meus livros surgem da minha vida diária. Das minhas experiências. Das experiências das pessoas que eu amo e das mulheres que estão à minha volta. Eu escrevo para processar a vida e os poemas são um resultado disso mesmo.
O seu trabalho já tocou em questões como o abuso, a agressão sexual, a experiência de ser imigrante e a superação do trauma. Como é que navega pela complexidade destes temas, especialmente quando podem ser entendidos como “controversos” por algumas pessoas?
Eu escrevo aquilo que me aparece. Penso que é isso que torna tudo tão simples. Não estou a tentar ser controversa ou planear o que é que o meu próximo livro vai ser. A cada dia, eu escrevo aquilo que sinto, aquilo que é honesto para mim, aquilo que está a acontecer comigo naquele momento, porque é isso que eu posso fazer. Eu confio nisso. As minhas experiências levaram-me a escrever sobre estes temas – costumava ser difícil partilhá-los, mas percebi que, para mim, é essencial partilhar, porque quando partilhamos, conectamos uns com os outros. E quando nos ligamos uns aos outros, sentimo-nos menos sozinhos e conseguimos ajudar-nos mutuamente a recuperar.
Como é que encontra o equilíbrio entre escrever sobre as suas próprias experiências e explorar tópicos que podem não ser necessariamente autobiográficos, mas que são relacionáveis para tantas pessoas?
Quando não estou a escrever poesia autobiográfica, tenho tendência a escrever sobre histórias de outras pessoas que me tenham tocado profundamente de alguma maneira. Sou extremamente sensível e empática, acima do normal. Não consigo evitar entrar no corpo e na mente de outras pessoas e processar aquilo que elas estão a passar. É algo que simplesmente acontece. E não estou com isto a querer dizer que percebo a experiência dessas pessoas. É uma questão de preocupação genuína. Eu passo muito tempo a contemplar a dor dessas pessoas, a admirar a sua resiliência, e sinto a necessidade de celebrar a forma como superaram os maiores desafios da vida. Sou capaz de passar horas, dias, semanas, a pensar sobre um único cenário.
Nas suas próprias palavras, “precisamos de mais amor/ não dos homens/ mas de nós mesmas/ e umas das outras.” Para si, o que significa ser feminista, falar em nome das mulheres e lutar pelos direitos das mesmas numa sociedade que, tantas vezes, nos vira umas contra as outras e nos faz sentir desvalorizadas?
Para mim, ser feminista significa dar ânimo a todos aqueles que são vítimas de opressão. Significa sentarmo-nos nas interseções, elevar as pessoas de cor, as comunidades LGBTTQQIAAP, as pessoas que falam uma língua diferente da nossa, que são refugiadas, que são imigrantes. Podia continuar e continuar. Mas ser feminista significa não ficar em silêncio. Significa perceber que todas as pessoas merecem igualdade. Significa levantar a voz em nome das comunidades que estão a ser dizimadas por um poder maior. Significa ouvir. Significa olhar para o meu reflexo no espelho todos os dias e perguntar a mim mesma como é que posso fazer mais, como é que posso fazer melhor. Significa aceitar que não sou perfeita, e que isto não é uma questão de perfeição. Ser feminista é aprender e crescer todos os dias. É estar numa constante conversa com o outro.
No dia 22 de abril de 2018, o Dia da Terra, partilhou um poema onde se podiam ler as seguintes palavras: “olha para o que eles me fizeram/ chorou a Terra à Lua/ transformaram-me numa ferida inteira.” Nos dias que correm, o que pensa sobre a sustentabilidade e a consciência ambiental?
O nosso planeta está em apuros. A nossa mãe, esta Terra que nos dá fôlego, que nos dá o seu corpo para que possamos viver, está a ser abusada. E nós não estamos a fazer o suficiente para mudar isso. Isso assusta-me e deixa-me de coração partido. A Terra pode não conseguir levantar a sua voz e usar a linguagem como forma de comunicação – mas só te estás a enganar a ti mesma se pensas que ela não está a gritar. Basta olharmos para os oceanos. Para o plástico que está a consumir as águas. Para os padrões climáticos extremos. Para a quantidade de desperdício que produzimos. Nós não estamos a fazer aquilo que precisamos de fazer para garantir que as gerações futuras vão ter um planeta para viver. E sei que muitos de nós se preocupam, que muitos de nós querem agir. Também podemos sentir que o problema é tão grande e tão acima de nós que não há nada que possamos fazer. Mas isso não é verdade. Não podemos aceitar isso. As mudanças mais significativas e as verdadeiras revoluções nunca vieram de cima. Nunca vieram de fontes estabelecidas, com dinheiro, com poder. As mudanças mais significativas e as verdadeiras revoluções sempre aconteceram graças às pessoas que estão no terreno. Não podemos confiar isto aos governos e às empresas que estão a lucrar com a destruição do ambiente para mudarem a forma como negoceiam. Eles vão fazer a nossa Terra sangrar até à última gota porque tiram dinheiro disso. Nós somos os únicos que podemos fazer a diferença. Temos de aceitar a ideia de que nós, enquanto indivíduos, somos mais poderosos do que aquilo que pensamos. E aí podemos começar a desempenhar um papel maior no salvamento da Mãe Terra.
Artigo originalmente publicado na edição de setembro de 2019 da Vogue Portugal.
Veja o editorial completo com Rupi Kaur, aqui.