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Porque é que não conseguimos sair de casa sem nos vermos ao espelho?

28 Feb 2021
By Mathilde Misciagna

Será que sem a ajuda de um espelho como ferramenta de auxílio à expressão pessoal nos tornaríamos criaturas estáticas e entediantes – aos nossos olhos e dos outros?

Será que sem a ajuda de um espelho como ferramenta de auxílio à expressão pessoal nos tornaríamos criaturas estáticas e entediantes – aos nossos olhos e dos outros?

©Getty Images

Vestir-me sempre foi o principal veículo de expressão da minha identidade – sobretudo (mas não só) devido ao diálogo que desencadeia entre mim e alguns (bastantes) olhos esbugalhados de quem comigo se cruza. Entusiasma-me o ato de me vestir, especialmente quando sei que vou estar com alguém que vai perceber aquilo que estou a tentar dizer através desse mesmo ato. Sem isso, a preguiça apodera-se de mim e o resultado são umas calças de fato de treino e uma sweatshirt. Que atire a primeira pedra quem não se sente estimulado pelo (e afeiçoado ao) olhar de outrem, especialmente no que à Moda diz respeito. Mas quem é que quer genuinamente saber daquilo que vestimos? Provavelmente ninguém. E, no entanto, todos nós, enquanto indivíduos, queremos saber, e isso deve-se ao facto de usarmos a roupa que vestimos para comunicar algo acerca de quem somos e também como armadura para nos protegermos daquilo que achamos que somos. Quando usamos uma peça com a qual não nos identificamos, sentimo-nos desprotegidos, vulneráveis, desconfortáveis e dissociados de nós próprios. É profundamente curiosa a forma como o estilo e a caraterização do eu se cruzam, transformando o processo de nos vestirmos num poderoso veículo de expressão criativa. Se concorda com a ideia de que a Moda é efetivamente este veículo de expressão, é fácil encarar isso como algo positivo, como algo que é capaz de nos dar ânimo, de nos fazer sentir bem e inteiros. E é aqui que está o paradigma. Porque às vezes a roupa não nos fica bem, ou não temos recursos para a comprar ou tempo para a escolher... e depois? Quando transformamos o prazer de uma coisa agradável num requisito para nos sentirmos inteiros e em sintonia connosco próprios, o que é que acontece quando, por algum motivo, nos é tirado esse prazer? Será que um bom outfit é uma busca insípida por algo maior? Se nos vestimos para nós, qual é a necessidade de vermos o nosso reflexo num espelho antes de sairmos de casa? Se a Moda é realmente essa ferramenta de autoexpressão porque é que precisamos de considerar as opiniões dos outros para nos envolvermos com ela? Poderíamos simplesmente vestir-nos por instinto, acreditando que todas as peças que vestimos nos ficam tão bem na realidade como na nossa imaginação. Se estivermos orgulhosos do nosso aspeto exterior movemo-nos de forma diferente, cientes da possibilidade de sermos observados, cientes da forma como o nosso corpo se comporta dentro de determinada peça de roupa que assinala determinada ocasião. Não mentimos, mas não deixamos de estar a “representar” de uma forma mais natural, porque o olhar do outro altera o nosso comportamento, mesmo que involuntariamente. Ao manter, e exponenciar, essa grande superfície refletiva, o espelho –esteja ou não numa área comum da casa – está a abrir a possibilidade de uma autoanálise constante. Existem pessoas que simplesmente não abrem espaço a essa análise eliminando espelhos de corpo inteiro ou escolhendo não adquirir um durante meses quando mudam de casa. A perplexidade nos olhos do leitor deixa adivinhar a surpresa: “Mas como é que essas pessoas se conseguem vestir sem um espelho?”, quando na verdade a questão que invade o cérebro é: “Mas não se importam com o que as outras pessoas pensam?” Pois é. Escolher outfits sem a ajuda de um espelho de corpo inteiro é mais ao menos como precisar do Google Maps para nos orientarmos na rua da nossa própria casa. Em princípio deveríamos saber fazê-lo sem a ajuda de uma aplicação, visto que há anos pisamos repetidamente os mesmos metros quadrados de calçada. Mas, sem a tal app, sem o tal espelho, sentimo-nos perdidos. Que sapatos é que usamos normalmente com aquele vestido? Que top poderia equilibrar o facto daquelas calças serem tão justas? Será que aquela t-shirt me faz parecer relaxada-cool ou relaxada-desleixada? Por outro lado, no que toca ao que os outros pensam de nós, estamos viciados em ter alguma coisa para lhes dizer. Fazêmo-lo insistentemente e através de todas as plataformas possíveis. A roupa não é exceção. Podemos vestir umas calças baggy e dizer ao mundo que sabemos que o corte desfavorece totalmente a nossa figura e que, apesar disso, as usamos na mesma porque não estamos nem aí para o que os outros pensam. Podemos usar cor de rosa dos pés à cabeça e dizer ao mundo que não temos qualquer intenção de passar despercebidos. Podemos vestir-nos de fato e gravata no caso das mulheres, ou com uma saia no caso dos homens, e com isso dizer ao mundo que temos um ponto de vista muito definido sobre questões de género e sabemos como expressá-lo. Gostamos de pensar que é só um corpo dentro de um tecido, só uma camada que não precisa de comportar significados implícitos. Quando um simples olhar ao espelho limpa toda a energia positiva do nosso corpo como se estivéssemos dentro de uma máquina de lavar gigante. O que é pior, enfrentar uma autoanálise e autocrítica exaustiva em casa, dentro de quatro paredes, com a ajuda de um espelho, ou mais tarde, num encontro involuntário com uma montra? Ou será isto um binário que na verdade nem existe, o de assumir que a autocrítica é constante e que é impossível que não aconteça? Será que na impossibilidade de verificar que algo nos fica bem somos forçados a imaginar que sim, ou convencemo-nos, pelo contrário, que não? Num artigo publicado em 2019 no site Repeller, várias pessoas deram os seus testemunhos de uma vida (ou de um período de tempo) sem espelhos. Para muitas não havia necessidade de possuírem um espelho, porque sabiam exatamente que roupas combinar e, consequentemente, não precisavam de verificar se ficavam ou não bem dentro delas. O espelho não funcionava como uma cábula, e a ausência do mesmo permitia-lhes poupar tempo de manhã – não sofriam de indecisão nem eram alvo de escrutínio, apenas planeavam dentro da cabeça um coordenado com o qual estavam entusiasmadas e saíam porta fora, cheias de confiança. Abençoado seja aquele que conhece toda a sua roupa e sabe como é que lhe fica, pois a maioria dos comuns mortais veste-se como se nunca tivesse visto nem experimentado qualquer das (suas) peças na vida. Estará o nosso reflexo a impedir-nos de manter uma relação de proximidade e compreensão mais profunda do nosso guarda-roupa, iludindo-nos com uma ideia de expressão criativa? Podemos concordar que o nosso aspeto exterior não nos define e sim o nosso intelecto, generosidade, caráter. E depois, pomo-nos à frente de um espelho e repreendemo-nos por não estarmos no nosso melhor, não nos termos esforçado o suficiente para vestir uma peça com a qual nos identificamos ou, pior do que isso, termos a aparência de alguém que não somos no interior. Como é que podemos ter consciência de que o olhar dos outros em relação ao nosso reflexo é uma péssima base sobre a qual construir a nossa autoestima, e mesmo assim, insistir em fazê-lo? No livro Femininity And Domination (1990), da autora Sandra Lee Bartky, esta reflete acerca da obsessão da sociedade com a aparência: “O imperativo de não negligenciar a nossa aparência sugere que podemos efetivamente negligenciá-la, que está ao nosso alcance melhorar a nossa aparência – não apenas ser cuidados e limpos, mas mais bonitos e atraentes. O que se pressupõe com isso é que ainda não parecemos bons o suficiente aos olhos dos outros, que a atenção aos padrões comuns de higiene seria insuficiente, que há algo de errado connosco tal como somos. E, portanto, não apenas devemos continuar a produzir-nos como corpos bonitos, mas os corpos ‘que temos em mãos’ são deficientes desde o início.” Quantas horas já passou a criticar o seu reflexo? A atirar, num ataque de fúria, um vestido para cima de uma cadeira porque já não lhe serve como dantes? A alternar vezes sem conta entre vários coordenados até voltar exatamente ao primeiro, o que lhe causa frustração na melhor das hipóteses e absoluta indiferença na pior? O espelho e aquilo que escolhemos vestir depois de termos conferido nele o nosso reflexo, permitem-nos assumir uma persona e, por vezes, liberta-nos da própria realidade (o que pode ser um alívio) e a inexistência de um reflexo propriamente dito acaba por nos silenciar, impedindo-nos de jogar essa espécie de jogo, representar determinado papel em público. Um espelho não deve ser uma fonte de exaustão. Deve, em vez disso, ser um objeto conveniente, um mood booster, um lugar de neutralidade que nos permita usufruir um qualquer prazer ocasional. Longe de qualquer vergonha, obsessão ou superficialidade. É muito mais fácil dizer que a vaidade é uma distração do que dizer que pode ser uma, mas não precisa de ser. Passamos tanto tempo divididos entre um interesse pela estética e o reconhecimento da ênfase exagerada e prejudicial que a estética tem na cultura popular (e, historicamente, na nossa cabeça), que lutamos para acreditar que os dois se excluem mutuamente. Mas talvez possam coexistir. Não vivemos num mundo invisível, o que significa que as caraterísticas relacionadas com a aparência têm significado, e a forma como nos apresentamos também. Podemos escolher ficar fora dessa narrativa, como as pessoas que não têm um espelho de corpo inteiro fazem com admirável desenvoltura. Mas a escolha oposta, se feita cuidadosamente, não tem de estar em contraste moral com isso. Talvez um olhar do outro possa ser apenas um olhar. Um pequeno preâmbulo do que vem a seguir, se estivermos dispostos a prestar a devida atenção. 

Mathilde Misciagna By Mathilde Misciagna

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