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Diário de Prata: Argentina

26 Dec 2018
By Sara Prata

Tenho estado a adiar a escrita deste texto, dia após dia, e hoje entendi porquê. Estou quase a fazer as malas para regressar e não acredito que este pequeno grande sonho já tem os dias contados. Mas enquanto aqui ando vou contar-vos esta minha nova paixão. Esta é a minha história na Argentina.

Tenho estado a adiar a escrita deste texto, dia após dia, e hoje entendi porquê. Estou quase a fazer as malas para regressar e não acredito que este pequeno grande sonho já tem os dias contados. Escrever as histórias é guardá-las na memória, e eu quero fingir só mais um pouco que ainda fico por aqui mais e muitos dias. Se agora aterrasse um bilhetinho do Aladino na minha mão, a conceder o desejo de poder fazer tudo de novo, eu fazia. Mesmo com esta mochila, que já não posso ver à frente, tanto é o faz e desfaz, com estas roupas que assim que chegar a casa vou doar, e com estes sapatos, os únicos que vieram comigo. Com tudo o que tenho agora eu iria, sem mexer em nada, porque por dentro, estou nova, fresca e feliz (tirando a parte que já não aguento dar mais um passo porque fiz mais de 600 quilómetros a pé, muitos deles em altitude – true story, contei naquelas apps). O coração começa mesmo a ganhar uma ansiedade, parece aquela que senti quando estava a horas de vir. 

Mas enquanto aqui ando vou contar-vos esta minha nova paixão. Esta é a minha história na Argentina.

Foi ainda com os olhos cheios de sono, porque acho que nem tive tempo de sonhar esta noite, que começo a percorrer as ruas no táxi com destino ao apartamento que aluguei para estes dias e percebo rapidamente que estou perante uma grande cidade, no sentido de pulsação e paixão. Não aguento estar quieta, acendeu de novo o formigueiro de querer explorar. Em poucos minutos desenho os próximos 4 dias (viva a Internet) e saio logo a explorar as ruas. Escolhi ficar em Palermo, e aconselho. Um bairro lindo, cultural, jovem, com centenas de opções para viver estes dias. Só sei que ao fim de umas horas eu já estava a dizer que podia perfeitamente viver ali, quase a desenhar uma vida hipotética de deixar tudo e lá vir eu para Buenos Aires. Mas eu sou daquelas muito felizes com o que faz no e pelo seu país e não arredo pé daquilo que sou. Mas se continuasse a sonhar acordada, sim, viria. É muito possível que sintam o mesmo, ou se já foram, talvez o tenham sentido também. Dá vontade de explorar estas ruas e rotina sem datas para voltar, acho que é isso. 

As horas passam rápido, e já vou para o 2.º dia. Hoje o plano foi Obelisco, um ícone e monumento histórico, caminhar até Plaza de Mayo e lá fui eu continuar a minha coleção de bandeiras desta viagem. Depois, passar a tarde em Caminito, um bairro muito peculiar e cheio de miniaturas das grandes “personagens” argentinas. É muito turístico, mas, ao mesmo tempo, sente-se bastante o traço real dos habitantes – principalmente se ficarem por lá até começar tudo a fechar, como eu, e verão a mudança. Ah, e também tem o estádio “La Bombonera”, casa do Boca Juniors, a catedral do futebol argentino. 

Terminei o dia num grande espectáculo de Ópera no Teatro Colón, uma das 5 melhores salas mundiais, incrivelmente linda com as suas bancadas douradas em arena, a entoar aquelas vozes, uma noite mágica. Depois deste dia é impossível não estar completamente babada por esta cidade. Estou em pleno. No regresso a “casa”, a realidade dura chama-me à razão, e numa conversa rápida de táxi, pergunto porque estão tantas crianças na rua àquela hora. A resposta é dura como a realidade. “Miséria! Buenos Aires é uma fachada, mais de 30% da população vive na miséria”. Fim de conversa. Eu não conseguia parar de olhar, eram dezenas de crianças mendigas, órfãs, umas brincavam com latas pelo chão, outras acumulavam-se em colchões aos pulos despertando aqueles por quem o sono já chamava. Não sou inocente, sei de que é feito o mundo, o homem. Muitos lugares foram aqueles onde já me apertou o coração com as mais diversas histórias e realidades que os meus olhos vêem, mas... Hoje vou dormir a pensar neles. 

Hoje decidi, pelos vistos, caminhar por Buenos Aires inteiro. Eu acho que passei mesmo em todo o lado. Por favor, tenham a coragem de fazer o mesmo, não hesitem, pois é o melhor que podem levar desta cidade. Perdidos entre ruas, só orientava o GPS para não perder objectivos, como passar no cemitério La Recoleta (quase como numa obra de arte, transformam o triste e sinistro em belo com jazigos arrepiantes e pomposos em homenagem a tantos que fizeram parte desta cidade, como o caso de Evita Peron, que ali está). Visitei o Museu Nacional de Belas Artes com as suas obras únicas de Rodin e depois de milhares de ruas e muitos quilómetros, terminei o dia em Puerto Maduro

Passei o dia fascinada com tudo o que via e sentia, desde monumentos ao dia a dia das pessoas nos jardins a aproveitar esta cidade linda que tem vida, salero, uma assinatura muito própria. Nos restantes dias percorri tudo, mercados, assisti ao jogo Boca Juniors - River Plate numa esplanada e mais tarde juntei-me à festa nas ruas pela vitória na Copa Libertadores. Tinha bilhetes para assistir a um jogo no “La Bombonera”, algo a não perder nesta cidade, mas devido às muito noticiadas agressões a jogadores o jogo acabou por ser adiado (grande tristeza e grande falha).

Desafiei-me a provar todas as grandes Parrillas (carne Argentina) de Buenos Aires, fica a dica “La Cabrera”, mas também podem provar o D. Julio e “Cabaña Las Lilas”

Buenos Aires tem este “problema”, querem fazer tudo. Só ficou a faltar o tango. A minha grande paixão. Quero encontrar este amor sofrido, esta saudade sentida através do ritmo dos corpos... ai o tango.

Já passaram mais uns dias. Juro que está mesmo a ser difícil meter este diário em dia. Parece que a vontade de escrever é vencida pela saudade, e fico só a recordar enquanto olho para o ecrã sem começar a escrever uma única palavra.

Mas por agora vou até à Patagónia. Esta noite até sentia a barriga irrequieta, assim aquela sensação boa, mas que não deixa dormir. É um dos sonhos a cumprir ir à Patagónia, e vai ser hoje, vai ser agora. Como uma criança feliz pego nas malas uma vez mais e vou. Será também o último destino desta viagem e começa o reboliço dentro de mim, entusiasmada por tudo o que falta, mas já é mais forte do que eu começar a fazer o balanço, perder-me em pensamentos e imagens de tudo o que já ficou para trás neste tempo todo. Como é possível já estar a terminar? Como se alguém tivesse acendido um rastilho, e o tempo tivesse passado a contar de forma diferente. 

É pela janela do avião que vejo o primeiro “quadro” deste lugar. Um rio de azul forte, quase turquesa, mas que se mistura com um verde esmeralda, aos ziguezagues num desfiladeiro árido, seco, ou que parece daqui de cima um enorme deserto, onde a única vida que tem é este rio celeste. Num instante o avião aterra e começo a conhecer este templo da Natureza. É num curto caminho até ao hostel que sinto o frio na cara e chego a uma vila simples, remota, pequena, como se tudo fosse uma estância e pertencesse a um complexo só. Bem-vindos a El Calafate

Vamos lá descomplicar a ida à Patagónia já que não há muita informação e parece ser tudo muito difícil ou impossível de cá chegar... e não é. Eu quero-vos a realizar este sonho como eu. Sempre achei que era muito caro, que era tudo muito rudimentar e perdido na neve, que era ali perto do fim do mundo e então não podia ser fácil, mas é! 

Era para ter ido pelo Chile, directa a Torres del Paine (como sabem, há a Patagónia chilena e a argentina), mas como fui construindo esta viagem por cá e não quis andar a correr atrás de datas e tempos certos – (num país organizava o seguinte), o voo já estava muito caro. Pus o coração de lado, e aceitei que iria apenas à Patagónia Argentina. Voo por 200€ comprado 15 dias antes, desde Buenos Aires a El Calafate. Quanto à estadia fiquei em hostels mas aqui têm ofertas para todos, desde 20€ por noite, parques de campismo grátis (e lindos) ou chalés e hotéis de sonho por muitos e muitos euros por noite.  Marquei de um dia para o outro e gastei menos de 150€ por 6 dias de estadia neste destino de sonho. Depois a minha rota e escolhas foram: Glaciar Perito Moreno e fazer um mini trekking em cima deste monumento natural. Só há uma empresa a ter esta oferta, Hielo&Aventura, que vos dá 2 opções, uma pequena caminhada e o Big Ice, que já exige alguma preparação física. Ali estava eu perante o monstro belo e imponente, Perito Moreno. O silêncio neste lugar salienta ainda mais o rugido do Glaciar, que parece ter vida própria quando pedaços estalam ou caem no rio gelado. É sentir a natureza como nunca, é ali que percebem que o mundo inteiro é um equilíbrio, um lugar para partilhar, não importa quem são, de onde são, a Terra é que vos mostra a perfeição, o equilíbrio de tudo em cada pormenor existente. Tudo tem o seu comportamento e ciclo inato. Eu sou uma felizarda por estar aqui a assistir. O tempo é muito restrito pelas ordens da empresa, senti que tinha de cumprir timings dentro do meu sonho, essa parte é chata, mas é o que é. Não podes perder. E eu voltaria a fazer todas as vezes que me fossem possíveis.

Na vila conseguem marcar transporte, ou mesmo alugar um carro, para explorarem o resto do Parque. Há muitas opções, mas eu fui de autocarro por 1500 pesos (cerca de 35€), ida e volta e 3:30h até El Chaltén, a localidade que tem como vista o magnífico Fitz Roy. Pelo caminho não consigo parar de olhar pela janela, parece às vezes que fica difícil acreditar que estou aqui, a mistura de azuis entre o céu e os lagos gelados de aspecto leitoso que brilham entre uma paisagem árida, rasteira, que aos poucos vai crescendo, subindo, tomando forma, até que à vossa frente, entre as nuvens que o rodeiam e a neve que o pinta de branco, está o mágico Monte. Vou ficar por aqui 3 dias, para fazer a subida a este lugar único. Esta será para sempre a grande caminhada da minha vida. 

São 25 quilómetros, a começar no sendero “El Pilar”, e descendo pela lagoa “Capri”. Num dia em que o vento começava a soprar forte, os graus batiam nos negativos e o sol não quis aparecer, fui percorrendo cada quilómetro. A natureza encarrega-se de vos distrair com as paisagens mais bonitas e o foco não é o cansaço, mas sim o que vêem pelo caminho. Sei que o meu objectivo aqui é transmitir as minhas emoções, contar aquilo que vi, mas não tenho a capacidade de escrita para relatar mais um paraíso. Só quero não me esquecer do quão pequenina me senti perante este espectáculo vivo e único, e das tantas vezes que parei apenas para olhar e continuar o caminho. Foram bosques de bonsais que nunca vou conseguir reproduzir, foram condores, donos e reis dos céus que sobrevoam por aqui, as águas gélidas do rio que passam ao vosso lado, onde é possível só parar e beber, as subidas a pique entre pedras que rolam, até chegar perto dele. O lugar dos ventos e das tempestades, onde o objectivo se esconde atrás de nuvens densas, mas é a determinação que me leva a esquecer o cansaço acumulado e continuar, pois é a cada dia que cumpro esta que será a viagem da minha vida. Foi a pensar no chocolate quente que consegui enganar a dor nos pés e chegar ao fim.

Terminaram assim as minhas aventuras. Está quase na hora de fechar este livro de histórias. O corpo cansado diz-me em surdina que é tempo de regressar, que apenas falta... voltar a casa.

Última noite em Buenos Aires e o último desejo em falta, o tango. Não quis assistir a um show, quis sentir o pulsar nas praças. Ali estava eu na Plaza Dorrego, entre bancadas do mercado de domingo a procurar, a ir atrás do som. E assim encontrei, um grupo de locais que se encontram para dançar. São estranhos que contam histórias, tecem partituras em passos envolventes, que me deixam de olhos brilhantes. Em conversa com o Omar, um senhor com os seus suaves 88 anos, queixamo-nos do calor que se faz sentir hoje, mas ele garante que vão estar por ali até às 2h da manhã. Fico a assistir nos degraus sem me atrever a entrar na roda – talvez secretamente eu quisesse ir, talvez secretamente eu quisesse muito ir, mas hoje o coração aperta e eu só consigo ver. Sou de choro fácil, emociono-me com o lado belo das coisas, e hoje estou a encher-me de coragem para guardar as lágrimas porque encerrar estas histórias todas não é fácil.

Foram 3 meses de aventura, conheci tantos países, tantos rostos, animais, culturas. Fiquei em hostels de 10€, fiz tours, aluguei carros, comi nos melhores restaurantes e jantei comida de pacote, acordei nas melhores praias e dormi na bagageira do carro.  Estive no deserto mais árido do mundo e em cima de um glaciar, sentei-me em Machu Picchu, tomei banho de água fria e estive dias sem tomar banho, dei mergulhos de mar, estive em grandes cidades e pequenas aldeias, umas ricas, outras paupérrimas. Estive sempre comigo, a respirar fundo, a concretizar sonhos, sem capas e sem pressões, cresci por dentro, a ser feliz. O único sonho que tenho desde pequenina. 

Foram tantas as mensagens que recebi ao longo desta viagem, todos agradeceram a minha partilha, que assim puderam fazer comigo algo que, de outra forma, nunca podiam ter feito. A todos a minha resposta será só uma, “foi de coração”. Obrigada por terem acompanhado desse lado todos estes diários ao longo de 3 meses, que no fundo foi o diário de um sonho. 

Esta foi a minha história.

Grata 

KISSES FROM HAPPYPRATA

*O texto reflete ipsis verbis as entradas de Sara Prata no diário ao longo da viagem e a atriz escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

Sara Prata By Sara Prata

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