Inspiring Women  

Segurança social: quando a roupa é a proteção contra um mundo atroz

13 Dec 2018
By Patrícia Domingues

O mundo como o conhecemos está prestes a acabar, mas ao menos a Moda deu-nos o casulo perfeito para sobrevivermos ao apocalipse. This is not a drill. Repito: this is not a drill.

O mundo como o conhecemos está prestes a acabar, mas ao menos a Moda deu-nos o casulo perfeito para sobrevivermos ao apocalipse. This is not a drill. Repito: this is not a drill. 

Veruschka no deserto de Arizona, 1968 © Franco Rubartelli/Condé Nast Archive
Veruschka no deserto de Arizona, 1968 © Franco Rubartelli/Condé Nast Archive

Numa era em que. Nos tempos que correm. No clima em que vivemos. Há tantas expressões vagas para começar um texto em novembro de 2018 quantas sobreposições na coleção da Balenciaga. Somos vagos porque sabemos exatamente o que queremos dizer mesmo sem dizer nada. Somos vagos porque o senso comum e a falta de bom senso estão instalados. Somos vagos porque estamos todos de olhos postos no umbigo dos outros e no nosso ao mesmo tempo. Somos vagos porque há tanta confusão a acontecer, que nos basta falar pela telepatia de um meme conveniente. Numa era em que tudo está politicamente incerto, nos tempos que correm as presas atrás dos predadores, no clima – literal – em que vivemos, onde é verão em outubro e chove em agosto, andamos todos a olhar para as pistas do passado, a sobrevoar o presente e a enfiar todas as nossas esperanças no futuro do pretérito. Saramago podia não perceber de modas, mas sabia de muito sobre tudo o resto e não era homem de blá‑blá‑blás. “Não ter já mais nada para dizer e continuar a escrever é um crime”, disse, e como já ficou tudo dito no não dito, não vale mais a pena escarafunchar o mundo que conhecemos como ninguém, porque o vivemos na pele e a nossa pele endurece com ele. Passemos da teoria à prática e auscultemos o produto direto do século XXI, ou como se faz Moda em tempos de cólera. 

Numa era em que tudo está politicamente incerto, nos tempos que correm as presas atrás dos predadores, no clima – literal – em que vivemos, onde é verão em outubro e chove em agosto, andamos todos a olhar para as pistas do passado, a sobrevoar o presente e a enfiar todas as nossas esperanças no futuro do pretérito.

A resposta surgiu tão explícita nas passerelles de outono/inverno que os press releases deixados nas cadeiras dos desfiles nos pareceram apenas desperdício de papel. A ansiedade assumiu formas dispersas, de coleções de pulsação acelerada com peças que são convites para festas daquelas onde perdemos a carteira e a memória (aka Tom Ford, Preen, Balmain e Paco Rabanne) à visão pós-apocalíptica de sopas e descanso de Casas que falam por todas. Como a Calvin Klein. Na sua terceira apresentação para a marca, e segundo a maioria das vozes críticas a mais bem conseguida, Raf Simons referiu o filme de 1995, Safe, de Todd Haynes (a história de uma mulher que se tornou intolerante à toxicidade do mundo), como ponto de partida de um desfile com um chão feito de neve (eram pipocas) e uniformes de trabalho americanos, que também não se ficaram por aí. As primeiras impressões iludem, tanto que o designer fez questão de frisar em backstage que desta vez, “é menos horror e mais esperança”. As sobreviventes Klein vestiam o que os bombeiros vestiriam se houvesse um extreme makeover no quartel feito por um criador belga que estudou Design Industrial e tivesse uma ligeira TOC por trazer sempre qualquer coisa brand new. Há vestidos feitos de mylar – uma pelicula de poliéster com resistência térmica – e renda branca, botas que protegem as pernas até à coxa, luvas laboratoriais quase até aos ombros, e camisolões, blazers, sobretudos que por vezes repousam sobre delicados vestidos de campo ou saias até aos pés, quase como a anunciar a bonança depois da tempestade, o saco de papel durante o ataque de pânico. “A primeira camada é o teu casaco, depois pões o teu blazer por cima, e o teu blazer pode ser também um vestido novo, depois em cima de tudo isso pões uma camisola” – e poderia ter sido Raf Simons a dizê-lo, mas foi Galliano, antes do começo da sua apresentação para a Maison Martin Margiela, onde a sobreposição serviu como um exercício pensado para dar às mulheres um abrigo que as proteja e reflita, e nunca, mas nunca as camufle (e por isso thank you, John). Já a Balenciaga foi do 8 ao 80, abrindo com um vestido de veludo simples e curto e terminando com casacos tão grandes que rivalizam com as sete saias da Nazaré ou, não é preciso ir mais longe, como se de repente vestíssemos a nossa cadeira de roupa do quarto toda no mesmo #ootd. A motivação de Gvasalia? Clima extremo e “um tipo de paraíso do snowboard do início dos 90”. Era óbvio com a montanha de neve branca que se erguia por trás das modelos; o sinal de paz e o slogan enorme “be aware” dizem-nos que Gvasalia incorporou um novo papel de agente de mudança. Chuva, neve, rajadas de vento – deem-nos uma previsão meteorológica e nós sabemos vestir-nos para o mau tempo. O alerta vermelho soa quando o vento sopra sobre conceitos como “sedução”. Calcemos as galochas, vamos entrar em terreno pantanoso. 

“Permitir-se ser vulnerável é uma das coisas mais atraentes que podes fazer”, disse em tempos Rick Owens, e depois tirou o elefante do canto da sala e foi estudar o conceito atual de sedução. A resposta surgiu em túnicas compridas feitas em lã feltrada e fanny packs onde cabe um kit de sobrevivência inteiro, que se multiplicaram em casulos bulbosos de lã, pvc e vinil construídos em proporções para abarcar uma família de seis. “Vejo-o como coquetismo”, disse o criador ao WWD, dando referências históricas sobre bustiers exagerados e os cestos que normalmente vêm agarrados às bicicletas e que trouxe para o hoje como uma sofisticação provocadora, que embora se tenha traduzido em roupa man repeller, continua a pôr a mulher na linha da frente da tomada de decisões (para mim, deu match no Tinder de imediato). E depois houve Prada e uma liberdade exagerada, não que alguma vez haja hipérboles quando falamos em condição, mas foram palavras da própria. “O meu sonho é que as mulheres possam sair à rua e não ter medo”, disse Miuccia, e entregou-nos uma perspetiva de Moda sociopolítica e intelectual que mistura os arquétipos clássicos de feminilidade com os tradicionais materiais masculinos, lantejoulas com industrial, flores e alta tecnologia, formas gentis com outras mais rudes, algumas em conjunto, em igualdade, em feminismo? Se quisermos ser práticos, e decorrer a lista de tendências como uma ida ao supermercado, os mantras mandam ainda enrolarmo-nos em cobertores feitos para sair à rua, cobrirmo-nos com capas, fazermos do padrão felino a nossa segunda pele, vestir tudo ao mesmo tempo, umas coisas por cima das outras, que é para não entrar água, nem ter a hipótese de um resfriado, ou para nos dar a possibilidade de nos despirmos por camadas, conforme nos formos sentindo seguras. 

De muitas formas diferentes, esta estação pareceu ser menos sobre a atualidade da peça e mais sobre a pessoa que a veste, roupa feita de dentro para fora, como se as nossas mais profundas necessidades tivessem desenhado croquis, acertado bainhas e estilizado os desfiles. Sentimo-nos ansiosos? Nada mais nos conforta como o nosso sofá e um cobertor de lã? Queremos razões para nos sentirmos otimistas? Não nos apetece falar com ninguém hoje? As passerelles desfilaram as nossas emoções. As roupas não são só roupas (nunca o foram) – são terapia, são colinho, são armadura. A Moda sempre foi boa a ler mentes (como se existisse outra forma): falando de cor, aconteceu nos anos 60, quando Paco Rabanne trouxe para as passerelles todas as nossas ânsias relacionadas com o passo do homem na Lua; o New Look devolveu às mulheres a estética que lhes havia sido brutalmente retirada durante a guerra; o power suit Armani muniu-nos com a roupa que nos faltava no armário na década de 80 e ofereceu-nos um office look próprio para ressacar as segundas e festejar as sextas. Nos anos 70, Norma Kamali criou um casaco que ficou conhecido como Sleeping Bag Coat (como se dois sacos‑cama se tivessem unido num só – imagine o conforto) e depois do 11 de setembro de 2001 as vendas voltaram a disparar. “Não é por acaso”, reforça Maria João Martins, professora de História Social da Moda. “A Moda é um sismógrafo muito sensível da sociedade de cada época. As silhuetas desta estação, envolvendo as mulheres numa espécie de armadura à prova de olhares cobiçosos, estão naturalmente relacionadas com o movimento #MeToo e com o número crescente de mulheres, com maior ou menor notoriedade pública, dispostas a denunciar os abusos morais e físicos de que foram alvo em algum momento das suas vidas.” Mas não só: “Esta é também a resposta da Moda a um mundo cada vez mais crispado social e politicamente, em que tudo o que é sólido se dissolve no ar. Um mundo sempre pendente das decisões de políticos sem escrúpulos, de economias frágeis como bolas de sabão, de um gesto de loucura radical capaz de atirar para a morte dezenas de transeuntes. Roupa confortável, quente, um cocoon aconchegante e portátil contra a agressividade do mundo. Esta é também uma antecipação distópica de um mundo de ambiente climaticamente alterado, em que as condições de sobrevivência se tornam muito mais extremas para toda a Humanidade.” 

E nem precisamos de recuar (ou avançar) até à Idade do Gelo para sentirmos o corpo enregelar – e o que um casaco quentinho faz por ele. É também essa a beleza da Moda, quando nos dá a mão num dia difícil com uma joia que nos sussurra “és especial”, um sobretudo em pelo que nos abraça ou um vestido de seda com apenas 150 gramas e uma etiqueta Lanvin que nos faça sentir protegidas enquanto estamos no banco de trás de um táxi a caminho do tribunal para enfrentar o idiota do nosso ainda marido (baseado em acontecimentos reais relatados por Alber Elbaz à Another, em 2011). Bill Cunningham resumiu este tudo no documentário homónimo: “O mundo às vezes vê a Moda como uma frivolidade que não deveria existir ligada à convulsão social e aos problemas, que são enormes. A questão é que a Moda, sabes, é a armadura para sobreviver à realidade da vida diária. Uma não pode existir sem a outra. Seria como ignorar a civilização.” Nos tempos que correm, seria como sair à rua despido de humanidade.

 

As passerelles desfilaram as nossas emoções, e isso está muito claro na galeria abaixo.

 

*Texto originalmente publicado na edição de novembro de 2018 da Vogue Portugal. 

 

 

Patrícia Domingues By Patrícia Domingues

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