Madonna, com o icónico corset assinado por Jean Paul Gaultier, na Blonde Ambition Tour, em 1990. Fotografia: Gie Knaeps / Getty Images.
Rebeldes e eternamente ousadas, é na viagem entre os universos da moda e da música que nascem identidades artísticas que se tornam lendárias. Para lá de singles que se tornam êxitos, o vestuário irreverente assume-se como uma extensão natural da genialidade musical e eleva performers a derradeiros ícones.
Qual é a linha que separa um simples músico de um verdadeiro artista? Além das notas e poemas que transcendem as pautas musicais, os limites que vincam a intimidade de um ícone nem sempre são fáceis de delinear. Dentro (e fora) dos grandes palcos, as melhores performances dão vida a identidades artísticas que unem géneros, quebram normas e dão forma a novos ritmos culturais. A par e passo, a moda e a música moldam o panorama social que nos rodeia e, ao longo de décadas, os artistas musicais têm vindo a estabelecer-se como pioneiros culturais.
Com presenças ousadas que começam — mas não acabam — nas canções que resistem ao passar do tempo com distinção, a moda surge como uma continuação visual da criatividade de um performer. Numa união entre duas forças inquestionáveis, a moda e a música assumem uma relação intrinsecamente simbiótica e é nesta harmonia que vemos espelhadas tendências e estéticas que se movem entre os dois mundos. Entre êxitos e tours, o vestuário tornou-se uma ferramenta essencial no que toca à criação de um ícone: pense-se em Prince e nos seus visuais extravagantes e glamorosos que desafiaram os mais persistentes cânones de género dos anos 80. Ou em David Bowie e na constante reinvenção do seu “eu” ao longo da sua carreira musical. É por meio de looks irreverentes que vemos grandes nomes da música construírem narrativas performativas, e são estas identidades artísticas que permitem aos músicos explorar os limites estéticos da sua individualidade. Quando olhamos para este tema sob uma lente sociológica, torna-se evidente que a expressão criativa é algo que sai literalmente do corpo de um entertainer — não é em vão que o filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard defende que o corpo é, por si só, uma peça de Moda. Deste modo, a forma como um performer utiliza e apresenta o seu próprio corpo em palco é fundamental para perceber o significado da sua persona artística. Tal é o caso de Freddy Mercury; num esplendor de carisma e exuberância, o estatuto de icon do vocalista dos Queen vai muito além dos seus dotes musicais. Ao som de músicas como I Want To Break Free, o guarda-roupa teatral e destemido do cantor, que contava com um leque de capas dignas da realeza britânica e bodysuits deslumbrantes, assumia-se como uma extensão natural da identidade musical de Mercury, ao mesmo tempo que brincava com os princípios do que era considerado masculino e feminino.
Mais que simples peças de roupa, a Moda tem o poder de transformar perceções e definir novas identidades. É neste espectro de personalidades que Madonna, eterna rainha do pop, tem reinventado a sua estética ao longo das décadas. Tal como a artista disse ao The New York Times, em 1989, “a arte deve ser controversa”; e entre videoclipes de temas como Material Girl e atuações com um body com um soutien (i)cónico assinado por Jean Paul Gaultier, o guarda-roupa de Madonna desafia as normas sociais previamente definidas com looks provocantes, que, em conjunto com uma discografia de sucesso, lhe garantem o estatuto de verdadeiro ícone moderno. Com uma abordagem semelhante (mas infinitamente mais arrojada), Prince pôs à prova as regras impostas pela sociedade através de visuais que irradiavam uma energia eclética e exuberante. Dos saltos altos à alfaiataria, sem nunca esquecer as luvas de renda, as lantejoulas, as borlas e as penas — o guarda-roupa de Prince recusava reger-se por uma só estética, e o artista reinterpretava a essência visual da década de 80. Num universo caleidoscópico de movimentos e referências, o estilo peculiar de Prince transgrediu os preconceitos tradicionais do vestuário masculino e deu uma nova dimensão às identidades andróginas através de looks que abraçavam uma fluidez que ainda hoje se mantém dificilmente alcançável.
A verdade é que cada indivíduo é único e, por vezes, a construção de uma mera personagem de palco prova-se insuficiente para expressar a identidade criativa de um artista na sua totalidade. Numa composição de personalidades e diversos “eus” onde as referências freudianas são incontornáveis, David Bowie encarnou personagens externas à sua intimidade e assumiu-se como um camaleão humano cuja influência transcende as barreiras do som e do estilo. Entre escolhas visuais avant-garde e um carisma que desafiava noções de género, o artista assumiu alter egos (traduzido diretamente do latim para “outro eu”) como Ziggy Stardust para explorar uma imensidão de referências e influenciar normas culturais de uma forma mais liberta e despreocupada — mas igualmente excêntrica e ousada.
É nos grandes palcos que as barreiras entre a moda e a música se dissolvem numa narrativa deslumbrante que brilha até à luz dos holofotes mais fortes. Além de um timbre pitch perfect e êxitos que chegam ao topo das mais variadas tabelas, são as personae representadas por alguns dos principais nomes da música que os distinguem como ícones absolutos e lhes permitem quebrar mentalidades e moldar perceções. Já cantava Prince, no tema Uptown: “Now where I come from, we don’t let society tell us how it’s supposed to be. Our clothes, our hair, we don’t care. It’s all about being there”.
Publicado originalmente na edição "The Icons Issue" da Vogue Portugal, de novembro 2024, disponível aqui.
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