É um dos sentimentos mais universais a toda a existência humana. E, no entanto, é um dos que mais estranheza nos causa. A solidão ainda é, aos olhos da sociedade, uma falha, um defeito, um capricho. Talvez por isso sejam poucos os que se apercebem de que, quando ignorada, também ela pode ser tão fatal como qualquer outra epidemia.
É um dos sentimentos mais universais a toda a existência humana. E, no entanto, é um dos que mais estranheza nos causa. A solidão ainda é, aos olhos da sociedade, uma falha, um defeito, um capricho. Talvez por isso sejam poucos os que se apercebem de que, quando ignorada, também ela pode ser tão fatal como qualquer outra epidemia.
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Fotografia de Umit Savaci. Styling de Marzia Fossati.
Fotografia de Umit Savaci. Styling de Marzia Fossati.
”One is the loneliest number that you'll ever do / Two can be as bad as one, it's the loneliest number since the number one.” Os anos 90 queimavam os últimos cartuchos e, perante a incerteza do novo milénio, os primeiros versos da primeira canção (One) da banda sonora de Magnolia – o filme de Paul Thomas Anderson que explorava o desespero e a culpa, o ressentimento e a vergonha, mas que, acima de tudo, esmiuçava as entranhas que compõem a solidão – ressoaram como uma boia de salvação para os milhões de espectadores que, um pouco por todo o mundo, se reconheceram na esquizofrenia visual e poética do realizador americano. Então, como ainda hoje, escutar o timbre melódico de Aimee Mann era algo reconfortante, uma espécie de aparição. “One is the loneliest number that you'll ever do / Two can be as bad as one, it's the loneliest number since the number one.” E de repente, um clique. Não é apenas o número um que é solitário. O número dois, que aparentemente vive no plural, pode ser tão solitário como o número um. Era como se de repente a cantora – que escreveu grande parte do soundtrack de Magnolia e que, porém, não é autora de One, só lhe empresta a voz; a música é um original de Harry Nilsson – nos dissesse, sussurrando: ninguém está sozinho, estamos todos sozinhos.
As personagens de Anderson, que carregam a solidão aos ombros como se não merecessem mais nada – no fundo, ela é a companhia mais constante que já conheceram – são uma metáfora perfeita, e cruel, de uma sociedade que vive a mais de mil à hora, sem tempo para pensar sobre os princípios fundamentais da condição humana: os afetos, as emoções, os sentimentos. Um resumo ultrabreve dos últimos cem anos permite-nos perceber como tudo aconteceu: a industrialização deu origem à multiplicação do emprego e à consequente explosão das cidades, que se transformaram em metrópoles hiperpopuladas, abrigando indivíduos que procuram “vencer na vida”, seja lá isso o que for, e dando origem a novos tipos de famílias, novas formas de socialização, novos hábitos, novos medos; a informação passou a circular de forma quase imediata, os continentes deixaram de estar isolados para estarem permanentemente interligados, os bens e os serviços (todos os bens e serviços) estão à distância de um “add to bag.” Visto de fora, sob o olhar dos nossos antepassados, que viajavam de carroça e perdiam a luta com as taxas de mortalidade por volta dos 40 anos, temos tudo o que é possível sonhar. E aqui estamos. Em 2017, Theresa May, então primeira-ministra do Reino Unido, anunciou a criação de um Ministério da Solidão para combater aquilo que considerava ser “a triste realidade da vida moderna.” Naquele país, onde se estima existirem mais de nove milhões de pessoas “solitárias”, o problema é encarado como uma epidemia. O mesmo acontece nos Estados Unidos. Uma investigação apresentada na 125ª Convenção Anual da Associação Americana de Psicologia, realizada há três anos, refere que a solidão é um perigo iminente para a saúde pública e pode vir a tornar-se um problema maior do que a obesidade. O panorama em Portugal não é mais animador.
Filipa Jardim da Silva é Psicóloga Clínica e Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde. A solidão entra-lhe várias vezes pelo consultório, quase sempre sem pedir licença. Aceita falar com a Vogue, com as devidas distâncias, até porque a solidão, que o dicionário define como “estado do que está só”, ganha ainda mais relevância quando metade do planeta vive suspenso, dependente de uma quarentena que pode ser (muito) violenta para a saúde mental. Começamos pelo princípio. Os Beatles têm uma canção chamada Eleanor Rigby, cujo refrão diz “All the lonely people / Where do they all come from? / All the lonely people / Where do they all belong?” Faz sentido fazer esta pergunta, ou seja, faz sentido questionar quem é que são, e de onde vêm, as pessoas [que se sentem] sozinhas? “Habitualmente as pessoas que se sentem persistentemente sozinhas são aquelas que beneficiam [do ato] de trabalhar na relação consigo mesmas. Quando não fazemos uma companhia de qualidade a nós mesmos, quando não estamos bem connosco, então é natural que nos sintamos sozinhos, mesmo que acompanhados, como se esse sentimento de solidão traduzisse uma desconexão interna. Nesse caso, a solução não passa apenas por criarmos relações de qualidade com outros mas também, necessariamente, por cultivarmos uma relação de amor próprio, e de respeito, connosco.” É interessante insistir neste ponto porque a solidão não é, ao contrário do que muitos querem dar a entender, “uma coisa da nossa cabeça.” “Não é, realmente. Os efeitos negativos da solidão e do isolamento social na nossa saúde estão bastante bem reportados e existe uma relação demonstrada. Quando nos sentimos sozinhos contra a nossa vontade e por consequência temos uma perceção de ausência, de pertença e de abandono, as hormonas do stress aumentam, bem como os nossos níveis inflamatórios, o que pode aumentar o risco de doença cardíaca, artrite, diabetes tipo 2, deterioração cognitiva, humor deprimido e até ideação suicida. De uma forma mais imediata, o mal-estar causado por este sentimento pode impactar negativamente na qualidade do sono, no apetite, na energia global e na concentração. Alguns estudos sugerem que o impacto do isolamento social na saúde é idêntico ao impacto de outros fatores como a obesidade, o consumo de tabaco e a pressão arterial elevada.” A solidão até pode ser invisível, indescritível, mas é real.
E é, de certa forma, indecorosa, suja. Ninguém quer assumir que se sente sozinho – nem aos outros, nem a si mesmo. “Crescemos a sermos pouco treinados para sabermos estar sozinhos na nossa companhia. Somos pouco educados para usufruir do silêncio e da tranquilidade. Como se estar sozinho fosse mau, triste, sinal de rejeição ou de não pertença. Desenvolvemo-nos em casas onde existe tendencialmente ruído de fundo em permanência, seja música, seja televisão, seja telemóvel. Associamos silêncio partilhado a falta de conexão (quando pode significar exatamente o oposto). Esta falta de treino dificulta o cultivo de uma experiência de autocompanhia de qualidade e por vezes a busca automática por ocuparmos os espaços à nossa volta, nem sempre com a exigência devida.” Daí que muitas vezes encontremos mecanismos de auto-sabotagem, que apenas distorcem a nossa noção de solidão. Vivemos numa ilusão de companhia. Estamos, aparentemente, cada vez mais conectados – mas quantas vezes, na presença de outros, escapamos para mundos digitais? A nossa forma de socializar “real e intensa”, talvez seja, afinal de contas, uma fachada. Se assim for, a solidão é uma causa ou consequência deste paradigma? Somos nós, de certa forma, que nos colocamos nessa situação? “As circunstâncias atuais são desafiantes por nos convidarem a um piloto automático acelerado, em que há sempre mais para fazer. Colecionamos gostos à velocidade da luz, mas temos dificuldade em nos lembrarmos do último abraço. Temos centenas e milhares de contatos nas redes sociais, seguimos e somos seguidos, mas quando a noite cai e algum silêncio surge, sente-se um vazio. A quarentena veio mudar o ritmo e abanar tudo e todos de forma abrupta. Naturalmente que é um infortúnio, mas como não podemos mudar o que já aconteceu, podemos potenciar esta experiência e torná-la num momento gerador de desenvolvimento pessoal.”
Chegamos, pois, à quarentena: era impossível escapar-lhe. Não é o admirável mundo novo que desejávamos, é apenas um mundo, novo. “A atual vaga de COVID-19 veio impor-nos um isolamento social que nos fragiliza a todos por ser algo que surgiu sem aviso, fora da nossa zona de poder, contra a nossa vontade. O sentimento de conexão ajuda-nos a superar adversidades pelo que é importante não o perder. Este confinamento expõe a qualidade de relação que temos connosco e com os outros bem como clarifica o estilo de vida que estávamos a ter”, explica Filipa. E continua: “Assim, é possível encontrarmos informação desagradável que nos agitará. Contudo, se nos fecharmos numa bolha, desligados de nós mesmos e sem alimentarmos contactos com amigos mesmo que à distância de um ecrã, corremos o risco de mergulhar num dia a dia desprovido de significado e propósito. E assim se confeciona a doença psicológica.” O que é que passa pela cabeça de alguém que se sente permanentemente vazio, incompreendido, sozinho? “Podem surgir pensamentos negativos geradores de desesperança, de uma perda de sentido para a vida. Pode surgir um questionamento existencial acerca do significado da nossa vida e até ideação suicida. Estes pensamentos ruminantes e negativos tenderão a dificultar a mobilização para bons níveis de autocuidado, pelo que se estes pensamentos não forem bem legendados por nós enquanto pensamentos que são, poderão tornar-se verdades internas e assim nos condicionarem mais, tornando o futuro num cenário incerto. O sentimento de solidão e de vazio, quando persistentes, podem gerar uma anestesia e imobilização que fazem com que a pessoa se abandone, sem construir rotinas nos seus dias ou cuidar de si. É como se esta experiência pudesse levar a um ‘coma induzido’ de algumas pessoas como mecanismo subconsciente de proteção.”
Num paralelismo mais ou menos arriscado, porque é impossível de comprovar, será esse “coma induzido” aquilo que tantos artistas tentaram contar, ao longo dos séculos, do fundo da sua agonia? A solidão, se pudesse ser representada, seria um quadro de Edward Hopper. Poderia ser Automat (1927), esse retrato inesquecível e perturbador de uma mulher que olha para uma chávena de café num bar onde parece ser a única cliente – um bar onde não há sinais de vida, onde o escuro da rua contrasta com as luzes frias de um espaço gelado, suspenso no tempo. Poderia ser Nighthawks (1942), obra maior do americano, onde quatro “falcões da noite”, se levarmos o título à letra, são captados no balcão de um restaurante – três clientes e um empregado, aparentemente juntos mas separados, iluminados pela claridade melancólica do silêncio, um silêncio que parece gritar, que parece extravasar, que (nos) parece tocar, a nós, que os observamos, e a eles, que se entregam àquele vazio, àquele abismo entre os pensamentos e a vida que estagnou não se sabe bem onde. Poderia ser Eleven AM (1926), Cape Cod Morning (1950), Morning Sun (1952), e tantos outros, porque se há algo comum no trabalho de Hopper é essa sensação de mudez, de sigilo, de... solidão. “Com as suas paisagens urbanas desertas e as figuras isoladas, o pintor americano capturou a solidão e a alienação da vida moderna. Mas a pandemia deu ao seu trabalho um novo significado aterrorizante”, escrevia um dos críticos de arte do jornal The Guardian em meados de março. E relembrou- nos uma das regras de ouro da solidão, definida por Honoré de Balzac em pleno século XIX: “Solitude is fine but you need someone to tell you that solitude is fine” (à letra, e correndo o risco de perder a cadência da língua inglesa, será algo como “a solidão é uma coisa boa, mas precisamos de alguém para nos dizer isso”).
Sendo impossível ter, em permanência, esse alguém, como se lida com a solidão? É possível apagá-la? “Em vez de olharmos para a solidão como o principal problema e nos apressarmos a soluções remediadas, importa em primeiro lugar identificar o sentimento de solidão quando está presente, dar-lhe nome e legitimá-lo, partindo de uma perspetiva de curiosidade e empatia ao invés de culpa e julgamento. Só quando colocamos o nosso foco de atenção nas nossas emoções, com intenção, é possível começarmos a compreendê-las ao invés de as tentarmos extinguir com urgência. Mesmo que esse contacto nos gere desconforto, é importante cultivar práticas de atenção plena na nossa rotina diária de forma a apropriarmo-nos, com mais consciência, daquilo que nos habita – pensamentos, emoções, sensações físicas.” E isto, reforça Filipa, é algo que requer um investimento pessoal elevado. Porque é aqui que temos que nos confrontar, que temos de nos despir, e aceitar que existe algo a melhorar. “Depois de reconhecida a solidão, há que a explorar: em que momentos surge, que sensações físicas se fazem sentir em simultâneo, que pensamentos a acompanham. Podemos ir um pouco à nossa história também: em que situações do passado, recente e distante, já experienciei solidão? Como lidei com essa experiência na altura? A solidão, tal como qualquer outro sentimento, sinaliza necessidades psicológicas por satisfazer. Por isso, mais do que corrermos para ações concretas, é importante compreendermos o que nos está a ser sinalizado, para podermos então, de forma mais personalizada, dar resposta ao que realmente precisamos.” E não desistir. Nunca.
As imagens são de uma Helsínquia despida de gente. As ruas estão vazias. Os cinemas, as pistas de hóquei no gelo, as estações de metro, os anfiteatros – locais de culto da capital da Finlândia, unanimemente reconhecido como o país mais feliz do mundo – estão abandonados, desprovidos da sua razão de ser. “Para algumas pessoas, o mundo sempre pareceu ser assim. Mostre aos solitários que eles não estão sozinhos.” A frase, e as fotografias, pertencem a uma campanha lançada em abril pela Helsinki Missio, uma entidade finlandesa que, desde 1883, se dedica a prevenir a solidão e a dar apoio a pessoas que se sentem sozinhas. “A solidão criada pelo estado de emergência é um problema que, momentaneamente, nos une a todos. Para alguns, isso vai terminar, mas, para outros, não”, explicava Maria Rakkolainen, diretora da organização. “A solidão daqueles que sofrem de solidão duradoura continua, mas não precisa de ser assim.” Esta é uma de várias tentativas que, a nível global, têm sido implementadas no sentido de alertar para os perigos de um isolamento que, só aparentemente, é temporário. A implementação das medidas de distanciamento social e de quarentena, no sentido de conter a disseminação do novo coronavírus, apenas acentuam um problema que continua a viver na sombra das sociedades modernas: a solidão. Fixemo- nos por um momento nessas ruas desertas. E, ao estendermos a mão a quem, por qualquer motivo, possa já ter entrado nessa noite escura, lembremos o conselho de José Saramago: “Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo.”
* Título do 14.o romance de António Lobo Antunes que, por sua vez, faz alusão a um verso do poeta Dylan Thomas, “Do not go gentle into that good night”.
Artigo originalmente publicado na edição Happy Together da Vogue Portugal.
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