A designer que revolucionou a forma de pensar, e fazer, peças de luxo sustentáveis é muito mais do que uma criativa de sucesso. É uma visionária, o epítome da mulher moderna do século XXI.
Stella McCartney, a designer que revolucionou a forma de pensar, e fazer, peças de luxo sustentáveis, é muito mais do que uma criativa de sucesso. Mãe de quatro filhos, ativista confessa, empreendedora comprometida com o ambiente, a britânica há muito que descartou o rótulo que a predestinava como “filha de…” Condecorada pela rainha Isabel II em 2013, McCartney é uma visionária, o epítome da mulher moderna do século XXI.
Stella McCartney © Lauren McCabee.
Stella McCartney © Lauren McCabee.
Há qualquer coisa que faz dela um caso à parte. Não é o pai, o ex-Beatle Paul McCartney, nem a mãe, a já desaparecida fotógrafa Linda McCartney. Talvez seja a obstinação, que com os anos se transformou numa filosofia de vida. Stella Nina McCartney (Londres, Reino Unido, 1971) tinha tudo para ser mais uma menina de boas famílias com sotaque posh e genes de ouro. Em vez disso, pegou nos exemplos de trabalho e superação que recebeu em casa e transformou-se numa lutadora que ousa desafiar as convenções dos maiores grupos de Moda do planeta. “É fascinante porque eu cresci numa quinta orgânica e agora o que eu faço para viver é realmente agricultura. Acho que isso é algo que as pessoas não percebem — que no design de Moda, na verdade, estamos apenas a cultivar a terra, mas em vez de fazer um hambúrguer vegan estamos a fazer um casaco. Essa conexão é algo que eu acho realmente inspirador e desafiador.” McCartney resumia assim o seu ofício, aparentemente despojado de glamour, numa entrevista publicada, no início deste ano, no site Net-a-Porter.com. Como é que uma designer cujas coleções são amplamente apreciadas pela indústria consegue ter esta visão de si própria?
“O estilo da Stella tem sido influente porque ela é a sua própria cliente”, sugeria Tom Ford. Ela concorda, e desde cedo fez questão de o anunciar. Já em 2004, apenas três anos depois de lançar a sua marca homónima, avisava a edição americana da Vogue que “estava sempre a desenhar as coisas que queria usar.” De lá para cá foi um longa caminhada, uma espécie de green carpet com vários prémios e condecorações. O curriculum vitae de Stella lê-se como uma canção pop. Formada na prestigiada escola Central St. Martins, em 1995, o seu estilo chamou desde logo a atenção pelos traços de alfaiataria e uma certa feminilidade sexy. Após duas coleções foi nomeada diretora criativa da parisiense Chloé, onde ficou até 2001, altura em que lançou a sua marca.
"(...) no design de Moda, na verdade, estamos apenas a cultivar a terra, mas em vez de fazer um hambúrguer vegan estamos a fazer um casaco."
Vegetariana de longa data, McCartney transportou as suas preocupações para a moda, e destacou-se por ser totalmente leather/fur free. Agora que o mundo acordou para a importância da sustentabilidade, Stella assume que os primeiros passos não foram fáceis. “No começo as pessoas pensavam que eu era louca; diziam que eu nunca teria um negócio de acessórios de sucesso sem usar pele, ou [uma linha de] pronto-a-vestir de sucesso sem usar pele, mas eu queria abordar as coisas de uma maneira diferente. Era inédito estar na moda e não usar pele, pelo, PVC. Nós ainda somos a única casa de luxo que fornece este tipo de produtos e provamos que é fazível sem sacrificar o design. Acho francamente que é uma das coisas mais inovadoras que fizemos na indústria da moda, por isso não, não é um mito!”
Além do ready-to-wear (mulher, homem e criança), das carteiras e dos sapatos, há os óculos de sol, a lingerie, os perfumes, e a colaboração com a Adidas, desde 2004, uma das mais aclamadas pela crítica. Nos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2012, foi responsável pelo guarda-roupa da equipa do seu país, algo que ainda hoje recorda como um dos pontos altos da sua carreira (viria a repetir o feito em 2016). Em todas essas vertentes, a preocupação com o meio ambiente. E com a sua principal cliente: as mulheres. “Sou uma mulher, a desenhar para mulheres, e isso faz com que saber o que as mulheres querem seja mais fácil para mim. Desenho roupas para as mulheres usarem e isso não é tão simples quanto parece. Como designer, ver o meu trabalho entrar no mundo real e ser usado é a maior conquista, porque isso significa que [consegui] ir além do design e atingi o coração de uma pessoa, e saber que as roupas que desenho são feitas de forma consciente torna tudo ainda melhor.” E sublinha. “A mulher Stella McCartney é naturalmente confiante, é naturalmente sexy mas, acima de tudo, é moderna.”
"Toda a gente tem o poder de fazer a mudança. A mais pequena interação que temos como humanos pode ter impacto no planeta, e se não pensarmos assim, não somos modernos."
No final de agosto, McCartney revelou um dos seus projetos mais inusitados: o lookbook das peças de merchandising inspiradas no álbum Love, de Taylor Swift. Uma edição especial que inclui t-shirts, sweatshirts, casacos, e até uma garrafa de água reutilizável. Foi um twist inesperado, tanto para os fãs da cantora como para os admiradores de Stella, habituados a associar a designer a nomes de estatuto hype (veja-se a cantora Grimes, protagonista das imagens distópicas que ilustram a mais recente entrega da Adidas by Stella McCartney, uma parceria que dura há 15 anos). Mas a música está nos genes de McCartney. Seja mais punk ou marcadamente rock, a sua alma estará sempre ligada aos hinos de (várias) gerações. Tanto assim é que no início do verão apresentou All Together Now, uma coleção totalmente inspirada na cena londrina e, como se subentende, pela canção dos Beatles com o mesmo nome. Ainda este outono, chegam igualmente às lojas as Stella Hunter Boots, uma visão renovada das conhecidas botas de borracha (a título de curiosidade, o marido de McCartney, Alasdhair Willis, é o diretor criativo da companhia desde 2014) e em novembro aterrará nos escaparates a cruise collection, parte importante das vendas de qualquer marca de luxo. Com uma agenda tão lotada, não admira que Stella, a mulher, se confronte com as horas infinitas de Stella, a criativa. “Gostava definitivamente de ser uma pessoa menos ocupada. Mas nunca tenho realmente um momento para pensar sobre isso. E de qualquer maneira, tenho quatro filhos, por isso mesmo quando não estou ocupada, estou ocupada”, confidenciou na conversa já citada.
Campanha Agents of Change, outono/inverno 2019, Stella McCartney.
Campanha Agents of Change, outono/inverno 2019, Stella McCartney.
Filmada na costa Galesa pelo fotógrafo Johnny Dufort, a campanha outono/inverno 2019 de Stella McCartney chama-se Agents of Change e representa mais uma tomada de posição da designer inglesa na sua batalha pelo futuro do planeta. As imagens celebram a paisagem britânica em todo o seu esplendor, capturando as falésias de Llangattock Quarry e a imensidão de Nash Point. Ao mostrar estes locais, McCartney espera “encorajar as pessoas a unirem-se, e inspirá-las a juntar-se na luta contra o aquecimento global.” Mas a mensagem de sustentabilidade, inerente à marca em todas as suas comunicações (lembramo-nos dos anúncios da estação fria de 2017, em que as modelos posavam no meio de grandes quantidades de lixo), é reforçada pela presença da ambientalista Jane Goodall e de membros do grupo ativista Extinction Rebellion.
Uma série de vídeos com o título 5 ways to save the world serão o mote para esta mini-revolução ecológica, através da troca de informações e iniciando o debate com a assinatura irreverente de Stella; as modelos Amber Valletta, Chloe Pearson e Emma Laird vão partilhar as suas visões sobre o empoderamento do planeta (um dos conselhos é o aparentemente simples, mas tantas vezes esquecido, Be Kind, seja gentil). O ponto alto, contudo, será um segundo filme, narrado por Jane Goodall a partir de um poema de Jonathan Safran Foer. Esta obsessão com a saúde do planeta é, antes de mais, uma forma de estar. “A única forma de ser verdadeiramente moderno é ser sustentável?”, atiramos. “Absolutamente. Apenas 1% das roupas são recicladas atualmente! Apenas 1%, o que significa que a indústria ainda tem um longo caminho a percorrer. Toda a gente tem o poder de fazer a mudança. A mais pequena interação que temos como humanos pode ter impacto no planeta, e se não pensarmos assim, não somos modernos. Esta é a maneira de vivermos as nossas vidas. Isto é o futuro!”
Talvez por isso McCartney não vire as costas às novas formas de consumir roupa, nomeadamente os sites de revenda. A marca tem uma parceria inédita com o The Real Real, uma loja online que junta peças de luxo com o intuito de lhes dar uma segunda vida. É o seu contributo para a economia circular, na qual aposta ferozmente. "Acredito que a revenda, o e-commerce e a segunda-mão podem desempenhar um papel significativo na redução da quantidade de matérias-primas necessárias a cada ano no planeta. Ao garantir que os nossos produtos são usados durante todo o seu ciclo de vida é possível começar a desacelerar a quantidade de recursos naturais atualmente cultivados e extraídos do planeta por causa da moda. Internamente também procuramos ser o mais circulares possível, e a chave é ensinar os nossos clientes sobre a importância da circularidade e o que podem fazer para prolongar a vida útil das suas roupas.” Ela própria assume, em várias entrevistas, que as peregrinações às lojas vintage moldaram a sua relação com o panorama fashion.
Campanha Agents of Change, outono/inverno 2019, Stella McCartney.
Campanha Agents of Change, outono/inverno 2019, Stella McCartney.
Além, obviamente, da influência familiar — não é todos os dias que se cresce ao lado de um Beatle… “Sempre adorei vestir as roupas dos meus pais quando era mais nova, eles tinham roupa de palco muito divertida e um estilo pessoal incrível que sempre admirei. Eles ensinaram-me muito sobre roupa enquanto fui crescendo.” E se os trapos lhe merecem um estudo quase científico na hora de tomar decisões, o mesmo serve para outra das suas paixões, os animais. É perceptível que a forma como foi educada moldou a sua visão e os seus objetivos. “Os meus pais foram uma grande inspiração para mim a todos os níveis. O seu modo de vida inspirou-me. A minha mãe tinha uma autoconfiança e uma independência que sempre me fascinaram. Eles sempre nos ensinaram a ser verdadeiros e a defender as coisas em que acreditamos. Está enraizado em mim ter respeito pelas outras criaturas e ter consciência de como alguém aborda a sua vida, por isso foi uma escolha óbvia para mim transportar isso para a forma como conduzo os meus negócios.”
Sempre se bateu pela sustentabilidade. Foi capaz de criar uma marca de luxo mantendo-se fiel a princípios éticos, mesmo quando isso parecia uma ilusão. Como é que tem sido este trajeto? Se tivesse de contar a sua história à rapariga que lançou a marca, em 2001, o que lhe diria? “Sempre soube que se era isto que ia fazer, tornar-me designer de Moda, então teria de me manter fiel às coisas em que acredito, e sempre acreditei que não temos de sacrificar o estilo pela sustentabilidade. Sou, antes de mais, designer de Moda, quero criar produtos bonitos, luxuosos e desejáveis, mas quero que eles sejam responsáveis, conscientes e éticos. Tenho um grande respeito pela história e pela arte daquilo que faço, mas o modo como as coisas são feitas, os tecidos usados — eles não mudaram num século! Há uma resistência à inovação. Mais de 50 milhões de animais são mortos em nome da moda todos os anos. Isso tem impacto, acredito muito na conexão entre a produção de peles e de couro e o custo para o meio ambiente. Estou constantemente a trabalhar para mudar as coisas que são convencionais nesta indústria, e sim, pode ser uma luta, mas é isso que é excitante para mim.”
"(...) Sempre acreditei que não temos de sacrificar o estilo pela sustentabilidade. Sou, antes de mais, designer de Moda, quero criar produtos bonitos, luxuosos e desejáveis, mas quero que eles sejam responsáveis, conscientes e éticos."
É essa ambição que garante a Stella a sua condição de visionária. Os riscos que correu, desde o início da sua carreira, permitem-lhe agora falar em nome de uma enorme massa invisível. E em representação de muitas mulheres. Em 2018, comprou a parte do acordo que detinha com a Kering, grupo que a ajudou a lançar a Stella McCartney, e voltou a ganhar controlo total sobre a marca. No entanto, já este ano, anunciou que se juntava ao conglomerado rival, a LVMH, com o intuito de acelerar o desenvolvimento global da empresa e prolongar os seus compromissos de sustentabilidade. Não se pense que a criadora irá abdicar das suas convicções. Além de continuar com a maioria nesta parceria, torna-se conselheira de sustentabilidade da LVMH. “A paixão e o compromisso que expressaram em relação à marca Stella McCartney, a par das suas crenças nas ambições e valores enquanto líder global na moda de luxo sustentável foi realmente impressionante.”
Uma vez mais, a menina que podia ter sido apenas “filha de…” preferiu arriscar. E se há cada vez mais mulheres nomeadas para posições de poder na indústria da Moda, ela ainda é um mundo de homens. O que significa, atualmente, ser uma mulher de poder? “As mulheres são multitaskers e solucionadoras de problemas. Nós fazemos as coisas acontecer. Na Stella McCartney, por exemplo, há muitas mulheres que são mães-trabalhadoras ou esposas-trabalhadoras; elas têm de lidar com muitas coisas e eu acho que isso requer uma grande quantidade de força e precisão. Elas são poderosas e eu sinto-me constantemente inspirada e impressionada com isso.” Yes, she can.
Artigo originalmente publicado na edição de setembro de 2019 da Vogue Portugal.