Autora do livro Desperdício Zero e da plataforma Zero Waste Home, Bea Johnson continua a ser o nome incontornável do movimento zero waste.
Autora do livro Desperdício Zero e da plataforma Zero Waste Home, Bea Johnson continua a ser o nome incontornável do movimento zero waste.
Bea Johnson © Jacqui J. Sze
Bea Johnson © Jacqui J. Sze
Não é à toa que todos os testemunhos a citem como fonte de inspiração. Estávamos quase no final da primeira década do séc.XXI quando Bea Johnson começou a adotar, por tentativa e erro, confessa a própria, o estilo de vida desperdício zero. Jonhson, que quando começou estava longe de imaginar a dimensão que se criou hoje em dia em torno do conceito, cunhou o termo zero waste aplicado ao lifestyle. Precursora do movimento, autora do livro Desperdício Zero e da plataforma Zero Waste Home, continua a ser o nome incontornável do movimento. E falar com a francesa que mora nos Estados Unidos é confirmar o entusiasmo pelo estilo de vida, palpável na sua voz enquanto falava com a Vogue Portugal.
"Para nós, este estilo de vida de desperdício zero surgiu muito gradualmente. Tudo começou quando decidimos mudar para mais perto de uma cidade onde pudéssemos estar à distância a pé ou de bicicleta de diversas comodidades. Mudámo-nos para um apartamento por um ano, para o qual só levámos os básicos, e apercebemo-nos de todas as vantagens de viver desta forma simples. Esse estilo de vida também levou a que começássemos cada vez mais a ler livros sobre o tema e a assistir a documentários sobre assuntos ambientais, o que nos deixou, a mim e ao meu marido, a pensar que tipo de mundo estaríamos a deixar aos nossos filhos. E foi isso que nos deu a motivação para mudar. Começamos a controlar o nosso consumo de energia e o nosso consumo de água, mas depois comecei a questionar o nosso lixo. Nesta tentativa de encontrar formas de o reduzir, um dia descobri este termo zero waste. Na altura, era um conceito aplicado apenas à gestão de resíduos ao nível citadino e era também um termo usado no setor fabril, mas não era algo que se usasse para descrever algo no seio da tua casa. Ver esta expressão deu-me um propósito: não havia livros ou blogues ou guias sobre como eliminar lixo, por isso tive de ser eu a testar uma série de coisas, e testei alguns extremos até conseguir encontrar um equilíbrio que funcionasse para nós, alternativas que podíamos adotar a longo prazo, que sentimos que eram algo que conseguíamos manter para sempre e foi assim que o ‘desperdício zero’ se tornou um estilo de vida.
"Não fomos nós que cunhámos o termo ‘desperdício zero’, mas fomos nós que o trouxemos para dentro de casa."
Não fomos nós que cunhámos o termo ‘desperdício zero’, mas fomos nós que o trouxemos para dentro de casa. E depois, é quase como um vício. Quando começas a aprofundar, quando vais além da superfície, começas a aperceber-te de cada vez mais coisas, descobres, por exemplo, todos os produtos tóxicos que te rodeiam, e houve um livro, o Slow Death by Rubber Duck: The Secret Danger of Everyday Things, que me abriu mesmo os olhos sobre este tema. Depois disso, não há maneira de continuares a usar estes itens que estão a envenenar a tua família. E isso significa procurar alternativas. E daí, começas a tocar noutras áreas. O estilo de vida desperdício zero não é só sobre reduzires lixo em tua casa, é sobre ter um impacto em todos os aspetos do teu estilo de vida. Por exemplo, rapidamente reduzimos o nosso consumo de energia — consumimos metade da energia quando comparado com a média regional, e usamos um quarto da água.
Acho que, ao longo desta viagem, a parte mais difícil foi encontrar um equilíbrio, porque quando comecei, fiquei muito focada no fazer em casa. Eu vejo muitas bloggers por aí a cair no mesmo erro. Por exemplo, como tinha imensos produtos de limpeza, pensei que, se ia eliminá-los, tinha de encontrar alternativas para cada um deles, em vez de tentar encontrar um único produto que substituísse todos. E comecei a fazer experiências e a criar do zero uma série de itens — houve uma altura em que fazia o meu próprio pão, queijo, os produtos, o meu próprio leite de soja, mas comecei a aperceber-me, com o tempo, que nunca iríamos cumprir um estilo de vida zero waste se eu estava a fazer todas estas coisas. Eu estava basicamente a complicar o desperdício zero e foi logo óbvio, assim que comecei a simplificar as soluções, que o lifestyle tornou-se algo que poderíamos fazer a longo prazo. O desperdício zero tem de ser algo que simplifica a tua vida, não que a complica, e tens de encontrar alternativas que garantam que o consegues fazer para a vida, é assim que se torna um estilo de vida, só assim ele é sustentável.
"O desperdício zero tem de ser algo que simplifica a tua vida, não que a complica, e tens de encontrar alternativas que garantam que o consegues fazer para a vida (...)"
O meu marido, ao início, estava meio cético, porque achou que este caminho nos estava a custar demasiado, financeiramente: ele via-me a ir à mercearia comprar a granel, aos mercados bio, que têm a reputação de serem mais caros, e ele achava que tínhamos de parar, que não conseguiamos suportar os custos. Quando lhe pedi para comparar as faturas do antes e do depois do desperdício zero — na altura estávamos numa época de recessão, por isso era muito importante que fosse algo viável em termos monetários —, ele apercebeu-se que estávamos a poupar cerca de 30% no orçamento familiar. Assim que viu esse valor, nunca mais me questionou e aderiu ao movimento a 100%.
Em relação às crianças, elas têm necessidades muito simples: desde que estejam satisfeitas, elas estão felizes. São os pais que complicam, que têm o cartão de crédito e que compram as marcas e o que quer que seja, são os pais que trazem o lado material para dentro de casa. Desde que eles tenham os seus cereais preferidos de manhã e uma bolacha quando chegam a casa, desde que possam trazer os amigos, eles estão felizes. E os nossos filhos continuaram a ter tudo isto. Eles vestem-se como qualquer outro miúdo, como um típico adolescente, nós apenas consumimos as roupas de forma diferente. O zero waste não é o que fazes dentro ou fora de casa, tem a ver com as decisões de consumo que a pessoa responsável pelas compras toma e com o optar por comprar sem embalagens em vez de com, e consumir segunda mão. E como sou eu que tomo essas decisões, a mudança para o desperdício zero aconteceu de forma absolutamente desapercebida. O que distingue os nossos filhos não é a quantidade de lixo que (não) fazem, mas a quantidade de regalias que têm, graças ao estilo de vida desperdício zero. Como não desperdiçamos o dinheiro a comprar artigos descartáveis ou desnecessários, usamos essas poupanças para financiar viagens e atividades incríveis.
"O zero waste não é o que fazes dentro ou fora de casa, tem a ver com as decisões de consumo que a pessoa responsável pelas compras toma e com o optar por comprar sem embalagens em vez de com, e consumir segunda mão."
Acredito que há pessoas que resistem em mudar para esta filosofia porque têm uma ideia errada sobre o que implica. As pessoas acham que, para adotar um estilo de vida eco, temos de ser hippies e viver no bosque, outros acham que vai sair mais caro ou que lhes vai tirar mais tempo… O meu trabalho é acabar com esses preconceitos, porque eu pensava exatamente isso, há 12 anos, antes de começar tudo isto. As pessoas receiam-no apenas porque não o compreendem. Toda a gente quer viver de uma forma mais saudável, toda a gente quer poupar dinheiro e tempo, e se estas pessoas pensassem que é exatamente isto que o zero waste lifestyle significa, estariam no mesmo barco que eu. Mas já há muitas pessoas que compreendem isto, e é por isso que o que fizemos em casa desencadeou um movimento global — agora há milhares e milhares de pessoas a fazê-lo um pouco por todo o mundo. Alguns adaptaram-no ao seu negócio, atraiu também a atenção de grandes empresas, que anunciaram que iam começar a vender os seus produtos em embalagens reutilizáveis, e isso é uma vitória gigante. Nunca imaginaria, quando comecei isto, que chegaríamos aqui, ou que veria isto a acontecer na minha vida. E falo disto com muita paixão, porque se o desperdício zero conseguiu trazer melhorias à nossa vida, se o zero waste conseguiu transformar o nosso estilo de vida para se basear em ser em vez de ter, imagina o que seria se toda a sociedade adotasse esta lista de princípios. Acho que resolveria uma série de problemas.
E acredito que há pessoas que ficam entusiasmadas com isto, nas minhas palestras, não só por causa do entusiasmo com que passo a mensagem, mas também porque sou muito transparente quando conto como foi a nossa viagem e como chegou ao que é agora. Mas a primeira vez que expusemos este estilo de vida foi num artigo do The New York Times, em 2010, e as pessoas riram-se de nós. As críticas no artigo eram horríveis porque, como não havia fotos de como vivíamos a acompanhar, as pessoas não sabiam como éramos. Diziam que éramos como uns hippies, a viver no meio da floresta, falavam do quão desprezível era o que estávamos a fazer aos nossos filhos, como se os tivéssemos a privar de uma boa vida — porquê, porque não os levamos ao McDonald’s, é isso? Estão a brincar comigo? Eu e o meu marido olhámos para aquilo e acabámos por nos rir de tudo, porque era quase normal este tipo de julgamento, o público não sabia o que é que o estilo de vida desperdício zero significava, não sabia com o que é que se parecia, por isso podiam apenas especular baseados nos preconceitos que tinham. Mais tarde, saiu um artigo ilustrado com nove páginas, numa revista, e as pessoas puderam associar o lifestyle a uma imagem, e pensaram ‘uau, se o desperdício zero se parece afinal com isto, eu também quero fazê-lo’. E a partir daí foi um crescendo. Óbvio que a evolução é gradual, ainda é um movimento emergente, mas acho que nós demos um rosto ao zero waste. É verdade que as pessoas gozaram ao início com o nosso estilo de vida e acharam que não íamos ter impacto nenhum, que éramos só uma família, mas no final provámos o contrário. O que uma família faz em casa, pode e tem impacto, não digas que o que fazes não tem impacto, porque pode ter. E nós estamos cá para o provar.
"Se sinto falta dos 20 produtos para o cabelo? Não. Nem do vestuário extra — eu só tenho cerca de 15 peças de roupa (...) Se tenho saudades de uma seleção maior? Não (...)"
Perguntas-me se tenho saudades de alguma coisa do estilo de vida anterior? Não, definitivamente não. O desperdício zero simplificou tanto a nossa vida, que quando o abraças, só te arrependes de não o ter começado mais cedo. Ponto final. Nós tentamos sempre encontrar alternativas que funcionem para nós, e se funcionam, o passado não faz falta. Se sinto falta dos 20 produtos para o cabelo? Não. Nem do vestuário extra — eu só tenho cerca de 15 peças de roupa, é um guarda-roupa cápsula. E a minha formação é em Moda, mas não sinto falta de mais. Escolhi peças multifuncionais, por isso estas 15 peças permitem-me criar mais de 50 looks. Eu costumava ter peças mais coloridas, antes, mesmo quando comecei com este guarda-roupa cápsula, mas apercebi-me que me cansava disso muito depressa. Mas dos básicos nunca te cansas. Passei a ter uma paleta cromática mais restrita, mas os exemplares de roupa foram muito bem escolhidos e servem múltiplos propósitos, por isso, consigo ir com eles de um casamento a um cenário televisivo, de caminhadas a acampar, do Alasca a Guadalupe, porque passei algum tempo a analisar o que realmente precisava de acordo com as minhas necessidades, que são sempre diferentes das de outras pessoas que vivem noutros locais e têm outras profissões. Além disso, todo o meu vestuário cabe numa mala, por isso, quando vou de viagem, não preciso de pensar no que vou levar, porque eu consigo levar o meu guarda-roupa todo, esteja fora um fim de semana ou um mês. Se tenho saudades de uma seleção maior? Não, porque perderia esta liberdade. E é interessante porque esta nossa vontade de consumo não é derivada de uma necessidade pessoal, é resultante de publicidade e técnicas de marketing que dizem que se não tivermos isto ou aquilo não somos cool ou bonitas o suficiente. Mas, no final do dia, é tudo superficial.
Ao início, quando comecei a adotar este estilo de vida e ia ao café com o meu termo reutilizável, olhava em redor para todos aqueles copos descartáveis dos outros clientes e irritava-me, mas depois, quando comecei a entrar mais neste estilo de vida e a usá-lo na capacidade máxima, deixei de me afetar pelas escolhas dos outros. Quem sou eu para julgar, se outrora eu também era assim? Não tenho esse direito. Quando fazes parte da solução, vês que o mundo está a ir na direção certa e perdes esse lado de julgamento. E não é uma utopia fazer com que o mundo se torne zero waste, nós começámos em nossa casa e iniciámos um movimento global — o zero waste pode ser feito em qualquer lado, as regras do estilo de vida do desperdício zero podem ser aplicadas em qualquer parte do mundo.”
* Há mais testemunhos desperdício zero: da Lauren Singer (Trash is for Tossers) e da Eunice Maia (Maria Granel).