É redundante explicar-lhe de que trata Maria Granel sendo um nome que se tornou automaticamente reconhecível assim que aterrou na capital? É. Mas colocar Eunice em discurso direto para explicar como chegou aqui, não é.
É redundante explicar-lhe de que trata Maria Granel sendo um nome que se tornou automaticamente reconhecível assim que aterrou na capital? É. Mas colocar Eunice em discurso direto para explicar como chegou aqui, não é.
Eunice Maia © Gustavo Figueiredo
Eunice Maia © Gustavo Figueiredo
Um açoriano e uma minhota chegam a Lisboa. E está feito o começo de uma história de sucesso. Eunice é uma das metades — a outra é Eduardo — da mercearia biológica Maria Granel, onde as compras são feitas avulso e de forma sustentável. A acompanhar os produtos a granel da loja, que tem também espaços físicos (em Alvalade e Campo de Ourique, Lisboa), a dupla tem ainda uma lista de artigos que ajudam nesta demanda pelo desperdício zero. É redundante explicar-lhe de que trata Maria Granel sendo um nome que se tornou automaticamente reconhecível assim que aterrou na capital? É. Mas colocar Eunice em discurso direto para explicar como chegou — chegaram — aqui, não é.
"Venho de fora, como tanta gente que mora em Lisboa. Sou minhota, cresci entre levadas graníticas e granjas abundantes, entre o milho e a vinha, no regaço verde da aldeia. Pertenço a uma família de gente do campo, que nele trabalhou e nele encontrou sustento durante várias gerações. Foi uma história de amor que me uniu a um açoriano e que me empurrou para a capital. O meu marido Eduardo é de São Miguel, traz no baú da memória aquele verde luxuriante das ilhas, as pastagens sem fim que só acabam no azul cobalto do oceano, entre o abraço das hortênsias e o ritmo suave das estações. Cresceu entre jardins e plantações de ananás, maracujá e bananeiras, correu e brincou descalço. Fomos ambos ensinados a ouvir e a respeitar o sussurro da terra e a agradecer as suas dádivas. O mesmo murmúrio da natureza, ancestral, insondável, mágico.
Viver em Lisboa, quando se é de fora, é sentir constantemente o apelo do regresso, é andar com a província instalada para sempre dentro do nosso coração. E foi o que nos aconteceu aos dois. Estávamos desenraizados e longe das nossas origens. Até que, em 2013, sonhámos e criámos a primeira mercearia biológica 100% a granel em Portugal, a Maria Granel, que abriria as portas em novembro de 2015, em Alvalade. Nasceu exatamente como homenagem às nossas raízes comuns associadas à terra, como uma forma de recuperarmos a ligação afetiva que sentíamos nas nossas pequenas comunidades, tão bem cristalizada no imaginário coletivo das antigas e tradicionais mercearias de bairro. E o que primeiro assomou como uma simples loja foi depois crescendo e afirmando-se (e construindo-se) como projeto de redução de desperdício, a primeira zero waste store nacional.
"[A Maria Granel] Nasceu exatamente como homenagem às nossas raízes comuns associadas à terra, como uma forma de recuperarmos a ligação afetiva que sentíamos nas nossas pequenas comunidades, tão bem cristalizada no imaginário coletivo das antigas e tradicionais mercearias de bairro."
Foi um risco enorme, sim. Eu sou professora, a minha formação foi sempre totalmente dedicada ao ensino e à investigação em literatura. O meu marido é economista e consultor. Não sabíamos nada de biológico ou de granel. Valeu-nos a equipa que formámos, de gente boa e com muita experiência, que acreditou em nós e com quem aprendemos muito. Por muito que os estudos de mercado nos confirmassem a oportunidade e a visão, por muito que tivéssemos analisado modelos idênticos nos EUA e na Europa, estávamos a introduzir em Portugal algo pioneiro, não sabíamos qual ia ser a reação efetiva, real, das pessoas. A nossa pequena revolução, além de unir dois mundos (biológico e a granel) num só espaço, foi convidar os queridos fregueses (está inscrito e ilustrado nas nossas paredes desde o dia 1) a trazerem os seus próprios recipientes. Essa decisão aconteceu poucos meses antes da abertura da nossa loja, depois de ter visto na Internet, de forma completamente aleatória, uma reportagem de um canal de televisão norte-americano sobre Bea Johnson.
Nunca tinha ouvido falar de Bea nem da expressão zero waste. Na altura, aquilo que mais me fascinou — por motivos óbvios — foi o momento em que Bea, acompanhada pelos jornalistas, foi às compras a uma grande superfície e, carregada com os seus grandes cestos cheios de frascos, explicou, enquanto se abastecia diretamente dos dispensadores, a importância decisiva do granel para a diminuição dos resíduos produzidos em família. Foi o meu primeiro contacto com a sua filosofia de vida e foi também o momento em que tudo começou a fazer sentido e a ganhar ainda mais força na nossa ideia. Confrontados com os números do desperdício alimentar e com a quantidade de resíduos que cada português gerava na altura (440 kg por ano, de acordo com o Relatório Anual da Agência Portuguesa do Ambiente, 2013), decidimos introduzir o sistema BYOC (bring your own container) no mercado nacional. Estávamos assim a combater o desperdício quer do ponto de vista alimentar (as pessoas apenas consomem a quantidade de produto de que realmente precisam, sem dar hipótese a que haja excedentes que se deterioram), quer do ponto de vista da produção de lixo (recusa e ausência de embalagens de plástico), fomentando um consumo mais responsável e mais consciente.
Lembro-me bem que, no início, ninguém trazia os seus próprios recipientes, até que, um dia, um senhor, que estava habituado a fazê-lo durante os tempos em que estivera na Bélgica, passou a trazer os seus frascos para fazer as compras. Esse exemplo ajudou a contagiar os outros fregueses, que começaram a ter orgulho em trazer as suas próprias embalagens, mais, começaram a fotografar e a partilhar o gesto nas suas redes sociais e isso passou a ser cool. O poder do exemplo. Foi muito assim que conseguimos ‘educar’ uma comunidade inteira para a reutilização de frascos e sacos de pano para se abastecer diretamente na loja, recusando por completo o uso do plástico. Se tivéssemos de destacar um dado, uma vitória de que nos orgulhamos muito, seria o facto de — mérito de quem nos visita — termos contribuído para desviar mais de 1 milhão de sacos de plástico dos aterros. Pequenos passos, grandes impactos.
"Se tivéssemos de destacar um dado, uma vitória de que nos orgulhamos muito, seria o facto de — mérito de quem nos visita — termos contribuído para desviar mais de 1 milhão de sacos de plástico dos aterros. Pequenos passos, grandes impactos."
Em março de 2017, uma segunda mulher-inspiração veio dar ainda mais força e sentido ao nosso trabalho e solidificar a transformação que já estava a acontecer no meu próprio estilo de vida. Conheci pessoalmente a bióloga marinha Ana Pêgo numa visita à sua exposição Plasticus Maritimus. Estava acompanhada de um grupo de 24 alunos e creio que esse aspeto marcou ainda mais o meu despertar — o futuro ia perceber ali, naquela sala, o terrível legado que ia receber do presente. A Ana, criadora do projeto educativo ambiental com o mesmo nome, recebeu-nos e guiou-nos pelas várias instalações artísticas feitas com lixo que recolhera na praia. Depois, a ‘artivista’ pediu que nos sentássemos e contou-nos a sua história; como tinha crescido ali perto da praia, o que fazia e como começara a reparar que havia cada vez mais lixo na costa. Lentamente, todos na sala se foram apercebendo de que aqueles objetos transformados em arte eram, afinal, peças de plástico que tinham ido parar ao mar e que o mar regurgitou, devolvendo-as ao areal — o nosso lixo, aquilo que supostamente tínhamos ‘deitado fora’, afinal, continuava ali. A Ana mostrou-nos, de forma inequívoca, que o material em causa — o plástico — não só atravessa o tempo, como também o espaço. Mostrou-nos que não existe ‘fora’; o lixo dos outros é nosso, assim como o nosso lixo rapidamente se transforma em lixo dos outros. É um problema de todos, de escala planetária. Como pudemos deixar que um material extraordinário (pela sua longevidade, leveza; impermeabilidade, resistência, segurança, preservação e higiene; acessibilidade; baixo custo de produção; maleabilidade e flexibilidade, democratização no acesso...) fosse tão facilmente descartado e se transformasse em lixo, poluindo e afetando de forma nefasta os ecossistemas, dando origem a um flagelo de proporções globais?
Foi precisamente por querermos lutar contra esse flagelo que no nosso segundo espaço, em Campo de Ourique, convertemos um piso inteiro em zero waste concept store, com espaço para workshops. Foi também por isso que criámos o Programa Z(h)ero, um programa educativo ambiental (distinguido pela Fundação Yves Rocher através do Prémio Terre de Femmes) pelo qual promovemos sessões de consultoria, conferências, conversas informais, partilhando o nosso percurso e testemunho de sustentabilidade; acompanhamos ainda escolas, pondo em prática e supervisionando um Projeto Desperdício Zero. Recentemente, começámos a ir a casa das pessoas para ajudar a fazer uma zero waste pantry makeover, uma transformação da despensa (e do estilo de vida). A Maria Granel é muito mais do que uma loja. É uma missão. E tornou-se a minha missão e o sentido dos meus dias. Transformou a minha vida. Nada (mesmo nada!) na minha vida me fazia antever que um dia viria a ter uma mercearia biológica a granel com uma preocupação central com a sustentabilidade. Não havia também qualquer marca de ativismo ambiental no meu passado; bem pelo contrário, era extremamente consumista — de um consumismo totalmente impulsivo e inconsciente. A minha jornada é imperfeita e recente. Tem apenas três anos. Foram mudanças muito lentas, muito graduais, mas eu orgulho-me disso, porque foi precisamente por serem pequenos passos conscientes que a mudança se enraizou em mim. Comecei por aprender a dizer não e a reutilizar. Depois, passei a conjugar intensivamente o verbo reduzir (tentando perceber do que realmente precisava, o que era mesmo essencial). Em casa, divisão a divisão, fui detetando as fontes de resíduos e procurando substituir essas fontes por alternativas com menos impacto. A minha última aventura foi (finalmente!) começar a fazer compostagem doméstica, graças ao “Lisboa a compostar”, uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa.
"(...) O lixo dos outros é nosso, assim como o nosso lixo rapidamente se transforma em lixo dos outros. É um problema de todos, de escala planetária."
Sei, por experiência própria, que é muito difícil (impossível!) chegar ao zero. O que importa é tentar e ir conseguindo, celebrando as pequenas vitórias. Creio também que é essa consciência de um certo fracasso — que será sempre inerente à luta pelo ‘zero desperdício’ — que ajuda a cimentar a empatia com as outras pessoas. É o fracasso mais vitorioso que conheço. O zero é impossível, mas merece que lutemos todos os dias por ele. Um dos riscos que corremos hoje é sofrermos de uma certa eco-ansiedade coletiva. Lembro-me sempre da citação da Anne-Marie Bonneau (Zero Waste Chef): “Nós não precisamos de um grupo de pessoas a praticar zero waste de forma perfeita; nós precisamos de milhões a fazê-lo de forma imperfeita”. Acredito muito nisso, no poder dos pequenos gestos imperfeitos. Este é o meu compromisso inabalável com o futuro: ajudar a reduzir o desperdício e a eliminar o plástico descartável. E acredito, com a determinação que só a loucura lúcida às vezes nos dá, que é possível e que temos esse dever para com as gerações futuras. O plástico descartável tem de ter os dias contados. E não basta falar sobre o problema, mostrar os números no habitual tom catastrofista — é preciso é mostrar com alegria, com esperança, que as soluções já existem. A revolução começa aqui, em cada um de nós.”
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