A boa educação existe. A má educação corrige-se. Pensar que os maus modos têm origem na "falta de chá" é só uma enorme falta de educação, que nos desresponsabiliza do que significa sermos humanos.
A boa educação existe. A má educação corrige-se. Pensar que os maus modos têm origem na "falta de chá" é só uma enorme falta de educação, que nos desresponsabiliza do que significa sermos humanos.
ViktorViktor & Rolf, primavera/verão 2019 Alta-Costura © ImaxTree
ViktorViktor & Rolf, primavera/verão 2019 Alta-Costura © ImaxTree
Já lhe aconteceu entrar num elevador, dizer “bom dia” e receber de volta apenas um profundo e constrangedor silêncio? Já se viu numa situação em que tentaram passar-lhe à frente no supermercado, na repartição de finanças, na fila de trânsito? Ou depois de dar o lugar a alguém mais velho nos transportes públicos ou numa sala de espera de um consultório médico (quando mais ninguém teve a decência de o fazer), começar a perguntar-se para onde foram as boas maneiras? Ou ainda, perguntar-se frequentemente sobre onde andam por estes dias quentes de agosto - e já agora no resto do ano - as pessoas decentes e educadas? Se acontecer neste momento estar a pensar que “esta jornalista está a exagerar”, esta jornalista diz-lhe desde já que não.
“Os portugueses são um povo completamente mal-educado”, título do jornal Observador de 10 de dezembro de 2014. Cinco anos após este título, as boas maneiras parecem ainda não ter regressado das suas longas férias. Mas andamos todos demasiado distraídos com os ecrãs do telefone para reparar. Sabia que existem dez (pelo menos) regras básicas de educação sem as quais a sociedade civilizada pode ficar perigosamente à beira do caos. Dez!? Caos? Se calhar tem razão, estou a exagerar. Até parece que andamos todos por aí a insultar-nos uns aos outros nas caixas de comentários dos jornais, no Facebookou no trânsito, não é? Marisa Moura também já foi jornalista, mas fala à Vogue Portugal enquanto autora do livro, O que é que os Portugueses têm na cabeça(Esfera dos Livros), do qual retiramos o seguinte excerto: “Ó cão! O que é que estás a ladrar, meu ganda cão? Enfio-te dois borrachos nesse focinho... Ouvi isto há uns tempos nuns semáforos junto ao Estádio de Alvalade, em Lisboa. Não havia nenhum canídeo por perto, apenas um par de Homosapiens sapiensirritados devido à demora de um deles a arrancar no semáforo anterior. Explosões como esta acontecem todos os dias por estas estradas fora, mas são das poucas situações em que um tuga ousa afirmar-se. No refúgio do popó, sabe bem praguejar e fugir. Não somos pessoas de preparar grandes cocktails molotovcomo os gregos, mas ao volante gostamos de misturar uma certa dose de testosterona e intolerância a atropelar o mais elementar bom senso cívico.” Civismo significa ter respeito pelos valores da sociedade.
Mas, e quando essa sociedade está doente, o que é que acontece a valores como o do respeito pelo próximo? “Quando tive vontade de escrever este livro foi em 2010, depois de ter saído um estudo da Organização Mundial de Saúde, onde nós, portugueses,aparecíamos como a população mais afetada pelas doenças mentais, mas do mundo, nem sequer era da Europa. Só os EUA estavam ligeiramente pior que nós. Isto revela que alguma coisa se está a passar com a nossa inteligência, com as nossas emoções. Há aqui um problema que não estamos a conseguir ultrapassar, que nos permita ter ferramentas de enfrentar e arranjar soluções para os dilemas do dia-a-dia, de nos organizarmos.” O Observatório Português dos Sistemas de Saúde, no seu relatório de primavera deste ano, confirma que entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), Portugal está em primeiro lugar no consumo de psicofármacos. Marisa não se surpreende.
“Houve uma polémica entrevista que dei ao jornal Observador, (aquando do lançamento do livro) em que disse que os portugueses são completamente mal-educados. Isso foi uma ironia, mas já tinha a ver com isto. Se somos um caso atípico no que diz respeito a depressões, ansiedades, impulsos e faltas de controle, no sentido de sermos reativos, se isto está identificado, alguma coisa é preciso fazer. Em Portugal, há muito aquele argumento do ‘somos apenas humanos’. Ou ‘nos outros países também têm problemas, também são como nós’. Mas há tantas estatísticas sobre nós, em áreas diferentes, a mostrar que isto não é só uma impressão nossa. Há mesmo uma lacuna enorme e gravíssima de informação e na formação sobre estas questões, sobre como nos tratamos. Na Suíça, a partir das 22h, se alguém tem o som da televisão mais alto aparece logo a polícia à porta. Aqui, temos vizinhos a fazerem obras até às tantas, portas a bater, pessoas aos gritos até às duas da manhã. Se reclamamos, quem reclama é que é esquisito e caprichoso.”
Portugal tem leis nacionais que regulam os níveis de ruído. É mesmo proibido fazer barulho com obras entre as 20h e as 8h e também aos sábados, domingos e feriados, durante todo o dia. Já as conversas ruidosas ou a música alta entre as 23h e as 7h podem dar multa. Mas mesmo apesar da lei e de todas as recomendações, oficiais e não oficiais, sobre a importância de respeitar as horas de silêncio necessárias para garantir o descanso de todos, houve necessidade de criar a plataforma Menos Barulho em Lisboa. Aqui, as situações de desrespeito pela qualidade sonora na cidade são denunciadas alto e bom som. Está mesmo a decorrer uma petição online – Menos Poluição Sonora em Lisboa– cujo destinatário é a Câmara Municipal de Lisboa. Os signatários pretendem que a autarquia adote medidas mais rigorosas no combate ao excesso de ruído. De entre as propostas, constam a criação de uma linha de apoio para denúncias de incidentes relacionados com o ruído, lançamento de uma campanha de sensibilização que aborde a responsabilidade individual sobre o ambiente sonoro ou a instalação de uma rede permanente de monitorização de ruído com equipamentos de medição e acesso permanente à informação atualizada.
Já no siteda Zero, Associação Sistema Terrestre Sustentável, que promove o desenvolvimento sustentável em Portugal (zero combustíveis fósseis, zero poluição, zero desperdício de recursos) é possível entrar em contacto com a campanha Décibeis a mais, o inferno nos céus. A intenção desta campanha é alertar para o impacto do ruído dos aviões sobre a cidade de Lisboa. Segundo esta associação, apesar da lei do ruído proibir voos no Aeroporto de Lisboa entre a meia noite e as seis da manhã, e ainda apesar do regime de exceção que permite neste horário um máximo de 91 voos por semana e 26 por dia, a Zero constatou que, “num total de dez dias, entre 5 e 14 de Julho deste ano, foi ultrapassado em sete o número permitido de movimentos aéreos diários.” O coletivo adjetiva mesmo como “escandaloso”, o valor total semanal de voos, “na medida em que o valor médio de quatro períodos de sete dias é de 184 voos, mais do dobro dos 91 presentes na legislação, atingindo em dois casos, 188 voos.” A ANA Aeroportos, enquanto entidade gestora do Aeroporto de Lisboa será a principal responsável desta situação. E se a Autoridade Nacional de Aviação e a Inspeção Geral do Ambiente não tiverem nada a dizer sobre isto, Marisa Moura tem.
"Dez regras básicas de boas maneiras? Talvez precisemos de mais do que isso. Mas é preciso começar por algum lado."
“Na área do sono, que é uma coisa fundamental para nos relacionarmos, somos o povo que se deita mais tarde. Metade das nossas crianças e adolescentes dormem mal, segundo a médica Teresa Paiva (neurologista, especialista na área das doenças relacionadas com o sono). Se as nossas crianças não dormem, isto tem consequências devastadoras a nível das gerações futuras, está tudo em falência com a falta de sono. Depois de um estudo que mostrou que o nosso país, relativamente aos restantes países da Europa, vive uma situação anómala relativamente ao sono, a Deco fez mesmo um pedido aos Ministérios da Saúde e da Educação para fazer campanhas sobre isto. Vejo aí umas coisinhas, mas é residual.” Seja por causa do ruído dos aviões ou devido a maus hábitos de rotina, noites mal dormidas provocam ansiedade, perturbações no humor e depressão. Repetimos a pergunta: quando uma sociedade está doente, o que é que acontece a valores como o do respeito pelo próximo? A prevaricação das instituições, que é um atentado aos mais básicos direitos dos cidadãos, mostra como a falta generalizada de civismo não é uma coisa “lá de casa”, mas de nós todos enquanto sociedade. Portugal é de nós todos, Portugal não é só teufoi uma campanha da qual já quase não há memória, ou informação, mas que passou na televisão (RTP) no final dos anos 80. No único vídeo que existe dessa campanha, disponível na internet, o humorista Herman José faz uma cómica chamada de atenção sobre a importância de não deixar o carro estacionado em segunda fila: “Eu sei que lugar para o carro é coisa que nunca há, mas fiquei escandalizado com tanta falta de chá. Eu sei que antigamente Portugal era mais nosso, não era de toda a gente. Mas agora tenha modos, esse tempo já morreu. Portugal é de nós todos, Portugal não é só teu.”
Tantos anos passados,Herman José ainda nos faz rir. E esta mensagem ainda nos faz pensar? Afinal, mudámos alguma coisa? Marisa Moura aponta outro exemplo que espelha a falta de educação cívica. E com isso responde à nossa pergunta. “Lisboa, que vai ser para o ano Capital Verde, tem um problema de lixo brutal e que é um bom caso de estudo para percebermos como é que nos relacionamos uns com os outros. E revela muito bem a ausência total de estratégias para abordar estas questões, que passam pela formação cívica dos cidadãos. O lixo que vemos espalhado pelas ruas de Lisboa é um problema de falta de civismo. O Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, também fala muito nesta falta de civismo. Se já percebemos qual é o diagnóstico, qual é o plano? Ensinar as pessoas a serem civilizadas exige trabalho e não pode ser um tabu. Acho que há um tabu enorme nesta questão das relações cívicas.” Em Janeiro deste ano,a Câmara Municipal de Lisboa fez alterações ao Regulamento de Gestão de Resíduos, Limpeza e Higiene Urbana ao criar novas contraordenações para quem lançar beatas ou pastilhas elásticas para o chão. A coima pode chegar aos 1.500 euros. Mas os comportamentos reprováveis contemplam ainda deixar sacos do lixo fora do contentor, não apanhar dejetos de animais domésticos e cuspir ou urinar na via pública.
Dez regras básicas de boas maneiras? Talvez precisemos de mais do que isso. Mas é preciso começar por algum lado. Elisabete Canha de Andrade, autora de cinco livros de etiqueta e protocolo, chama desde logo à atenção para a importância de dizer “por favor”e “obrigado”. Mas há mais. “Cumprimentar toda a gente com boa tarde ou boa noite fica bem a quem diz. Se quem ouve não responder, é falta de educação. Desculpar-se quando esbarrar em alguém ou fizer algo que incomode, respeitar os mais velhos, não interromper diálogos, cumprir o combinado. Com a proliferação de telemóveis, não há desculpa para deixar as pessoas penduradas sem explicação. Sempre que se recebe um convite deve-se responder imediatamente, com sim ou não, ou, pelo menos, deve dizer-se que dentro de “x” tempo irá dar uma resposta.”Aqui estão sete das dez regras básicas de educação que sustém uma sociedade que se quer equilibrada e saudável. Mas há mais. E Marisa Moura não se contenta com as mais óbvias.
O que é que os portugueses têm na cabeça? “Aquela expressão, as boas maneiras têm que vir de casa, e que toda a gente já disse ou já ouviu, essa expressão é assassina. É uma forma de estar na vida e ouvimo-la da boca de académicos, políticos, cidadãos comuns. Eu pergunto: e as crianças que não têm essa educação em casa? Têm alguma culpa disso? Alguma criança tem culpa de ter nascido numa família que não lhes dá esses instrumentos básicos para se relacionarem? Isto é muito injusto para as crianças que vivem numa família onde não se ensinam as chamadas boas maneiras. É injusto para elas e depois para a sociedade como um todo. Eu defendo mesmo que nós temos que ensinar boas maneiras nas escolas. Eu sei que alguns Diretores de Agrupamentos com quem também já falei sobre isto têm muito que fazer, mas há muitos professores que acham mesmo que as escolas não têm que fazer este papel e isso assusta-me imenso. Porque isto diz-me que estamos na fase em que ainda nem compreendemos que temos mesmo que educar as nossas crianças para a empatia, para a amabilidade. Porque isto do civismo e das boas maneiras não é mais que o respeito pelo outro, é não fazer ao outro aquilo que não gostamos que nos façam a nós.”Paula Bobone é licenciada em Filologia Germânica e já editou mais de uma dezena de livros sobre etiqueta. Mas mais do que regras ou preceitos normativos de comportamento, Paula Bobone considera que a boa educação é uma mensagem de afeto.
"Eu acho que a educação para o outro, que depois se revela em tudo aquilo a que possamos chamar boas maneiras, é urgente e importante. É mesmo urgente, porque se exprime nas mais diversas maneiras no nosso dia-a-dia."
“Ter amor ao próximo e fazer aos outros aquilo que queremos que nos façam a nós é uma verdade bíblica, mas é g="ES-TRAD">também um princípio humanista que deve reger-nos.” A mensagem é boa. Mas será g="ES-TRAD">que tantos séculos de cristianismo depois a mensagem se perdeu na caixa do email? Paula Bobone responde. “Eu olho para o momento em que vivemos e divido-o em duas fases: uma é a fase da globalização e a outra tem a ver com as ferramentas da globalização. Antigamente, não havia tantos conhecimentos sobre o mundo como há agora e isso reflete-se nas mudanças de atitude em relação ao próximo.” Marisa Moura diz-nos que tudo o que tem a ver com internet e redes sociais funcionam apenas como o “fermento para o bom e para o mau que já lá estava.” Nos EUA, antes do mau Donald Trump, estava o bom Barack Obama que nos deixou a seguinte mensagem: “o maior défice que temos neste momento na nossa sociedade e no mundo é g="DE">um défice de empatia. Precisamos muito de pessoas que sejam capazes de se colocar no lugar do outro e daí olhem para o mundo através dos seus olhos.”g="ES-TRAD">Viajemos até Londres, onde as palavras de Obama foram nãg="EN-US">o só compreendidas, como levadas à letra. O Museu da Empatia, que é um museu itinerante e está atualmente na capital inglesa, promove uma série de experiências que pretendem estimular a capacidade de nos colocarmos na pele de outra pessoa. Ou nos seus sapatos. A Mile in My Shoesé o nome da instalação que promete a quem a visita uma experiência transformadora. Calçar os sapatos de g="DE">um desconhecido ao mesmo tempo que ouvimos a sua história de vida, através de uma gravaçãg="EN-US">o áudio, contada na sua própria voz. Partilhar a viagem do que significa ser gente e com isso aprender a respeitar um semelhante? Groundbreaking! Para Marisa Moura esse entendimento é apenas elementar.
“Eu acho que a educação para o outro, que depois se revela em tudo aquilo a que possamos chamar boas maneiras, é urgente e importante. É mesmo urgente, porque se exprime nas mais diversas maneiras no nosso dia-a-dia. A gentileza, ou a falta dela, está na forma como nós somos atendidos num qualquer serviço, está na forma como os vizinhos respeitam ou não o silêncio alheio. Mesmo em relação ao turismo, aqui em Lisboa, eu vejo pessoas a tratarem os turistas como se eles fossem culpados de estar de férias quando todos somos turistas, todos vamos de férias para algum lado. Há uma incapacidade de nos colocarmos no lugar dos outros.” Paula Bobone reforça a ideia de que para haver respeito é preciso que haja, acima de tudo, afeto. “As crianças precisam de pais amorosos, queridos, que transmitam muito afeto e que saibam passar esses valores ligados aos bons costumes do homem civilizado, e vejo que isso não está a acontecer porque os pais, presumo que por dificuldades ligadas à sobrevivência estão omissos nisso. Os pais estão esmagados por stresses profissionais, por maneiras de viver mais difíceis. E a política e os políticos não têm ajudado muito.”
Se entre o esforço das famílias e o empenho das instituições não estamos de facto a ser capazes de construir e garantir uma rede de suporte de transferência de afeto e sentido cívico que nos permita conviver de forma respeitosa e saudável, talvez seja preciso criar uma nova e mais alargada ideia e sentido de comunidade. Uma que privilegie o altruísmo em vez do egoísmo, da generosidade em vez da inflexibilidade e do respeito em vez da arrogância. Nós todos agradecemos.
Artigo originalmente publicado na edição de agosto de 2019 da Vogue Portugal.