Quer seja através de uma cortina, como Oz, ou de uma máscara, no caso da rapper M¥SS KETA, atrás da ficção esconde-se a autenticidade. Ao contrário de músicos que procuram preservar a sua privacidade, a artista italiana instrumentaliza o seu anonimato para nos questionar: será a verdade sobrestimada?
Quer seja através de uma cortina, como Oz, ou de uma máscara, no caso da rapper M¥SS KETA, atrás da ficção esconde-se a autenticidade. Ao contrário de músicos que procuram preservar a sua privacidade, a artista italiana instrumentaliza o seu anonimato para nos questionar: será a verdade sobrestimada?
Nunca quis tanto esconder a minha cara como quando, após uma Night At The Office, a mítica festa que transforma a redação da Vogue e da GQ na melhor discoteca da cidade, fui apanhado na casa de banho com uma celebridade cuja identidade permanecerá anónima. E nem foi de propósito, foi uma daquelas questões de química que, nem que tivesse prestado mais atenção às aulas de Física e Química no secundário, compreenderia. A festa parecia estar a correr como planeado, os meus deveres há muito tinham caducado, e dei permissão a mim próprio para consumir uma bebida. Não há uma sem duas, nem duas sem três, por isso, quando dei por mim, já a euforia sentida quando o álcool nos aquece a alma me enchia. Eis quando vejo a celebridade cuja presença foi alvo de muitas preces, um facto importante tendo em conta que nem católico sou. Como a subtileza nunca foi o meu ponto forte, especialmente quando estou “alegre”, fixei-o até me olhar de volta, momento no qual me apercebi onde estava (o meu local de trabalho), para quem olhava (uma celebridade que nunca me tinha visto na vida) e quem me rodeava (os meus colegas e chefes). Para minha surpresa, quando tive a coragem de levantar os olhos do chão, já este homem se aproximava de mim. Voltámos a estabelecer contacto visual e, como por mensagem telepática, concordámos: a casa de banho seria o nosso destino. A decisão (da qual insisto em não me arrepender) provou-se catastrófica quando, passados uns meros minutos, tinha a totalidade da equipa Vogue a bater-me à porta. Os olhares, que para mim tinham sido tão discretos, foram dolorosamente óbvios para os meus colegas de trabalho. Foi um escândalo, nunca me senti tão embaraçado na vida, acabava de me humilhar da forma mais pública possível. Ou pelo menos tê-lo-ia feito se a história acima descrita não passasse de uma obra de ficção, uma mentira. Não, as palavras acima não são verdade, mas será que isso interessa? Se não há forma de provar a sua autenticidade, nem de me interrogar, já que possuo um anonimato light (apenas o nome assinado acima me identifica), não será melhor contar uma história interessante, ao invés de uma verdadeira? O anonimato aligeira a importância da verdade, possibilitando a ficção, ou até, quem sabe, a mitologia.
Poucas pessoas compreendem tão bem a importância de subestimar a verdade como M¥SS KETA, rapper italiana. Nascida no coração da nightlife de Milão, KETA é um verdadeiro mistério em saias, aliás minissaias (na verdade, micro). A artista nunca é vista sem uma máscara, normalmente feita a partir de um qualquer material iridescente, e sem óculos de sol, que lhe ocupam a totalidade da cara. O seu anonimato é muito mais do que uma imagem de marca, é a característica que mais informa a sua identidade – ou no caso, a ausência da mesma. É na carência da verdade que a artista cria o que chama de “mitologia Myssketiana”: como vinda da concha de Botticelli, M¥SS KETA nasceu da espuma das ondas, mesmo que Milão, a sua cidade de origem, não tenha litoral. Foi na capital da Moda italiana que a artista deu os primeiros passos enquanto divindade da cena club, uma cidade que confessa continuar a ser indissociável da sua arte. Em entrevista à Vogue Portugal, a revolucionária artista (que, por vezes, fala na terceira pessoa) confessa: “O amor por vezes não pode ser descrito em palavras, mas Milão foi onde M¥SS, e o seu mundo, nasceram, por isso é uma grande componente da sua personalidade. Milão mistura o passado italiano com a energia do futuro, o que é exatamente o que tento fazer.” A paixão que sente pela metrópole é recíproca. Há mais de uma década que M¥SS KETA é vista como uma das mais importantes vozes (porque cara não poderia ser) do underground milanês. Ainda que a ligação à sua terra natal seja forte, é inegável que a sua popularidade não se encontra restrita à cidade, já que é uma das mais interessantes artistas na indústria musical italiana, e até europeia, atingido um sucesso mainstream quantificável em anos recentes. “Maravilha, mistério, inclusão”, é assim que a rapper descreve o seu lugar no panorama musical, enfatizando o último ponto insistentemente, creditando a sua audiência LGBTQIA+ pelo seu sucesso. Não é só Milão que M¥SS KETA considera a sua casa, também a comunidade queer se assume como essencial para a sua arte: “O meu projeto nasceu dentro da comunidade LGBTQIA+, esta família tão grande e poderosa deu-me uma força incrível, o essencial para ter força para nunca parar.”
M¥SS KETA não é a primeira artista a esconder a sua identidade do público, muitos são aqueles que escolhem o anonimato como forma de escudar a sua privacidade. Ainda que desejado pela maioria, o preço da fama é elevado, consumindo progressivamente a vida dos “sortudos” que se podem dar ao luxo de o pagar. Esconder a identidade é como um loophole no jogo da fama, uma forma de, nas palavras eternas de Hannah Montana, ter o “best of both worlds”. Se uma peruca era suficiente para aquela personagem fictícia, no mundo real esta omissão é bem mais trabalhosa. Artistas de renome mundial como a banda eletrónica Daft Punk, ou até a sensação de pop, Sia, cobrem as suas caras, através de capacetes e perucas, respetivamente (se bem que pensar na possibilidade da troca de disfarces é, no mínimo, cómica). Ainda que o charme e vida pessoal de um artista sejam essenciais para a sua “popularidade”, o anonimato, paradoxalmente, contribui para o seu sucesso. O mistério fascina-nos, a omnipresente tensão entre a identidade real destes artistas e a persona que, tanto quanto sabemos, pode ser falsa, cativa-nos. M¥SS KETA é o expoente máximo deste fenómeno, vendendo-nos não só uma personagem, como uma narrativa.
Se Hannah Montana e Sia se ficam por simples perucas, a rapper italiana assume a teatralidade de braços abertos. A artista já utilizou todos os objetos imagináveis para esconder a cara, desde penas a barbas falsas, até relógios foram instrumentalizados para assegurar o disfarce de M¥SS KETA. A manutenção do anonimato é essencial para a artista, que revela que, quando esconde a sua identidade, “as pessoas são forçadas a concentrarem-se no que digo, isto dá às minhas ações e palavras um poder incrível.” A seriedade da resposta é uma condição rara no discurso da rapper, que utiliza máscaras não só para garantir a atenção da sua audiência, como para compor uma personagem. Ao longo da entrevista com a Vogue Portugal esta tendência é aparente, maleando a linha entre realidade e ficção. Para contrabalançar a sobriedade da resposta anterior, a artista rapidamente acrescenta: “Não ter uma cara comum também dá uma oportunidade para o mundo se focar na minha linguagem corporal excecional, mas tenho de admitir que torna difícil passar pela segurança no aeroporto.” Não culpamos M¥SS KETA, o anonimato tem um efeito intrigante na mente humana, alterando bem mais do que a nossa relação com a realidade. Desde a década de 70 que se conduzem estudos sobre a profunda metamorfose que só uma identidade incógnita parece catalisar. Não precisamos de ir aos extremos de M¥SS KETA. Não são necessários relógios, ingénuas máscaras de Carnaval ou óculos de sol são suficientes para revelarmos um lado menos “sério” de nós próprios, deixando-nos levar pelos nossos caprichos mais pecaminosos. Até mesmo as máscaras cirúrgicas, popularizadas na pandemia, podem alterar a nossa perceção do que é certo e errado.
Não haverá no entanto melhor exemplo do que o anonimato faz ao comportamento humano do que a Internet. Quando escondidas atrás de um ecrã de um computador ou de uma conta de Instagram privada, as pessoas tornam-se jogadores incógnitos num jogo sem regras. Cyberbullying, body shaming, ou até mesmo ameaças de morte, podem ser resultado da confiança que se sente quando as nossas ações não têm consequências diretas nas nossas vidas pessoais. Este clima é apenas parte da razão pela qual M¥SS KETA não pensa nas redes sociais como algo necessariamente positivo. A artista encara-as como uma “busca por estrelato”, mas refere também o risco que representam à manutenção do seu segredo. Se preservar o anonimato já era difícil há 20 anos, o facto de a maioria da população ter uma forma de, não só tirar uma foto, como de a publicar para uma audiência de milhões de curiosos, dificulta consideravelmente a vida de artistas como a rapper italiana. Esta possibilidade, assim como a bisbilhotice que motiva estas ações, irritam a artista: “Acho que é estúpido querer sempre revelar algo, ou procurar uma explicação para coisas que não compreendemos”, revela. A frustração de M¥SS KETA é visível (no pun intended): “Acho que às vezes temos de aprender a aceitar as coisas pelo que são, pelo que é suposto serem, para conseguirmos desfrutar das mesmas.”
Das poucas vezes que sentimos a rapper mais serena é, ironicamente, quando esta defende a sua narrativa. “Sim, conto muitas histórias, às vezes as memórias mudam de acordo com as emoções e o tempo,” confessa a artista. Esta metamorfose é algo que temos de aceitar, a nossa dependência da verdade é exaustante. Tal como alerta M¥SS KETA, “nos dias que correm quem sabe distinguir a verdade da mentira? E será que importa assim tanto?” Ainda que a linha entre a realidade e a ficção seja difícil de traçar, ela tem também os seus lados positivos. Ao passo que para a maioria das celebridades os rumores e escândalos são piamente temidos, a rapper acolhe-os de braços abertos, incorporando-os na fascinante mitologia Myssketiana. Quando interrogada sobre o seu rumor preferido, revela: “Esteve nos jornais que estava a ter um caso amoroso com um político italiano famoso, com imensos detalhes e particularidades muito íntimas, um pouco embaraçoso, mas estava superengraçado.” Como seria de esperar, M¥SS KETA prefere que a dúvida perdure, omitindo quanto desta história realmente aconteceu. Mas se a artista no ensinou alguma coisa foi que, perante uma boa história, o valor da verdade pode diminuir de forma considerável.
Texto originalmente publicado na The Gossip Issue da Vogue Portugal, disponível aqui.
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