Tempos houve em que, durante um voo Nova Iorque-Paris, os passageiros eram convidados a “conviver” em lounges onde tanto se bebia champanhe como se jogava xadrez. Nessa altura, todos os aviões eram smoke friendly e a distância entre os assentos, mesmo na classe económica, era ridiculamente grande. Era a chamada “golden age of travel” (“idade de ouro das viagens”), o período entre os anos 50 e 70 recordado pelo conforto, luxo e glamour. Qualquer semelhança com a realidade dos dias de hoje é pura coincidência.
Tempos houve em que, durante um voo Nova Iorque-Paris, os passageiros eram convidados a “conviver” em lounges onde tanto se bebia champanhe como se jogava xadrez. Nessa altura, todos os aviões eram smoke friendly e a distância entre os assentos, mesmo na classe económica, era ridiculamente grande. Era a chamada “golden age of travel” (“idade de ouro das viagens”), o período entre os anos 50 e 70 recordado pelo conforto, luxo e glamour. Qualquer semelhança com a realidade dos dias de hoje é pura coincidência.
“Era luxuoso. Era agradável. Era rápido. Naquela época, viajar de avião era algo especial. As pessoas vestiam-se bem por causa disso. Os tripulantes usavam fardas de Alta-Costura — literalmente. E havia muito mais espaço: a distância entre os assentos do avião era provavelmente de 36 a 40 polegadas [91,4 cm e 1,02 cm, respetivamente]. Atualmente, é de 28 [71 cm], porque cada vez há mais pessoas a bordo. Havia zonas lounge e a possibilidade de refeições de quatro, cinco ou mesmo seis pratos. A Olympic Airways tinha talheres banhados a ouro nas cabines de primeira classe. As companhias aéreas estavam a comercializar os seus voos como meios de transporte luxuosos, porque no início dos anos 50 estavam a competir com os navios de cruzeiro. Algumas companhias aéreas americanas organizavam desfiles de Moda nos corredores, para ajudar os passageiros a passar o tempo. A certa altura, falou-se em colocar pequenos pianos de cauda nos aviões para proporcionar entretenimento.” Parece mentira, mas não é. O relato é de Graham M. Simons, historiador de aviação e autor de inúmeros livros sobre o tema. Em agosto de 2022, colaborou com a CNN num extenso artigo sobre a “golden age of travel” (em português, “idade de ouro das viagens”), onde relembrava aquele período, entre os anos 50 e 70, que coincidiu com as mudanças culturais promovidas pela introdução de aparelhos a jato — os aviões que partiam da América do Norte e atravessavam o Oceano Atlântico podiam finalmente voar para os seus destinos sem paragens, tornando, pela primeira vez, grande parte do mundo acessível num único dia de viagem. Claro que, na época, nem todos conseguiam voar. As tarifas eram demasiado caras, por isso as companhias aéreas não estavam preocupadas em instalar mais lugares, mas sim em melhorar os seus serviços. Os happy few que conseguiam pagar um bilhete (que, segundo consta, poderia chegar a 5% de um salário médio) seriam tratados como reis. Mesmo que viajassem em classe económica.
Fast forward para 2023, quando comprar uma viagem de avião está ao alcance de um clique. Há promoções que unem capitais europeias por menos de vinte euros — em que condições, não se sabe muito bem, o que importa é ir, desde que não se leve muita bagagem. Ou nenhuma, não vá o diabo tecê-las. Existem mais de cinco mil companhias aéreas a operar em todo o mundo, o que ajuda a compreender a esquizofrenia em que transformou a aviação civil. Os aeroportos estão sobrelotados, há um vai-e-vem constante de passageiros em todos os sítios do globo, até nos mais recônditos, porque ninguém quer passar pela “vergonha” de ficar em casa quando “está tudo tão barato, que é uma pena não ir.” Claro que o transtorno que atualmente envolve uma viagem de avião é impossível de comparar com a calma e o sossego de outros tempos. A logística infernal que somos obrigados a passar até estarmos efetivamente sentados num avião deixaria os nossos antepassados de cabelos em pé. Eles, que estavam habituados a vestir as suas melhores roupas para viajar (que loucura, certo?), para quem um voo transatlântico era sinónimo de doze horas de diversão, muito whiskey, e uma imensa nuvem de fumo (os cigarros, aparentemente, ainda não matavam ninguém), ficariam horrorizados com as filas de pessoas de ar enfadado, quase dormente, que passam por infinitos controlos de segurança onde são obrigados a despir-se e a mostrar o conteúdo das suas bagagens; não suportariam os gritos das crianças que, famintas, aguentam quatro e cinco horas de atrasos (uma constante); teriam medo das mulheres e dos homens que perdem a paciência quando lhes é pedido para enviar a mala de cabine para o porão sem aviso prévio porque “afinal não há espaço no avião”; olhariam de soslaio para os turistas de calções de banho e chinelos de praia que vagueiam pelo terminal de mãos nos bolsos, com a placidez de um recém-nascido; ficariam surpresos ao perceber que não há refeições de quatro pratos — na maior parte das rotas, não há refeições, ponto. O boom das companhias low cost provocou uma mudança de paradigma tal que, atualmente, menos é mesmo menos: para se tornarem competitivas, as empresas cortaram em quase tudo, do espaço entre os assentos ao número de malas que cada pessoa pode levar (um bilhete é apenas isso mesmo, um bilhete, tudo o resto é extra), passando pela comida, que deixou de ser servida, a menos que se viaje em executiva. Não há café. Não há pão com manteiga. Não há água. Nas últimas duas décadas, principalmente depois dos ataques do 11 de setembro, nos Estados Unidos, voar tornou-se um (pequeno) pesadelo. É mais seguro. É mais rápido. É mais higiénico (se pensarmos que, agora, o fumo dos cigarros já não existe). Mas o processo para que tal aconteça é medonho. É uma espécie de aborrecimento em crescendo, um azar que nunca acaba, uma dor de cabeça à prova de Ipobrufeno. A menos que se tenha um avião privado, claro.
O problema são as pessoas, portanto. Como escrevia Patrick Smith, piloto, num artigo de opinião publicado em maio de 2017 no The New York Times, “uma das razões pelas quais a aviação se tornou um caos tão grande é o facto de, agora, muitas pessoas terem os meios para participarem nela. Nem sempre foi assim. Ajustado à inflação, o custo médio de um bilhete diminuiu cerca de 50% nos últimos 35 anos. Isto não é verdade em todos os mercados, mas, de um modo geral, as tarifas são muito mais baratas do que eram há 30 anos. (E sim, isto depois de ter em conta todas as taxas adicionais que as companhias aéreas adoram e os passageiros tanto desprezam).” Entre os anos 50 e 70, apenas uma pequena parte da população viajava. Essa pequena minoria experimentava o melhor do melhor: as refeições eram servidas como em qualquer restaurante premium, com toalhas de mesa e pratos de louça; os menus incluíam iguarias como foie-gras, caviar, chateaubriand ou rosbife; ao pequeno-almoço, as hospedeiras faziam ovos mexidos, um dos pratos mais pedidos pelos passageiros; o champanhe era ilimitado. Este universo quase perfeito era apenas abalado pelo número de acidentes — bastante mais elevado do que na atualidade, tal como os sequestros, que eram recorrentes, principalmente nos anos 70. O desenvolvimento da tecnologia permitiu muitas melhorias a nível de segurança, o que fez com que o número de desastres mortais seja, hoje, quase inexistente. Lado a lado com a proibição de fumar, que encerrou definitivamente o capítulo “laissez faire, laissez passer” da aviação comercial, passámos de uma “golden era of travel” para uma “easy era of travel.”
A companhia aérea mais frequentemente associada a esta era dourada é a americana Pan Am, a primeira a operar o Boeing 707 e 747 e a líder do setor nas rotas transoceânicas da época. Joan Policastro, antiga hospedeira da empresa entre 1968 e 1991, recorda esses anos com nostalgia: “O meu trabalho na Pan Am foi uma aventura desde o dia em que comecei”, contou à CNN. Na verdade, a sua profissão era uma das mais cobiçadas daquelas décadas. Carol Brown tem agora 76 anos. Entre 1969 e 1975 fez parte do exclusivo grupo da Pan Am, e contou à Condé Nast Traveler como é que foi. “Havia um orgulho em fazer parte da Pan Am na idade de ouro. Não éramos apenas empregados, fazíamos parte de uma equipa da companhia aérea mais experiente do mundo. O mundo inteiro conhecia a Pan Am e a ‘bola azul.’ Passávamos na rua ou no terminal e as pessoas viravam-se.” De facto, trabalhar na Pan Am era tão cool como figurar no poster de um filme de Hollywood. “As tripulações de voo pareciam estrelas de rock quando atravessavam o terminal, carregando as suas malas, quase em câmara lenta”, refere Keith Lovegrove, autor do livro Airline: Estilo a 30.000 pés, Keith Lovegrove. “Tinham muito estilo e toda a gente era bonita ou bem-parecida.” De Catch Me If You Can (2002), com Leonardo DiCaprio, inspirado na história real do vigarista Frank Abagnale Jr., que apelidava a Pan Am de “Ritz-Carlton das companhias aéreas”, à série homónima Pan Am (2011), são várias as obras que glorificam um tempo que não volta mais. Um tempo caraterizado pela atitude relaxada (muitas vezes, ignoravam-se “detalhes” como os documentos de identificação, algo impensável nos dias de hoje) e pelo serviço irrepreensível (cada passageiro era tratado como a pessoa mais importante do voo). Seria interessante recriar um desses momentos numa próxima viagem. Imaginemos o seguinte cenário: estamos sentados no nosso lugar, em pleno voo Lisboa—Londres, e chamamos o comissário de bordo: “Posso ver o menu?” Ele traz-nos uma brochura que contém os produtos do inflight shopping. Lá no meio aparece um pastel de nata, um sumo de laranja, um café, cada um mais caro que o outro. “Desculpe. Estava a falar do menu de almoço.” Ele olha-nos, surpreendido. “Não servimos refeições a bordo. Só na primeira classe.” Espreitamos para a primeira classe. Ninguém está a devorar cinco pratos. Não há flutes de champanhe. Não há foie-gras. Vimos passar um frango cozinhado a vapor para a senhora de óculos escuros sentada na primeira fila. Os tempos são outros.
Originalmente publicado no The Voyage Issue, da Vogue Portugal.For the english version, click here.