Escondido por baixo de camadas de roupa, para que não se revele o que todos já sabemos que existe, está o corpo. Porque é que a sua nudez ainda nos incomoda tanto?
Escondido por baixo de camadas de roupa, para que não se revele o que todos já sabemos que existe, está o corpo. Porque é que a sua nudez ainda nos incomoda tanto?
Photography by Bastiaan Woudt
Photography by Bastiaan Woudt
Todos temos mãos, braços, ombros, pernas e tornozelos - e ninguém se choca quando vê um vestígio de pele de uma destas partes do corpo. No entanto, a coisa já muda de figura se introduzirmos zonas íntimas. O constrangimento é tal, aliás, que nem nos atrevemos a chamar as coisas pelo nome. Falamos dos genitais, as regiões absolutamente proibidas, que só os mais privilegiados têm direito a ver (mas não sem a antecipação de um momento de receio e suspense). Observar, ou mostrar, estas partes do corpo - seja no ecrã ou cara a cara - é encarado quase como depravação, é revelar algo que devia ser exclusivo. Mas nem sempre foi assim.
Mesmo após a introdução do vestuário no dia-a-dia de povos pré-históricos, muitas sociedades não abandonaram a nudez enquanto prática regular e perfeitamente normalizada. Tanto que, na Grécia Antiga, o nu era associado à perfeição divina (não é por acaso que muitas das representações de deuses e heróis escusavam o acrescento de roupa). Então, o que mudou? Durante o Império Romano e a consequente ascendência do cristianismo, o vestuário foi sendo adotado como um sinal de status social, daí que a falta dele fosse entendida como sinónimo de vergonha e necessidade - só não se vestia quem não conseguia suportar o gasto. Assim começou um longo período que veio definir a maneira como nos relacionamos com os nossos corpos descobertos.
Poderíamos dissertar infinitamente acerca dos efeitos desta imposição, mas se há alguma coisa que a História e a psicologia nos ensinaram é que a proibição nada impede. Pelo contrário, no que toca a impedimentos comportamo-nos como autênticas crianças: o que não podemos ter é o que queremos. Quanto mais nos negam o corpo, mais o queremos mostrar, ver e tocar. E assim se cria o tabu. Ao longo da Idade Média e da Modernidade, a ideia de nudez como depravação foi sendo consolidada na Europa, mas esta associação não funciona de forma igual para todos. Já dizia Freud que os homens percecionam a mulher numa de duas formas: como um ser sexual degradado ou como uma figura maternal santificada. Perante as duas alternativas, parece que o corpo é a característica que mais define uma mulher. Afinal, é isso que se quer de um ser sexual, não? As teorias de Freud podem já estar muito ultrapassadas, mas ainda hoje assistimos a uma associação quase imediata do corpo feminino à sexualidade. Nem é preciso pensar antes de decidir que os seios são quase sempre pensados como objetos sexuais, e não como o órgão que alimenta recém-nascidos. O corpo masculino, porém, parece não incomodar tanto. São centenas os argumentos que suportam esta ideia e começamos com uma simples prova de como este double standard na nudez está subtilmente a condicionar o nosso dia a dia: no Instagram, mamilos femininos são censurados, ao contrário de mamilos masculinos. Recentemente, a proibição tem vindo a reverter-se, mas as redes sociais continuam a ser o palco da luta pela normalização da nudez. Mesmo noutros meios, como no cinema, temos vindo a assistir a uma mudança gradual na forma como é representado o corpo, seja o masculino ou o feminino. Durante décadas, a nudez gratuita dominou o cinema de Hollywood - qualquer desculpa era boa o suficiente para despir uma atriz em frente à câmara (e não podemos ainda dizer que tenha sido erradicada). E esta representação nunca é inocente, é provocatória. Porquê? Porque, apesar da inquietação que vem com a ideia de nudez, há sempre uma curiosidade que vende - afinal, o fruto proibido é o mais apetecido.
Estamos em pleno século XXI, o movimento de liberação e aceitação do nu já andou para trás e para a frente. Como podemos chegar onde chegámos com tanto constrangimento face ao corpo? Ao longo dos tempos, temos vindo a ser condicionados a associar o nu ao sexo. A nudez não tem qualquer outro propósito senão provocar um desejo sexual a quem a vê - escusado será dizer que esta ideia não tem um fundo de verdade, porque o corpo não existe só para o sexo (que, já agora, é um tema a evitar, é algo íntimo que deve ser exclusivo entre os corpos de duas pessoas). É a conclusão lógica a que conseguimos chegar, tão simples quanto um silogismo: sexo é um tema tabu. O corpo nu serve apenas para sexo. Logo, o corpo nu é um tema tabu. A nudez não é exclusiva à sexualidade, é natureza e é intrínseca: por baixo de tudo o que possamos vestir, teremos sempre o corpo com que nascemos e que será sempre nosso.
Translated form the original on The Body Issue, from Vogue Portugal, published March 2022.Full stories and credits on the print issue.