Opinião   Palavra da Vogue  

To Be Continued | É Permitido Fumar

08 Apr 2021
By Ana Murcho

Esta é uma viagem, não aconselhável a menores de 18 anos, a uma era em que o fumo era tão (ou mais) glorificado que o exercício físico.

Agora parece uma realidade completamente distópica, e por isso mesmo impossível, mas tempos houve em que os cigarros eram aceites em quase todas as ocasiões da nossa vida: nos transportes públicos, nos locais de trabalho, nos centros comerciais, nos restaurantes, até nas emissões em direto — que pareciam ter um extra de glamour sempre que o apresentador puxava do seu maço de Chesterfield ou Marlboro. Esta é uma viagem, não aconselhável a menores de 18 anos, a uma era em que o fumo era tão (ou mais) glorificado que o exercício físico. 

For the english version here.

Fotografia de Pablo Curto. Styling de Alba Melendo.
Fotografia de Pablo Curto. Styling de Alba Melendo.

Não é humanamente possível contabilizar o número de cigarros (centenas? milhares?) que Don Draper fumou ao longo das sete temporadas de Mad Men, mas é relativamente fácil saber quantos cigarros é que Jon Hamm, o ator que deu vida à personagem, fumou: poucos ou nenhuns. Isto porque os cigarros usados pela produção não eram reais, mas feitos de ervas, isentos de tabaco e nicotina. Ao longo de 92 episódios, Mad Men retratou, de forma fidedigna, os bastidores de uma agência de publicidade dos anos 60, onde algumas das maiores contas eram, precisamente, de tabaqueiras, e onde o ambiente — uma mistura perigosa de trabalho em excesso, dinheiro, sexo e fama (e muita misoginia, sublinhe-se) — era povoado por uma nuvem invisível de fumo.

Quase todos os protagonistas fumavam cigarro atrás de cigarro, em quase todas as cenas, à exceção de Peter Campbell, interpretado por Vincent Kartheiser. Mad Men foi um sucesso, aplaudida pelo público e pela crítica. Mas terá sido, no geral, um péssimo exemplo para os espectadores? Talvez não. Como escreveu, aquando do final da série, um ex-veterano da publicidade (um dos verdadeiros mad men, se quisermos) no site da CNN: “Assim que Mad Men entrou na sua última temporada, perguntei-me se havia uma maneira de chamar a atenção para os danos causados por sete temporadas de tabagismo, num programa que moldou a maneira como nos vestimos e decoramos os nossos escritórios e as nossas casas poderia estar a fazer sobre o comportamentos do público jovem. E então, com o penúltimo episódio, veio o diagnóstico de Betty: cancro de pulmão agressivo. De repente o mundo fictício de Mad Men colidiu com os fatos sobre a saúde pulmonar e cardíaca das mulheres e a série de doenças mortais associadas às mulheres que fumam […] Estou realmente grato aos criadores do mundo fictício de Mad Men por terem permitido que as consequências das escolhas do mundo real afetassem uma das suas personagens mais icónicos. O programa foi repleto de marcos culturais e políticos, mas, no fim, deram-nos uma pequena janela de oportunidade para apreciar os resultados do vício do tabaco que floresceu no ecrã.”

Mad Men é o exemplo mais fácil quando o assunto é tabaco. É, se quisermos, o cliché óbvio, a associação esperada. Mas Mad Men não estava assim tão longe da realidade, mesmo a que estava fora das agências de publicidade. Até meados dos anos 70, nos Estados Unidos, e, mais tarde, um pouco por todo o mundo, era permitido fumar em todo o lado: cafés, restaurantes, lojas, mini mercados, centros comerciais, cabeleireiros, hospitais, escolas… A lista é infinita e, hoje, parece-nos tão improvável como algo saído de um filme… ou de uma série. Muitos de nós ainda se lembram desses “velhos tempos” em que os apresentadores de televisão se levantavam para apagar um cigarro num cinzeiro que estava por perto, ou de como os pivots dos noticiários se apresentavam de cigarro em riste, como se fosse um acessório mais — como se fosse uma gravata, ou um botão de punho.

Durante décadas, fumar foi um ato associado a algo “cool”, ou a algo que transmitia “glamour”, muito pela influência do cinema, que desde cedo adotou os cigarros como um prop extra nos filmes, e só quando estudos começaram a comprovar as consequências nefastas do ato é que vários governos decidiram impor restrições tanto à venda como ao consumo do tabaco. Em Portugal, foi em janeiro de 2008 que entrou em vigor a chamada “Lei do Tabaco”, aprovada meses antes, que veio mudar, para sempre, os hábitos sociais, e comportamentais, dos portugueses. A partir daí, fumar passou a ser proibido em espaços públicos fechados, uma mudança gradual provocada, acima de tudo, por questões de saúde pública, e também com a consciência de que era necessário respeitar os desejos, e as liberdades, dos outros, os não fumadores. Apesar de ter sofrido, de início, alguma resistência, a lei foi bem aceite, de forma geral, pela população. E se hoje, nós fumadores, temos saudades da altura em que podíamos acender um cigarro em qualquer lugar, também temos consciência de que agora, se o continuamos a fazer, nos sítios próprios para o efeito, é por nossa conta e risco, sem prejudicar terceiros. Não existem “os bons velhos tempos”, o futuro é agora, e pertence a todos nós — os que continuam a preferir o vício (mau, nocivo, eventualmente fatal) e os que nunca o tiveram, ou que já lhe viraram costas.

Tudo pode ser permitido, menos o respeito pela vontade de quem está ao nosso lado. Desculpa, Marlboro, até eu, que te sou fiel, tenho plena noção disso.

Ana Murcho By Ana Murcho

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