Sim, mas este texto não tem nada a ver com vestuário, nem com o uso do rosa às quartas-feiras.
Sim, mas este texto não tem nada a ver com vestuário, nem com o uso do rosa às quartas-feiras. Nem sequer tem a ver com a cor – esta que domina a edição que agarra ou outra qualquer. Este texto tem a ver com hierarquias sociais, escolares, com a fêmea-alfa e com uma realidade que, por vezes – muitas vezes –, é tudo menos pretty in pink.
Escrevo este texto numa quarta-feira, mas não visto rosa. Normal, tendo em conta que o meu grupo de amigas não tem uma "fêmea-alfa", por assim dizer - ou até poderia dizer que seria eu, mas não é o caso. É que as hierarquias de amizade no meu ambiente não se assemelham ao que Regina George veiculava naquele liceu do filme Mean Girls, em que as Plastic - aquele trio popular feminino que aterrorizava e fascinava os restantes estudantes - preconizavam a popularidade da adolescência e quem quer que quisesse pertencer ou ser aceite teria de agradar a George, a abelha-mestra. E isso significava usar rosa às quartas-feiras.
Mas a ficção não anda longe da realidade, ainda que esta autora que vos escreve possa não ser um exemplo: as hierarquias femininas existem no plano do companherismo e, ainda que usualmente sejam mais patentes em tenra idade, porque ainda nos estamos a descobrir e em busca da nossa tribo, isso é válido para qualquer faixa etária. Pertencer é vontade inata ao ser humano enquanto ser social e batalhar por isso é instintivo, o que inevitavelmente resulta em aceitar (regras) para se ser aceite. Nas ligações mais saudáveis, a igualdade é mais manifesta; nas menos, a amizade é tudo menos cor-de-rosa.
Porque é que isto acontece? Porque a aceitação num grupo, principalmente num grupo no topo da cadeia social, que admiramos, é inebriante e tolda julgamentos. Não é só o golpe na auto-estima que nos torna submissas e nos faz anular a nós próprias em prol de um grupo (ou pessoa-alfa), mas o denegrirmos os restantes por não fazerem parte do mesmo grupo - o tal síndrome Mean Girls. Um que não é exclusivo do ambiente escolar: temos tendência a deitar abaixo outras mulheres porque por qualquer razão nos sentimos ameaçadas por elas ou simplemente porque sempre nos habituámos a coscuvilhar nas suas costas e hoje quase que o fazemos por instinto, sem perceber o erro no comportamento. Não é preciso falar com um psicólogo para perceber que muitas vezes vemos outras do nosso género como rivais, regozijando no seu fallanço como forma de incrementarmos o nosso sucesso. Mas nós não somos melhores porque outras estão no seu pior - na verdade, somos piores por sentirmos que a desgraça dos outros é o nosso sucesso. No livro Odd Girl Out: The Hidden Culture of Agression in Girls (2002), a autora Rachel Simmons vocaliza esta concorrência feminina: "o silêncio está profundamente entrelaçado no tecido da experiência feminina. Só nos últimos 30 anos é que começámos a falar sobre as verdades distintas na vida das mulheres, abordando de forma aberta a violação, o incesto, a violência doméstica, a saúde da mulher... é agora tempo de quebrarmos outro silêncio: há uma cultura escondida de agressão entre raparigas na qual o bullying é epidémico, aparente e destrutivo", acusa Simmons. E perpetuar isso torna-se mais fácil em idades cegas por uma relação social, por amizades que façam o nosso valor social singrar.
Numa pesquisa levada a cabo pela psicóloga americana Carol Gilligan, a feminista demonstra que as relações desempenham no desenvolvimento social das meninas, sendo que, segundo a autora, as adolescentes assumem que o isolamento é um fator de perigo nas suas vidas, isto é, "um medo de que se estiverem à parte, serão abandonadas" (no caso dos rapazes, o receio é de se sentirem encurralados ou sufocados). A ideia é corroborada por Simmons, que coloca a intimidade como algo central nas relações femininas, sublinhando que "muito antes de se apaixonarem por rapazes, apaixonam-se umas pelas outras". É por isso que a hierarquia se manifesta de forma fácil. E a obediência é quase cega. Daí que "a relação em si é frequentemente a arma com a qual as batalhas entre raparigas são travadas", explica Rachel Simmons, o que, aliado ao medo da solidão se torna manipuladora: "apesar das coisas cruéos que aconteceram - o rol de e-mails ordinários e bilhetes anónimos, os rumores em surdina, os escritos nefastos em secretárias e cacifos, o desdenhar e os nomes feios - o que mais abalou as adolescentes foi o estarem sozinhas. É como se a ausência de corpos por perto com quem sussurrar e partilhar espoletasse nas raparigas uma tristeza e medo de tal modo profundo que parecia quase extingui-las", rematou a escritora. E é neste limbo do medo que escolhem permanecer e fazer parte de amizades abusivas e pouco saudáveis. É neste limbo de receio que a existência de uma fêmea-alfa, aparentemente segura de si e, por isso, muitas vezes ditadora, ganha espaço.
Mas por norma, nesta fase, nenhuma é segura de si: a falta de conhecimento - e aceitação - próprio faz com que cada elemento ceda à inveja e aos ciúmes, desprezando os seus pares por terem o cabelo, os olhos, os seios, o corpo que gostariam. E a partilha destas inseguranças e a ressonância das mesmas do outro lado gera uma intimidade que é facilmente arma de controlo, na qual a regra de usar cor-de-rosa às quartas-feiras é apenas o exemplo inofensivo de um comportamento muito mais nocivo e tóxico.
O que o sindrome Mean Girls nos mostra, também, é que numa fase da adolescência/juventude em que ainda nos estamos a descobrir, a necessidade de alguém que sirva de guia ou mentor(a) raia o desespero, ou melhor, a obsessão, e, por isso, a popularidade serve de barómetro para criar um role model que acaba por ser um exemplo nem sempre pelas melhores razões. A melhor maneira de contrapor isto é incutir nas jovens os melhores valores, princípios de igualdade, tolerância e respeito, para se sentirem com autoestima suficiente para serem assertivas quando a situação o pedir. E até podem continuar a usar rosa à quarta-feira: não porque (ou quando) é obrigatório, mas porque é manifesto de uma amizade onde reina o respeito e não uma abelha. Citando Madeleine Albright: "Há um lugar especial no inferno para mulheres que não ajudam outras mulheres".
Artigo ligado ao Pink Issue da Vogue Portugal, publicado em maio 2021.For the english version, click here.