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Encontrar um equilíbrio saudável entre vida profissional e pessoal tem sido uma enorme carga de trabalhos para a sociedade moderna. A ambição é que se chegue a um meio termo entre os dois — o projeto-piloto dos quatro dias de trabalho é disso exemplo. Já a realidade vai indicando que o melhor é aprender a navegar entre estes dois mundos, ambos necessários a uma vida mais digna.
Sinto o meu estômago embrulhar-se sempre que vejo emergir de dentro de mim a sentença: “Miguel, tens de trabalhar.” Miguel é o meu filho de 20 anos e é evidente que trabalhar é preciso. Mas a narrativa tem de ir mais além. É por isso que, por norma, rapidamente retifico o meu discurso: “Miguel, trabalhar é preciso para podermos viver sem preocupações, para sermos independentes, para podermos, enfim, viver a vida nos nossos moldes.” Também tenho por hábito trazer para cima da mesa a máxima de que o trabalho nos dignifica enquanto seres humanos — poucas coisas são tão prejudiciais à saúde mental como o ócio. Foi no âmbito dos seus estudos acerca da ética protestante que Max Weber, considerado um dos fundadores da Sociologia, afirmou que “o trabalho dignifica o homem.” Weber destacou que o trabalho se encaixava como uma das ações sociais mais nobres e dignas presentes na sociedade. Não obstante, a dignidade que é um direito da pessoa humana e, neste caso específico, da classe trabalhadora, deveria ser respeitada e exigida de forma a que a humanidade tivesse as mínimas condições de (sobre)viver em paz, inclusive, com a valorização social do trabalho. Segundo dados de 2023, em Portugal trabalha-se mais quatro horas por semana do que a média europeia, ou seja, no nosso país a duração média da semana de trabalho é de 40,2 horas. Os dados revelados pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) mostram que Portugal fica acima da média da zona euro (36,4 horas) e da União Europeia (37,1 horas). A remuneração média, porém, não reflete esses (elevados) números, encontrando-se até bastante abaixo da média da União Europeia: segundo dados da Pordata, a remuneração média anual (em PPS) da União Europeia estava nos 40.510, ao passo que a média portuguesa estava apenas nos 29.809 — a sigla em inglês PPS (Purshasing Power Standard) é uma moeda fictícia que serve para comparar os níveis de bem-estar e de despesa entre os países, anulando as diferenças dos níveis de preços. Ao nível do salário mínimo nacional, em 2016 Portugal ocupava o 11.o lugar da lista dos países da UE, com 711 PPS, com o Luxemburgo (1.615 PPS) e a Bulgária (491 PPS) a apresentarem- -se em primeiro e em último lugar, respetivamente. À boleia destes factos chegamos ao tema de um possível (embora pouco provável, como veremos mais adiante) equilíbrio entre vida profissional e pessoal. Estudos indicam que 68% dos trabalhadores portugueses prioriza o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, enquanto 34% vive na expectativa de receber ajuda por parte dos patrões de maneira a enfrentar o aumento do custo de vida. Os dados são do Workmonitor 2023, da Randstad, que revela ainda que praticamente 80% dos trabalhadores mais velhos acreditam que a sua idade da reforma está cada vez mais longe, devido à sua situação financeira atual. Cerca de 22% diz mesmo precisar de se manter empregado, atrasando a idade de aposentação. O trabalho dignifica o homem, sim, mas não quando o priva da sua vida.
Em média, três em cada dez pessoas sente dificuldade em manter o equilíbrio entre vida profissional e pessoal”, avança a psicóloga Catarina Graça, da Clínica da Mente. Explica que hoje já não se concilia a vida profissional com a pessoal, mas sim o contrário: “Tenta-se encaixar da melhor maneira possível a vida pessoal na profissional. Trabalham-se cinco em sete dias da semana e num ano inteiro de 365 dias apenas 22 são de férias efetivas.” Um artigo publicado no site Psychology Today assevera que “a maneira convencional de se pensar acerca do equilíbrio entre vida pessoal e profissional em termos binários apresenta um jogo cuja soma iguala a zero. Aumentar o tempo para passar com a família significa menos tempo para gerir a carreira. Mas se não cuidarmos da carreira, não seremos capaz de sustentar a família.” Em The Work-Life Balance Myth (2021), o autor David McNeff adota uma abordagem diferente. Ao mesmo tempo que defende que não existe equilíbrio entre vida profissional e pessoal, sugere uma alternativa a que apelidou de “seven-slice approach” (em português, a “abordagem das sete fatias”). Ao invés de olhar para o problema como trabalho ou família, McNeff descreve os sete domínios onde as pessoas gastam o seu tempo: família, vida profissional, pessoal, atividade física, intelectual, emocional e espiritual. Segundo o autor, as pessoas precisam de ver preenchidos estes sete pilares. “As consequências físicas do desequilíbrio entre vida profissional e pessoal são as primeiras a aparecer. O desgaste físico torna-se evidente quando, dia após dia, se mantém o mesmo nível de stress”, enuncia aquela psicóloga. Garante que o stress pontual faz bem — ajuda-nos a superar barreiras, torna-nos mais confiantes e seguros. No entanto, como resultado do ritmo alucinante e exigente vivido em praticamente todas as profissões, o stress começa a ser corrosivo, manifestando-se através do aparecimento de sinais de cansaço, dificuldades em dormir, falta de concentração, dores musculares... “Quando a situação chega a este ponto significa que a falta de bem-estar e de felicidade passa a ser transmitida por sinais somáticos e, por isso, o corpo avisa que algo está mal”, remata. Com a pandemia da COVID-19 o universo do trabalho viu aumentar a consciência sobre a importância deste balanço entre trabalho e vida pessoal. Numa pesquisa de 2022 efetuada pela Forbes Health, que contou com 1.120 trabalhadores americanos, a única coisa que rivalizava com a estabilidade financeira era este equilíbrio, com 90% dos inquiridos considerando-o “um aspeto importante.”
Diga-se que equilíbrio e flexibilidade se tornaram numa prioridade tão grande para os trabalhadores que muitos estão a levar a cabo mudanças de carreira com base nesses mesmos padrões. Este tem sido um dos principais impulsionadores da Grande Demissão, que só nos Estados Unidos da América viu mais de 50 milhões de pessoas deixarem os seus empregos em 2022. Dados do Relatório Anual do Índice de Tendências de Trabalho desse ano, da Microsoft, mostraram que mais de metade dos Millennials e da Geração Z que pediram demissão apontaram o desequilíbrio entre trabalho e lazer ou a falta de flexibilidade como motivo. É certo que, numa ótica mais abrangente, alcançar este balanço não é assim tão simples, a sensação é um pouco a de remar contra a maré, mas desistir é aceitar viver-se conformado com este estilo de vida. “Mudar assusta. A realidade pode ser má, mas pelo menos é uma realidade que se conhece. ‘E se eu mudo a pensar que vou para melhor e depois acabo ainda pior?’. O medo do desconhecido é um catalisador para a inércia em mudar. E o problema, muitas vezes, reside no facto deste despertar para a mudança acontecer tardiamente”, ressalta Catarina Graça. Este não é um medo sem fundamento. Um documento que analisou o mundo do trabalho, e que foi elaborado com a participação de 35 mil profissionais, de 34 países, demonstrou que há uma crescente preocupação face à incerteza económica que se vive no planeta. A nível nacional, quase 31% dos inquiridos diz que recebe ajuda por parte dos empregadores para fazer face ao aumento do custo de vida e 52,2% declara que gostaria de vir a receber esses auxílios. Já 27,3% diz que teria interesse em receber um subsídio de ajuda de custos. A possibilidade de ficar desempregado preocupa 48,1% dos participantes portugueses e 66,8% declara mesmo não enveredar por um novo trabalho que não lhe ofereça estabilidade. No entanto, “enquanto 63,8% dos portugueses receiam que a incerteza económica afete a estabilidade do seu trabalho, em termos globais a percentagem desce para perto de metade", referiu a Randstad, em comunicado. “Por vezes o cansaço, a infelicidade e a exaustão são tão grandes que não existem forças nem discernimento para se mudar de uma forma sábia e consciente. A impulsividade é uma enorme inimiga nestas situações. Mas a verdade é que num timing bem precoce, intuitivamente sentimos que algo não está bem. É o nosso barómetro da felicidade que começa a dar sinal. Não devemos ignorar isso. É fundamental termos o nosso conceito de felicidade bem definido para facilmente percebermos se nos mantemos próximos dele ou se paulatinamente nos afastamos sem dar conta”, esclarece a psicóloga.
O projeto-piloto dos quatro dias de trabalho, que surgiu entretanto em alguns países, visa reverter esta realidade. Em Portugal, aderiram 39 empresas do setor privado e cerca de mil trabalhadores. No Centro de Telecomunicações e Multimédia INESC TEC, os colaboradores já têm um horário flexível de 36 horas semanais. Tanto podem trabalhar a partir de casa, como no próprio local de trabalho. Em conversa com a SIC Notícias, Rui Campos, coordenador da empresa, referiu que em Portugal “há uma ideia enraizada” de que trabalhar muitas horas é sinónimo de produtividade, o que, no seu entender, é uma ideia “completamente errada.” O que muitas vezes acontece é que a falta de tempo para parar e perceber o que está errado — porque parar é visto por algumas culturas empresariais como um sinal de fraqueza —, faz com que haja um declínio de produtividade que traz um medo consequente de se perder o emprego. “É desta forma que muitas situações se arrastam culminando no tão falado burnout (ou esgotamento). Num quadro diagnosticado como burnout esgotou-se o plafond físico, psicológico e emocional para se viver nestas condições durante mais tempo. E, até certo ponto, ainda bem”, explicita Catarina Graça. E mantém: “Somos dotados de um mecanismo natural que nos afasta da dor e nos aproxima do bem-estar e do prazer e por isso acredito que se não nascemos neste mundo para viver infelizes e em constante esforço e sacrifício então a solução é mudar.” Há, contudo, uma nova geração para quem outros valores se erguem quando o assunto é trabalho. Quando inseridos num grupo de adolescentes facilmente percebemos a direção das suas prioridades e daquilo que ambicionam. No entanto, não deixa de haver algum contraste devido ao choque com a geração dos respetivos pais, aqueles que ainda consideram o primeiro emprego que se conquista como sendo o emprego para a vida. “Antigamente, mudar de emprego era muitas vezes mal visto. Hoje é sinónimo de desenvolvimento de competências, experiência profissional diversificada, ambição e evolução. A atual motivação para trabalhar reside no nível de estimulação oferecido pelas funções executadas — quanto mais estimulante e diversificado melhor”, sublinha Catarina Graça, que vê as novas profissões, como é o caso dos influencers e criadores de conteúdos, “embora ainda estranhas aos olhares de gerações passadas, como algo que pode ser positivo quando o tema é o almejado equilíbrio.” Considera mesmo que esta aderência à mudança e às tendências atuais pode ser “o início da quebra de um padrão que é tóxico, onde o tempo parece que passa cada vez mais rápido e pouco ou nada se viveu.” Na sua Teoria e Prática do Comércio, Fernando Pessoa registava que “não é o trabalho, mas o saber trabalhar, que é o segredo do êxito no trabalho. Saber trabalhar quer dizer: não fazer um esforço inútil, persistir no esforço até ao fim, e saber reconstruir uma orientação quando se verificou que ela era, ou se tornou, errada”. O trabalho dignifica, mas não justifica a existência. Vale ainda a pena questionar: trabalhamos para viver ou vivemos para trabalhar? Escreveu o romancista francês, Boris Vian, que “o trabalho é o ópio do povo, e eu não quero morrer drogado.” Será que alguém quer?
Originalmente publicado no The Coming Back Issue, em setembro de 2023.