Os direitos dos trabalhadores sexuais são direitos humanos.
Os direitos dos trabalhadores sexuais são direitos humanos.
© Jamie Nelson, Vogue Portugal, maio de 2019
© Jamie Nelson, Vogue Portugal, maio de 2019
A mais velha profissão da Humanidade, pelo menos assim nos diz o clichê, é a prostituição. Desde o inicio das civilizações humanas existem pessoas dispostas a vender e comprar a intimidade sexual. No entanto, desde a sua origem, a profissão é considerada como uma cruz que só os desesperados deverão carregar. Impregnada de vergonha e culpa, a prostituição sempre foi considerada como a última carta do baralho, reservada aqueles que não têm mais trunfos na mão. O mundo muda e com ele todas as nossas tradições, costumes e crenças. Na era digital que todos vivemos, o trabalho sexual em muito diverge da prostituição do passado, previamente reservado a becos escuros, está agora disponível de forma segura e consentida através de plataformas como OnlyFans. Mas ainda hoje, com todos os avanços tecnológicos e sociais, muitos se opõem à legalização do trabalho sexual, e com ele à desestigmatização da profissão que envolve a exposição corporal ao seu nível mais íntimo.
O mito da prostituição como a mais velha profissão não passa disso mesmo, um mito. A frase foi primeiro proferida por Rudyard Kipling, autor d’O Livro da Selva. Ainda que a expressão não corresponda à realidade, a prostituição não deixa de ser uma das atividades mais antigas alguma vez registadas. Há milénios que o trabalho sexual faz parte da forma como nos organizamos socialmente, aliás, assim que uma civilização desenvolvia qualquer tipo de riqueza material, a prostituição seguia-a quase imediatamente. A Bíblia é um dos mais primordiais registos de prostituição, mas não é do texto sagrado que a nossa noção de prostituição deriva. Ainda que os nossos ancestrais religiosos em muito afetem as nossas sensibilidades morais, nesta questão específica existiu uma forte campanha no final do século XIX. Nesta época a disseminação de doenças venéreas foi responsabilizada nos trabalhadores sexuais. Segundo os mitos vitorianos, a prostituição era o resultado de uma necessidade biológica nos homens e um defeito psicológico nas mulheres. Em grande parte, esta concepção continua a afetar a forma como pensamos o trabalho sexual: indivíduos que, sem qualquer outra forma de angariar dinheiro, socorrem ao seu último recurso.
O argumento que procura refutar os vestígios desta herança arcaica não é uma novidade. A luta dos direitos de trabalhadores sexuais materializou-se pela primeira vez na década de 70, associado ao movimento hippie, a prostituição era considerada como apenas mais uma faceta de liberdade sexual. Associações como COYOTE (Call Off Your Old Tired Ethics) ajudaram a normalizar a mensagem principal do movimento: sex work is work, ou trabalho sexual é trabalho. Como tal os seus trabalhadores deverão estar protegidos com os seus direitos para os salvaguardar contra a exploração e o abuso por parte de terceiros.
O primeiro passo para assegurar os direitos daqueles que se dedicam ao trabalho sexual é legalização. A penalização deste coloca o trabalho sexual num submundo onde a legitimidade da lei não chega. Não podendo muitas vezes sequer reportar quaisquer crimes porque implicaria uma confissão de certa forma. Adicionalmente, a criminalização força trabalhadores sexuais a estruturarem toda as suas atividades em redor da vigilância policial. A criminalização intensifica todos os estigmas associados à profissão, todos os argumentos que são contra a legalização são validados simplesmente pelo facto de que a lei se encontra desse lado. Existe ainda uma conexão pertinente de ser mencionada: pessoas de minorias raciais e sexuais acabam por sofrer desproporcionalmente no que se trata de consequências legais, apenas acentuando as injustiças às quais estão sujeitos. De acordo com a Amnistia Internacional, só nos Estados Unidos, 40% de todos aqueles presos por prostituição são afro-americanos, ainda que a etnia represente apenas 14% da população total.
A generalização desta conversa, que procura questionar onde está exatamente o problema com a prestação de serviços sexuais tem vindo a eclodir em anos recentes. O movimento vem aliado aos clamores de justiça racial e de género que se ouvem cada vez mais alto desde 2016, e que chegaram a um clímax com o ápice do movimento Black Lives Matter, em 2020. Adicionalmente, o desenvolvimento de plataformas como OnlyFans permitiu um nível de segurança e proteção de trabalhadores sexuais que por consequente levou ao crescimento da população envolvida na atividade. A aplicação, que permite a subscritores acesso ao conteúdo original de diferentes criadores, concedeu a muitos a oportunidade de escapar à violência associada a trabalho sexual. Através da plataforma o poder está na mão destes criadores, podendo escolher quem vê o conteúdo, assim como o preço estipulado.
Existem ainda outras aplicações, como a Peppr, que permite que aos trabalhadores sexuais garantir a sua segurança quando se encontram com clientes. A aplicação funciona de forma bastante assertiva, basta preencher aquilo que está à procura e uma lista de pessoas que cumprem esse serviço é sugerida. A Peppr garante ainda a segurança de trabalhadores sexuais, uma vez que permite que estes partilhem se a experiência que tiveram com um cliente foi ou não perigosa. A existência da Peppr só é possível onde o trabalho sexual é completamente legal, como no seu pais de origem, a Alemanha. A legalização do trabalho sexual não é algo que seja uma fantasia distante, é algo que entidades como a Organização Mundial de Saúde e a Amnistia Internacional aconselham como essencial para a defesa dos direitos humanos. Países como a Alemanha ou a Nova Zelândia já o concretizaram, mas no mundo encontram-se praticamente sozinhos. Portugal por si tem uma estratégia particular, descriminaliza a prostituição a todos aqueles que a praticam, mas criminaliza tudo o que a atividade pode envolver, por exemplo o arrendamento de um espaço para praticar a atividade.
"Quando se legaliza o trabalhador sexual mas se continua a criminalizar todas as facetas do seu trabalho, as suas vidas continuam em risco”. Nina Luo
O movimento Sex Work Is Work não se contenta com a mera descriminalização do trabalho sexual, procura sim a sua legalização total. Ao regulamentar a atividade, a prostituição, assim como a pornografia, caminham para um local de aceitação na sociedade. Ainda que a criminalização não seja um assunto em Portugal, continua a ser uma questão na maioria do mundo. E mesmo por cá, a resistência em legalizar a prostituição impede a sua verdadeira regulamentação sanitária e financeira. Em entrevista à Vox, Nina Luo, diretora do comité DecrimNY, uma associação que luta pela descriminalização do trabalho sexual nos Estados Unidos, constata “quando se legaliza o trabalhador sexual mas se continua a criminalizar todas as facetas do seu trabalho, as suas vidas continuam em risco”.
Direitos de trabalhadores sexuais são direitos humanos e garantir a todos aqueles que escolhem esta profissão o respeito é basilar. O ser humano não é o único animal que se dedica à prostituição, os chimpanzés e os pinguins já foram documentados a trocar sexo por bens: os primeiros por comida e os segundos por pequenas pedras que usam para construírem os seus abrigos. Mas o que aqui se discute aqui não é a origem zoológica da atividade, mas sim que, face à extrema banalidade do assunto, até no mundo animal, a sua normalização deveria ser inequívoca. Mas a derradeira hipocrisia encontra-se no facto de que, com 75 milhões de visitas diárias ao site de pornografia PornHub, entende-se que uma grande maioria de pessoas acaba por consumir algum tipo de conteúdo pornográfico. E ainda assim, mesmo que uma grande parte da população contribua ativamente para a indústria do sexo, a generalidade das pessoas persiste em manter os seus estigmas. Mas não será a hipocrisia uma forte componente da essência humana? Como aponta Sophia de Mello Breyner:
“As pessoas sensíveis não são capazesDe matar galinhasPorém são capazesDe comer galinhas”.
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