Numa altura em que somos aconselhados a ficar em casa, é interessante constatar que uma das tendências mais fortes da estação convida a despir, a mostrar, a revelar. Seja através de transparências, de decotes, de rendas ou de materiais translúcidos, esta primavera pede um novo sexy. Que é, acima de tudo, sinónimo de uma liberdade, e de um empoderamento, há muito desejados.
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Um dos retratos mais icónicos da atriz italiana Sophia Loren, com uma camisa de noite que deixa (quase) tudo a nu, circa 1955. © Getty ImagesUm dos retratos mais icónicos da atriz italiana Sophia Loren, com uma camisa de noite que deixa (quase) tudo a nu, circa 1955
Um dos retratos mais icónicos da atriz italiana Sophia Loren, com uma camisa de noite que deixa (quase) tudo a nu, circa 1955. © Getty Images
"O que aconteceria se uma das minhas raparigas tentasse ser sexy?" A pergunta foi lançada por Alessandro Michele, exímio em transformar mulheres emancipadas em versões modernas de avozinhas cool, após o desfile primavera/verão 2020 da Gucci, em setembro passado. Era uma espécie de provocação, e surgia após aquilo que muitos rotularam como um "acordar de quatro anos de dormência." Afinal, nos últimos tempos, a casa italiana tinha-nos habituado a um certo restraint, que ficava a anos-luz da sexualidade explícita de Tom Ford (diretor criativo entre 1990 e 2004) e da sensualidade bling-chic de Frida Giannini (que comandou a maison de 2006 a 2014). Mas não desta vez. Dúvidas houvesse, e o look que inaugurou o seu leque de propostas para a estação quente foi um macacão preto em cetim com a parte de cima feita de tule – tule transparente, entenda-se.
Se a peça, em si, já parecia uma afronta – pelo menos aos mais acérrimos defensores do chaos magic – os acessórios que completavam este inesperado combo (sandálias de tacão vertiginoso, meias vermelhas de rede, gargantilha de veludo com o que parecia ser um escaravelho colado) anunciaram o que já suspeitávamos. Esta é a forma do italiano gritar, alto e bom som, "a sensualidade está de volta." Não o disse assim, claro, mas justificou o volte-face como uma forma de se reinventar. "A Moda tem uma função: fazer com que as pessoas possam caminhar por um campo de possibilidades... sacralizando todas as formas de diversidade e alimentando as habilidades indispensáveis de autodeterminação." Que é como quem diz, o meu corpo é o meu templo e visto o que bem me apetecer.
"Tenho sempre de experimentar algo novo." Alessandro Michele
É por isso que, para esta temporada, a Gucci propõe uma série de elementos até agora ausentes da era Michele: decotes profundos, saias que parecem véus, rachas pronunciadas, mini-corpetes em renda, slip dresses realizados no que parece ser um mix de látex e renda, fatos em chiffon (chiffon transparente, lá está)... tudo a anos luz do look pensionista reformada a que nos habituou nestes cinco anos ao leme na maison italiana. "Tenho receio de me aborrecer", afirmou numa entrevista concedida após o desfile. "Tenho sempre de experimentar algo novo." E esse algo novo é, passe a redundância, um novo sexy, que vai em linha de conta com os tempos.
Numa era pós #MeToo, em que as mulheres recuperam o direito à escolha (dizer "não" é, mais do que nunca, tão importante e valioso como dizer "sim", e isso vale para qualquer área das nossas vidas) é importante não esquecer o poder disso a que os ingleses chamam de sexiness. "O maior choque foi [o facto de] Michele ter adotado a sensualidade. Ele tem preferido as distorções e as peculiaridades, mas não hoje", escrevia a jornalista Nicole Phelps no site da Vogue Runway, relembrando as referências à cena S&M, à herança equestre da casa, e a opção por elementos como o vinil, a renda e as rachas. Até as carteiras, como a Gucci Horsebit, que vê estampada a frase "Gucci Orgasmique", corroboram este novo mood.
Mas será que Michele está sozinho nesta nova forma de fazer roupa sexy? A resposta é apenas uma: não. Das cinzas dos últimos três/quatro anos ressurge uma mulher forte, que não tem vergonha em assumir (e mostrar) o seu corpo e que se sente bem ao fazê-lo – não pelos outros, mas por si. Depois de uma série de batalhas, da igualdade de géneros, à igualdade de tamanhos, raças, idades e orientações sexuais, chegou a altura de nos despirmos de preconceitos.
Isso vê-se, por exemplo, no papel que a roupa interior agora ocupa nos nossos armários. A lingerie, que até há pouco tempo servia apenas para usar escondida, resguardada, tem agora lugar de destaque nos looks mais importantes da estação – os sutiãs foram protagonistas nos desfiles da Dior, da Givenchy, da Lanvin, de Rejina Pyo, de Alexander Wang. É um novo power dressing. É uma declaração de independência. É uma nova forma de conquistar a tão desejada autodeterminação feminina – sim, através do sex appeal.
Exemplos? Veja-se Gwyneth Paltrow nos últimos Golden Globes: aquele vestido de tule era uma ilusão de ótica que ocultava a sua roupa interior, o seu corpo tonificado e as suas joias de milhões de dólares; ou Zendaya, nos Emmy, num corset verde em renda Vera Wang, a provar que já não é uma menina da Disney; ou então Lily-Rose Depp, cuidadosamente destapada por Chanel, nos últimos BAFTA. Obra do acaso? Nada disso. Aliás, está cientificamente provado que todas estas escolhas de guarda-roupa fazem parte de um "movimento".
Basta consultar o motor de busca Tagwalk (uma espécie de Google da Moda) para perceber que assim é. Tudo o que esteja intimamente ligado a sensualidade ocupa os lugares cimeiros das centenas de "Global Fashion Week Trends" estudadas por aquele site: cut outs (numa tradução direta, aberturas), quarto lugar; nudity (nudez), nono lugar; corset (corpetes), décimo primeiro lugar; bra (sutiã), décimo sétimo lugar. E não, nada disto tem a ver com sexo. É tempo de valorizar o artesanal (daí as rendas e os bordados), os tules e as crinolinas, as sedas e as organzas, as peles e os algodões orgânicos. Transformados em bustiers, em bodies, em saias lápis, em calçõezinhos XS (ou XL), em tudo o que justifique uma certa postura, e atitude, por parte de quem os usa.
É espreitar as coleções primavera/verão, e escolher: os hot pants de Tom Ford, os bodycon dresses de Thierry Mugler, as transparências de Loewe (e de Molly Goddard, e de Simone Rocha, e de Nina Ricci, e de Helmut Lang, e de Dolce & Gabbana) as rachas vertiginosas de JW Anderson e de Off-White, a lingerie com conotações dominarix de Olivier Theyskens... Já vimos isto antes? É possível. Mas agora vemo-lo de uma posição diferente. Continuamos a ter sensibilidade e bom senso. Só que agora temos um poder que anteriormente não tínhamos. É por isso que tudo isto é tão refrescante. E tão libertador. E tão sexy.
Artigo originalmente publicado na edição de abril de 2020 da Vogue Portugal.