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Tudo isto é rádio

23 Aug 2018
By Tiago Neto

Sensações, cenários, mutabilidade. Linhas que se agrupam num corpo melódico em que a indissociabilidade das letras constrói o todo. David Fonseca chegou aos 20 anos de carreira num presente nostálgico celebrado em disco, três anos depois de um Futuro que sempre o foi, e os ouvidos apontam-se-lhe sem restrição.

Sensações, cenários, mutabilidade. Linhas que se agrupam num corpo melódico em que a indissociabilidade das letras constrói o todo. David Fonseca chegou aos 20 anos de carreira num presente nostálgico celebrado em disco, três anos depois de um Futuro que sempre o foi, e os ouvidos apontam-se-lhe sem restrição.

© Rui Palma
© Rui Palma

As canções são muitas. Tantas. Tantas que, na verdade, terminado todo o processo de construção, não há espaço para lhes dedicar mais do que o sentido de pertença. Há temas festivos, há tranches melancólicas, escrita de blindagem, de apego, canções para cantar baixinho no quarto, de fones ao ouvido ligados ao discman, se recuarmos o suficiente. Há canções para cantar alto, de guitarra em mão com os amigos e outras, ainda, cujos minutos nos endereçam de volta a um qualquer espaço onde as luzes e as colunas nos habitam o sangue. David Fonseca, o músico, não acredita em discos de rótulo inteiro. “Acho que isso são ferramentas de marketing (…) É preciso é montar uma história porque os jornalistas são preguiçosos, em geral. E eu percebi isto porque, à medida que a música se vai tornando cada vez menos interessante para os media, eles deixam de querer saber onde é que o disco foi gravado ou porquê (…). Um disco sobre traição ou sobre o fim de um relacionamento ou sobre raiva, por exemplo, tenho a certeza absoluta que é só marketing. Ninguém escreve um disco a pensar que tem de ser sobre isso.” Radio Gemini, o seu novo trabalho, é o organismo vivo de prova. De som em som, palavra em palavra, por entre ritmos, momentos, recortes gravados no telemóvel, encontrou a fenda por onde respiram as 21 composições, sem manhas.

Ao todo são 60 os minutos que rodam, forrados a quotidiano num regresso a uma paixão antiga que alicerça a casa. A rádio, a playlist como premissa, a construção do todo roubada a dezenas de episódios diários, fizeram deste um trabalho com raízes há muito trabalhadas.

“Já tinha esta ideia há muito tempo. No primeiro disco a solo tinha feito uma coisa parecida mas não tão assumida, havia uma espécie de separadores mas era muito mais subtil. E aqui não, aqui foi mesmo all the way. Eu achava que era a única forma de realmente entender o significado do disco já que é feito de coisas tão dispares e ia soar um bocado a Frankenstein. No entanto não faria mal porque a minha maneira de fazer música é um bocado assim.”

Fluidez. Alcance. Coesão. A descrição pode ser curta mas a combinação das três palavras compreende todos os espectros de Radio Gemini. Como uma banda sonora flutuante que espera por pertencer a pedaços de vida. Mas nunca pode – ou não deveria, segundo o próprio – ser obrigatoriamente fechado num habitat. “Na música pop em geral não acredito nisso. Por exemplo, quando leio uma crítica sobre o meu disco, eu sei que foi feita por uma pessoa que se sentou e que o ouviu de uma ponta à outra, com atenção. A maior parte das pessoas não ouve música assim, a música é ouvida no sítio onde a pessoa está. Eu ouço muita música quando arrumo a cozinha, que é uma coisa que não gosto de fazer, mas enquanto a arrumo ouço música. Aí, apesar de tudo, não estou só a ouvir música, faço outras cosias também. Por exemplo, já ouvi o novo disco da Lykke Li umas cinco vezes, mas uma foi quando estava a ter uma conversa, outra a ler um livro, outra durante uma viagem, etc., nunca estive só a fazer aquilo e só à quinta ou sexta vez é que começo a perceber que há uma canção de que gosto mais. Acredito que a música pop não tem um sítio específico para ser ouvida. A sua grande vantagem é não ter de depender do espaço onde está. Se me disserem ‘ouvi o teu disco a caminho da praia’ – para mim está ótimo.”

© Rui Palma
© Rui Palma

Por trás, está um rol volumoso de inspiração com David Byrne à cabeça. R.E.M. ou Jeff Buckley prosseguem, logo atrás, numa linha de passado onde o gosto se formou, explica, “acho que até chegarmos aos 20 e tal formamos muito do nosso gosto musical e, quer queiramos quer não, reincidimos muito ao longo da vida nessas coisas. Tem a ver com fenómenos de crescimento. Dessa altura trago os Pixies, os Sonic Youth, Jeff Buckley, os R.E.M. – de uma forma louca. Ouvia aquilo incessantemente. Foi incrível assistir ao processo de uma banda alternativa passar a ser galáctica, inacreditável, e voltar a ser uma banda alternativa até desaparecer”. Hoje, no entanto, os ouvidos escaparam até paragens mais frescas. “Kanye West”, continua, “curiosamente, é dos artistas que mais ouço porque estou sempre à espera de ver o que é que ele vai fazer. Claro que as coisas que ele diz são uma cretinice, não tenho pachorra. Isso são estratégias. Acho que se ele tivesse um discurso politicamente correto nunca era notícia. Se pensarmos bem, o Trump utiliza a mesma tática. E isso ainda vai ser estudado mais tarde, mas no fundo, as redes são acerca de conflito, quanto maior, maior o lucro. Ele não deve ser puro, claramente, mas, de outro ponto de vista, há ali algum rasgo de genialidade”.

Pode, então, do caos brotar a genialidade? Pode. A composição anárquica caracteriza-o. Não há letras ou melodias em estrutura, não há cadernos na gaveta à espera de florescer no estúdio.

“Aquela coisa muito romantizada de escrever a letra e a guardar, comigo não existe. Não acho que as minhas letras sobrevivam fora das canções, não têm uma qualidade isolada. Fora das canções são meio ridículas porque não há nada que sustente aquilo (…). Acredito que fazer uma canção é sempre uma sorte do caraças porque ela não existia. E pode acontecer que a consigas escrever, mas percebes que já existe porque já ouviste tanta coisa. Tocas e aquilo soa-te familiar. Aí começas a perguntar aos amigos: ‘Já ouviste isto?’ Às vezes, quando não acontece, significa que a canção é muito interessante.”

Mas não existe uma tática concreta, explica. São as palavras, são melodias, baterias e coisas absorvidas pelo olhar que o guiam. “Quando compões – é como fotografar – nunca podes estar totalmente desatento. E é por isso que tenho o telefone cheio de cantarolice e guitarras e batuques porque tudo o que acontece – e isso ganha-se com experiência – gravo. E mais tarde ouço.”

É por isso que o sentido dos discos deve ser fluido, diz. A criação deve vestir-se de surpresa, de experimentação, liberdade. Seja um tema feito dentro de um avião que nos transporta a um reencontro de contorcer o corpo ou um postal sonoro que condensa uns minutos. “Quando fazemos um disco, não sabemos ao que vamos. Podemos ter uma ideia mas não é possível escrever um disco acerca de uma coisa só, porque para isso fazia sempre a mesma canção. Um disco demora muito tempo a fazer, principalmente quando se fazem como eu os faço, onde toco todos os instrumentos, são tudo produtos crafty, não é rápido de acontecer. Há mil decisões a tomar e quando se fazem as canções, perseguem-se as canções, não o todo (…) neste disco, o que persegui essencialmente, foi o fruto do momento. Ou seja, por norma, fecho-me numa casa e escrevo as canções todas de uma vez.” Radio Gemini fugiu à obsessão. “Este não foi feito assim, teve recurso a sintetizadores portáteis, quartos de hotel, movimento. Literalmente contava as histórias desse dia. No fim, é o reflexo de sítios onde estava. Há músicas que soam a discoteca precisamente porque estive numa discoteca, há outras que soam a campo porque o ambiente me enviou para aí. Canções noturnas, diurnas, são um cenário claro.”

Tudo o que sobra é a leveza. E o sim ou o não do grupo restrito a quem David Fonseca apresenta a construção. O manager, o irmão, os amigos “que me acompanham há muito tempo e que me podem dizer na cara se acharem que é uma grande merda. Se achar que a pessoa vai ser gentil comigo, não lhe mostro. Acho uma parvoíce. Eu até posso gostar da canção, mas quero é saber porque é que eles não. Nas canções há sempre quem goste e quem não goste, o pior é quando lhes é indiferente (…). Por isso é que quando faço um disco não estou interessado no que fiz antes. Pode acontecer é fazer um tema e pensar que já o fiz antes. Quero que as coisas sejam diferentes, sempre. Os discos não podem ser frutos de moda, e a indústria cai muito nisso. Eu ouvi isso a minha vida toda. Acredito que, se fores tu próprio – ainda que as pessoas possam não gostar – se lá puseres tudo o que és, não há forma de falhar. É sempre sólido”.

Ficha técnica

Realização: Ruben de Sá Osório.Maquilhagem e cabelos: Sandra Alves.

A Vogue Portugal agradece ao Pestana Palace, Sreya, Fábio Brochetta e à 35mais1 todas as facilidades concedidas.

*Artigo originalmente publicado na edição de julho 2018 da Vogue Portugal.

Tiago Neto By Tiago Neto

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