... Ou como uma jornalista de cabelo castanho escuro se transformou, por 24 horas, na versão platinada de Jane Russell.
... Ou como uma jornalista de cabelo castanho escuro se transformou, por 24 horas, na versão platinada de Jane Russell.
“Estou a entrar, com a minha mãe, na papelaria onde todas as manhãs compra o jornal, quando me apercebo que se dirige à senhora atrás do balcão com um ar desafiador. “Ó Sandra, a minha filha já veio aqui hoje?” Não estava à espera disto. Esta abordagem não estava no roteiro. A bem dizer, não há roteiro, mas confesso que sou apanhada de surpresa. “Não, D. Odete, ainda não a vi.” Apetece-me fugir. Em vez disso, cai-me a máscara. “Sandra, sou eu. Não me reconhece?” E assim começa uma aventura pelo fantástico mundo das louras, as que se divertem mais, são mais sexy, mais divertidas, mais ousadas, mais... Enfim, já todos sabemos o bê-á-bá da coisa.
Antes de mais, vamos deixar bem claro que nunca quis ser loura. Já pensei nisso, tal como já pensei subir o Quilimanjaro, mas nunca foi uma obsessão. Gosto particularmente da cor que a atriz Emilia Clarke usa enquanto Daenerys Targaryen, uma das personagens principais da série A Guerra dos Tronos, e foi a partir do momento que se tornou viral que comecei a questionar se valeria a pena passar por 735 horas de descoloração para atingir aquele tom. Não vale. Para isso, tenho a minha minicoleção de perucas, que me serve sempre que quero ser outra pessoa. Pelo menos, até ver. Porque isto de ser mulher também significa mudar de opinião a nosso bel-prazer. Daqui a um ano posso estar legalmente loura — e a escrever sobre isso.
“Porque é que a madrinha está loura?” A pergunta, desconfiada, materializa-se nos lábios da minha sobrinha de 2 anos. Estamos num complexo aquático onde, uma vez por semana, tem aulas de natação. Minutos antes, tinha-me descoberto no meio do público, numa janelinha superior que sobrevoa a piscina. Reconheceu-me imediatamente — estranhou-me imediatamente. Os seus olhos esbugalhados fixaram-se em mim, não como a figura familiar do costume mas como uma espécie de desenho animado. Durante breves segundos, ficou estática em cima do colchão verde. Impassível, alheia às ordens da professora. “Lu, Lu”, dizia o pai, exasperado. E a Lu, que na verdade se chama Maria Luísa, insistia em contemplar a cabeleira amarela que, do outro lado do vidro, lhe mandava sorrisos. Assim que a lição chegou ao fim, corri para os balneários. Lá vinha ela, mínima, no meio daquela confusão, perdão, daquela alegria infantil. Só que em vez de se lançar para os meus braços, ou pedir colo, fugiu. Agarrou as pernas da mãe com uma força que desafia o impossível e escondeu-se. Não tive outra opção senão esperar cá fora. Foi só depois do duche, e provavelmente depois de lhe ser garantido que eu não era um alien, que acedeu a aproximar-se. E aí começaram as questões, para quem quisesse ouvir. “Porque é que a madrinha está loura?”
Há, obviamente, quem consiga perceber que estou a usar uma peruca. Dentro deste grupo ultraperspicaz, as pessoas dividem-se entre quem tem mais que fazer e quem está realmente incomodado com isso. No café, dois rapazes ficam especados a olhar para mim, como se contemplassem uma assombração. Parecem achar graça, mas estão desconfiados. E depois há o grupinho de senhoras mais velhas, que encolhem os ombros e franzem a testa. Abanam a cabeça. “Olha para esta maluquinha”, parecem dizer. Só o dono da pastelaria parece lidar bem com a mudança. “Acho bem, acho bem”, atira, divertido. Percebe que não vem muito mal ao mundo por alguém mudar de cor de cabelo. Mesmo que seja falso. Pergunta a reação da minha mãe, claramente entretido com este pequeno fait-divers. “A minha mãe gritou, senhor Nuno.” É verdade. A minha mãe gritou. Avisada do que se estava a passar (tenho de escrever um testemunho sobre ser loura durante 24 horas), reagiu como se fosse a primeira vez que as expressões “Ana” e “peruca” partilham a mesma equação. “Tira isso, tira isso, tenho medo! Tenho medo!” Julgo que o medo, a existir, era das minhas olheiras profundas e do meu ar pálido, incapaz de disfarçar mais uma noite de insónias. Depois de três ou quatro “Mãe, vá lá”, acalmou. E começou a rir-se. Não esperava outra coisa dela. Já o meu pai... Bom, o meu pai não ficou tão confortável. Riu-se, até é capaz de ter dado uma gargalhada, mas a sua personalidade discreta impede-o de entrar nestas demonstrações públicas de... loucura?
"Miss Monroe tinha o cabelo tão escuro como Jane Russell, que lhe dá a contracena na longa metragem em questão, e foi apenas quando mudou de cor que a sua carreira pegou fogo. Dito isto, será que os homens preferem mesmo as louras?"
Enfim, em todo o caso, alinhou, e nem mesmo quando fomos ao supermercado, onde o número de seres humanos por metro quadrado era mais que muito, se foi abaixo. Devo lembrar que parte desta experiência foi realizada numa cidade pequena, onde habitam cerca de 25 mil pessoas. Toda a gente conhece toda a gente. Eu conheço cada vez menos (saí com 17 anos, tenho 37) mas os meus pais continuam a conhecer. Andar de um lado para o outro com a filha (única), que por acaso até tem umas sobrancelhas grossas, ultranegras, com uma peruca loura platinada pelos seios não deve ter sido pera doce. Obrigada mãe, obrigada pai.
A cultura popular está cheia de referências ao combate invisível louras versus morenas. Se a luta se perde nos tempos, o seu auge será o filme Gentlemen Prefer Blondes (1953), de Howard Hawks, que imortalizou Marilyn Monroe como a mulher mais sexy de sempre e transformou os diamantes nos melhores amigos das mulheres — se estiver a ler este texto e fizer parte dos 7% da população que ainda não assistiu aos três minutos de Diamonds Are a Girl’s Best Friend, já sabe o que tem a fazer. O mais curioso, no entanto, é que a mulher que o mundo passou a adular como a loura mais famosa de Hollywood nem sequer nasceu loura. Miss Monroe tinha o cabelo tão escuro como Jane Russell, que lhe dá a contracena na longa metragem em questão, e foi apenas quando mudou de cor que a sua carreira pegou fogo. Dito isto, será que os homens preferem mesmo as louras? O mito foi criado nos anos 60 por Shirley Polykoff, a versão feminina de Don Draper. “Do blondes really have more fun?” era a questão que o anúncio da Clairol (uma divisão da gigante americana Coty) colocava, em plena época de revolução sexual e de mentalidades. Por trás da pergunta estava o génio de Polykoff, que já tinha lançado o debate com a controversa campanha “Does she...or doesn’t she?”, que defendia as capacidades milagrosas da coloração capilar e que muitas publicações, como a famosa Life Magazine, recusaram, por ter um duplo sentido. O slogan, que na verdade era acompanhado pela frase “Hair color so natural only her hairdresser knows for sure” (uma cor de cabelo tão natural que só o cabeleireiro dela tem a certeza) catapultou as vendas de produtos capilares para números estratosféricos: antes da “bomba” Clairol, 25 milhões de dólares por ano, depois daquele ato transgressor, e no espaço de uma década, 250 milhões por ano. A marca, claro está, detinha metade do mercado. Todas as mulheres queriam ser louras. Como não haviam de querer? Jayne Mansfield, Tippi Hedren, Kim Novak e, claro está, Marilyn Monroe, brilhavam no grande ecrã, rodeadas de glamour e sex appeal. Se aceder ao seu estatuto de estrelas era impossível, porque não seguir-lhes os truques de beleza?
"Quando comprei esta peruca, em 2013, a intenção era mesmo essa: brincar com as coisas menos perfeitas, assumir um outro lado meu, explorar as infinitas possibilidades de ser loura sem ser, efetivamente, loura."
De volta a Lisboa. Ninguém está nem aí para mim. Ninguém. No trânsito, ninguém olha para mim. Na bomba de gasolina, ninguém olha para mim. No parque de estacionamento, ninguém olha para mim. Nas Amoreiras (quase) ninguém olha para mim. É certo que agora estou mais composta, tenho maquilhagem, que disfarça o meu ar cansado e as minhas feições morenas, mas ainda assim. Na fila do McDonald’s, na Fnac, numa rua movimentada da capital, que se enche com o sabor a verão, ninguém olha para mim. É curioso ver como nos fomos habituando à diferença e deixámos de perder tempo a reparar nas imperfeições alheias. Assim espero. Quando comprei esta peruca, em 2013, a intenção era mesmo essa: brincar com as coisas menos perfeitas, assumir um outro lado meu, explorar as infinitas possibilidades de ser loura sem ser, efetivamente, loura. E é isso que faço, agora.
Chego a casa do meu amigo António muito depois da hora combinada. O jantar já se transformou em happy hour. O ar quente entra pelas janelas, abertas de par em par. Devem estar perto de 20 pessoas, entre os amigos de sempre e os que chegam por acaso. Reparo que, ao contrário do habitual, ninguém vem ter comigo. Ninguém me grita “Olá, Cat!” nem me dá um abraço. Quem está a jogar computador continua a jogar computador. Quem está a discutir o estado da Nação continua a discutir o estado da Nação. Quem está a distribuir bebidas continua a distribuir bebidas. Apenas a Maria Ana, mulher do anfitrião, reconhece a minha “máscara” e me puxa para a casa de banho, curiosa. “Então, Cat?”, perguntou, “Hoje apeteceu-te mudar?” Decidimos que ia continuar assim, incógnita, até que, um por um, todos percebessem que era eu. Quase uma hora depois, o António senta-se ao meu lado. “Então?” Só segundos depois realiza que sou eu. “‘Tás a gozar! Quando é que chegaste? O que é que fizeste? Isso é o teu cabelo? É uma peruca, não é?” É. A sua reação acaba por espoletar a de todos os outros. Ao “Porque é que estás assim?” sucede-se “O que é que te deu?”, “Ficas muito gira” ou “Já pensaste pintar mesmo de louro?”. Até que um rapaz que nunca vi mais magro aparece do nada e pergunta, com uma voz arrogante, “Não vais assim para a rua, pois não?” Faz-se um silêncio quase sepulcral na sala. “Não. Eu vim assim da rua. E conto voltar. Queres vir também?” Posso estar ilegalmente loura, mas continuo com a resposta na ponta da língua. Sinto-me a versão humana da She-Ra. Sou a Cat Woman se a Cat Woman tiver cabelos louros por baixo do fato de látex. Impossible is Nothing. Etc. Infelizmente, a sensação não dura muito. E nem todos pensam o mesmo. “A Lu quer saber se ainda estás loura, porque se estiveres não vamos aí a tua casa. Ela tem medo.” Está certo.
Artigo originalmente publicado na edição de junho 2019 da Vogue Portugal.