Artwork de João Oliveira.
Junta-se o culto e acendem-se as velas. Como decidem os deuses da Moda, o que será uma tendência?
Numa sala escura, figuras encapuzadas sentam-se à volta de uma mesa circular. À luz de velas, estas misteriosas pessoas removem os seus disfarces para se revelar. Mostram-se as caras dos diretores criativos das maisons mais relevantes, dos editores das revistas mais conhecidas, das celebridades que dão o corpo à causa da Moda, dos recém-chegados influencers — todos reunidos. Mas qual a razão desta misteriosa reunião? A resposta deverá ser óbvia, a meses do final do ano, estas personagens reúnem-se para determinar quais as próximas tendências para o ano que se avizinha. Bem, esta é pelo menos a fantasia que é invocada quando pensamos no mistério das tendências. A forma como a Moda chega ao público tão determinada. No que parece ser do dia para a noite, surge uma nova tendência. O mistério por detrás dela é compreensível, a indústria é conhecida pela sua mitologia, algo que fomenta através das suas fantasias recreacionais. O mistério intencional é pai do enigma que surge em volta das fatídicas tendências. Na névoa desta incerteza, histórias emergem. Sim, algumas são parecidas à verdade, outras são fantasias puras.
“Tu vais até ao teu armário e selecionas uma camisola azul porque tentas comunicar ao mundo que te levas demasiado a sério para te preocupares com a tua roupa. Mas o que tu não sabes é que essa camisola não é azul, não é turquesa, não é lápis-lazuli, é cerúleo.” Conseguimos recitar o discurso de Miranda Priestly, d' O Diabo Veste Prada (2006), quase na sua integridade sem precisar de fontes secundárias. O filme, que proporciona uma versão objetivamente exagerada, cria também uma resolução para o mistério das tendências. “Também não sabes que, em 2002, Oscar de la Renta fez uma coleção de vestidos em cerúleo, e, depois, acho que foi Yves Saint Laurent, não foi?... que mostrou casacos militares em cerúleo. E depois o cerúleo apareceu rapidamente nas coleções de oito designers diferentes.”
O que a diretora da revista fictícia Runway descreve é uma das teorias que explica o nascimento das tendências — o chamada “trickle down effect". Segundo esta teoria, os designers no topo da hierarquia da Moda tomam decisões criativas baseadas no seu génio. Após comunicações divinas, estes profetas dizem-nos a nós, plebe, o que pode ser considerado bonito. Que tipo de calças devo usar? Que sapatos estão “in”? Será que uso acessórios ou estamos numa fase minimalista? Estas perguntas, às quais só um designer pode responder, fazem parte desta teoria. Eventualmente inspiradas pelo que se vê na passerelle, marcas mais acessíveis criam alternativas (os infames dupes) para aqueles que não conseguem sustentar o custo das peças de luxo. Assim continua o discurso de Miranda Priestly.
“Depois, passou pelos grandes armazéns e foi parar a um trágico canto casual onde, sem dúvida, o pescou de um qualquer caixote. No entanto, esse azul representa milhões de dólares de inúmeros empregos, e é um pouco cómico pensar que fez uma escolha que a isenta da indústria da Moda quando, na verdade, está a usar uma camisola que foi selecionada para si pelas pessoas nesta sala... de uma pilha de ‘coisas’.” Bem, esta ideia, ainda que obviamente exagerada para propósitos cinematográficos, não deixa de ter o seu quê de verdade. Uma visita a qualquer loja de fast fashion com um conhecimento rudimentar do que andou pelas passerelles na estação passada e todas as nossas certezas crescem— a influência do topo da cadeia alimentar da Moda sente-se na sua base.
Se a ideia é difícil de visualizar, leve-se a título de exemplo a coleção outono/inverno 2024 da Chloé. Esta foi a primeira de Chemena Kamali, a mais recente recruta numa longa (e lendária) linhagem de designers. Antes da entrada de Kamali, a marca encontrava-se numa espécie de impasse. As sensibilidades do boho dos anos 70 encontravam-se perdidas na visão dos designers que precederam a atual diretora criativa. Não que possam ser culpabilizados (Gabriela Hearst, na Chloé de 2020 a 2023, é uma dádiva divina ao mundo!), era apenas uma questão de tendências. O boho chic dos anos de 2010 chegou a um pico e, como passou o seu clímax, deixou de ser cool. Para uma marca que vivia da associação à estética, foi difícil encontrar uma nova identidade visual para chamar “casa”. Foi nisto que Kamali se destacou. O timing da sua posição, assim como a sua atitude rebelde face ao que podia ou não ser considerado interessante, fez com que a diretora criativa reanimasse o boho do seu túmulo. Este ato necromântico materializou-se através de vestidos maxi que flutuam à medida que as modelos andam, ou em capas de cabedal com folhos exagerados. As noções de boho de Kamali não eram apenas baseadas nas suas origens dos anos 70 — e muito menos no seu renascimento dos anos de 2010 — foram uma nova entrada na história da estética. A sua coragem idiossincrática inspirou mais do que um sucesso mediático, suscitou também várias marcas de Moda mais acessíveis a recriar algumas das suas peças.
Recriar é o verbo mais amoroso que encontramos para o que são óbvias cópias. Claro que o interesse desta história não é a imitação (desistimos de ser educados), mas sim a inspiração. Kamali fez algo de novo que sinalizou à indústria que uma mudança se avizinhava. O boho voltou oficialmente, não há como negar. O sucesso de Kamali e dos dupes acessíveis, assim como a presença da estética noutros desfiles — mais notavelmente a última estação de Saint Laurent — sinalizou o nascimento da tendência. Claro que este não é o único exemplo, o efeito de Miuccia Prada é palpável por toda a indústria, do mais alto luxo à mais acessível fast fashion. Das duas marcas sob a direção criativa da designer, a Miu Miu em específico tem sido alvo de inspiração de vários. A estética desta é facilmente imitável mas instantaneamente reconhecível. O estilo preppy, ligeiramente peculiar, com layering criativo, é jovial mas sério. Esta dualidade generalizou a popularidade do seu design e tornou-a uma sensação mundial.
Se estes argumentos e exemplos apoiam a tese d’O Diabo Veste Prada, esta não deixa de ser uma simplificação da realidade. Na verdade, tendências como aquelas criadas por Miuccia Prada ou reanimadas por Chemena Kamali são raras e envolvem bem mais que um mero designer. A partir desta lógica, consumidores não passam de marionetes controladas por designers e editores de Moda, dependentes da sua opinião para se vestirem todos os dias. Se seguirmos o discurso da Miranda Priestly, uma camisola azul não é roupa, é fascismo de Moda. A realidade do mundo sempre foi mais complexa que a sua representação cinematográfica. Especialmente na era das redes sociais, a ideia que só as pessoas que se posicionam no topo da hierarquia da Moda têm o poder de determinar o que é fashionable é antiquada.
Complementar à ideia de trickle down, chegamos à teoria do bubble up. Se, no passado, a forma como as tendências da Moda “desciam” às classes socioeconómicas se associava ao desejo latente das camadas inferiores subirem, esta nova teoria centra a atual realidade social. O advento das redes sociais fez com que os ídolos da Moda prestassem atenção, como nunca antes, às tendências que se desenvolvem entre subculturas. Ainda que estas sejam, desde os anos 60, um ponto de referência para a indústria da Moda — pense-se em estéticas como o punk ou o grunge —, plataformas como o Instagram ou o TikTok elevaram a noção para uma nova estratosfera. No entanto, o processo em si não mudou muito: as massas começam a usar um determinado estilo de roupa como um símbolo de originalidade. À medida que a popularidade deste cresce, a sua utilização estende-se para lá da subcultura inicial. Eventualmente, pessoas do “exterior” começam a participar na dita tendência, não como símbolo da subcultura, mas como uma mera declaração estética. Este movimento continua até chegar à classe socioeconómica mais alta. De forma a atender aos pedidos dos seus clientes, as marcas de luxo não têm outra solução senão reproduzir algo que não lhes é original, mas que certamente lhes será lucrativo.
Mais uma vez, recusamo-nos a deixar a imaginação explorar sozinha. Pense-se no caso de Virgil Abloh que, através da Off-White e posteriormente a Louis Vuitton, introduziu streetwear num mundo que previamente o rejeitava veementemente. Também os irmãos Gvasalia, através da marca Vetements, e posteriormente na maison Balenciaga, colocaram streetwear num pódio previamente reservado para invenções de Alta-Costura. O que estes fizeram não foi necessariamente fácil, mas foi natural para uma indústria que necessita de originalidade para sobreviver.
De baixo para cima ou de cima para baixo, o fenómeno das tendências é curioso, mas não é oculto. Por mais que queiramos culpar uma qualquer maçonaria, a sua explicação é sempre mais lógica com uma origem bem mais previsível. Mesmo as mais nebulosas não chegam do nada, nem são orquestradas por misteriosos cultos. Garantimos que não existem nenhumas reuniões a la Illuminati — não uma em que sejamos convidados.
Publicado originalmente na edição "The Mystery Issue" da Vogue Portugal, de outubro 2024, disponível aqui.