Há dez anos afastado do mundo da Moda, o enigmático e misterioso Martin Margiela aceitou o Jury Prize dos Belgian Fashion Awards com uma breve carta onde denuncia o ritmo alucinante da indústria e a forma como as redes sociais estão a destruir o efeito surpresa do processo criativo.
Há dez anos afastado do mundo da Moda, o enigmático e misterioso Martin Margiela aceitou o Jury Prize dos Belgian Fashion Awards com uma breve carta onde denuncia o ritmo alucinante da indústria e a forma como as redes sociais estão a destruir o efeito surpresa do processo criativo.
©Instagram/@maisonmargiela
Foi em 1988, na cidade de Paris, que o criador belga Martin Margiela fundou a casa homónima, conhecida mundialmente como Maison Margiela. Desde sempre envolto numa aura de enigma, mistério e anonimato, são poucas as coisas que, mesmo trinta anos depois, se sabe sobre o designer responsável por uma das Casas mais desafiantes e provocadoras da indústria da Moda. Mas uma coisa é irrefutável: Martin Margiela sempre esteve um passo à frente do seu tempo.
"O Martin Margiela é diferente de todos os outros designers porque nunca comprometeu o seu ponto de vista", defendeu Olivier Saillard, historiador de Moda, no documentário The Artist Is Absent. "Ele estabeleceu uma visão. E canalizou as suas energias na reconfiguração do formato da Moda. O contributo dele vai para além da introdução de novas peças - ele desafiou o sistema da Moda que, naquela altura, já era uma indústria muito preversa, governada pelo dinheiro".
Antes de muitos criadores desafiarem as normas convencionais e olharem para a Moda como um veículo de crítica, questionarem o formato tradicional das apresentações ou remarem contra a maré da pressão que o calendário do pronto-a-vestir simboliza, o criador belga sentou as suas modelos no meio do público durante a primavera de 1995, vendou os seus rostos nas duas estações seguintes e chegou mesmo a eliminá-las por completo dos seus desfiles - na primavera de 1998, foram substituídas por homens vestidos em batas brancas, que seguravam as propostas do designer em cabides e, durante o outono de 1998, por marionetas criadas pela stylist Jane How.
"Aquela primeira coleção do Martin Margiela foi incrível, não consigo descrever por palavras", revelou o empresário Geert Bruloot à revista AnOther, em 2015. "Foi uma experiência louca, muito underground. Quando o primeiro look surgiu na passerelle, não sabia o que pensar. Estava sentado ao lado da Marina Yee, uma amiga muito próxima do Martin, e ela reconheceu-se nas silhuetas de uma forma tão intensa, que começou a chorar. Segurei-a nos meus braços e, uns três ou quatro looks depois, comecei a perceber. Era diferente de tudo aquilo que estava a acontecer naquele momento, era tão forte e extremo que, assim que aparecia na passerelle, queríamos comprar tudo imediatamente", contou.
MARGIELA / GALLIERA, 1989-2009 ©Palais Galliera
Para Martin Margiela, que sempre procurou o anonimato - até aos dias de hoje, são poucas as pessoas que viram o seu rosto, e os registos fotográficos do designer são praticamente inexistentes -, a fama que vinha associada à indústria da Moda era tão secundária como irrelevante. Vinte anos depois de ter fundado a marca homónima, o designer belga afastou-se da direção criativa da mesma, sem nunca se saber ao certo quem mantinha a chama da Casa acesa. Foi em 2014, com a notícia de que John Galliano seria o novo Diretor Criativo da Maison Margiela, que todas as peças se compuseram.
"Ele encontrou-se comigo para beber um chá", contou John Galliano, numa entrevista ao The Sunday Times Style, sobre o momento em que conheceu Martin Margiela. "Acabei por me esquecer de todas as perguntas que lhe queria fazer". Depois de horas de conversa, o fundador da maison acabou por deixar o seu valioso conselho: "John, tira o que quiseres do ADN desta Casa, protege-te a ti mesmo, e depois faz o que quiseres com ela".
©Getty Images
Dez anos depois de se ter afastado da indústria, o criador belga foi reconhecido com o Jury Prize nos Belgian Fashion Awards, "pela sua carreira e o seu impacto óbvio na história da Moda, nas coleções de hoje, e em todas aquelas que ainda estão para vir". Apesar de não ter comparecido à cerimónia, Martin Margiela aceitou o prémio por via de uma breve carta.
"Sinto-me muito grato e verdadeiramente honrado por receber este prémio, aqui, naquele que é o meu país", escreveu o criador. "Especialmente quando penso que deixei o mundo da Moda há dez anos atrás". Apesar do afastamento, a visão de Martin Margiela, tal como o seu trabalho, não ficou esquecida com o passar do tempo, como o próprio reconheceu neste raro comunicado.
"Muitos defendem que a Moda tem uma memória curta, e que está obcecada pela atualidade e pala novidade", continuou Margiela. "Mas algumas exposições recentes sobre o meu trabalho exemplificaram o contrário". Depois de uma exposição no MOMU Antwerp, o trabalho do designer seguiu para o Palais Galliera, em Paris, cidade onde fundou a marca homónima - "um belíssimo tributo a um período de trabalho árduo e dedicação, que começou numa tenra idade e durou mais de trinta anos, até 2008", como o próprio escreveu.
A nostalgia da memória, como seria de esperar, não impediu Martin Margiela de fazer aquilo que sempre lhe correu com intensidade nas veias. "O ano de 2008 coincidiu com o momento em que senti que já não conseguia suportar a pressão e as exigências deste trabalho. Ao mesmo tempo, começava a lamentar cada vez mais a overdose de informação das redes sociais, que destruíam o 'entusiasmo da espera' e cancelavam o efeito surpresa, algo tão fundamental para mim", explicou.