O que acontece à união familiar quando a casa deixa de ser só casa? O que acontece à união familiar quando o lar é obrigado a ser, também, escritório e escola? O que acontece à união familiar quando estamos todos juntos, a toda a hora, todos os dias? A Vogue mergulhou na questão.
O que acontece à união familiar quando a casa deixa de ser só casa? O que acontece à união familiar quando o lar é obrigado a ser, também, escritório e escola? O que acontece à união familiar quando estamos todos juntos, a toda a hora, todos os dias? A Vogue mergulhou na questão.
© Fotografia de Karén Khachaturov.
© Fotografia de Karén Khachaturov.
Há uma reação comum que acontece quando dizemos a alguém que estamos em casa dos nossos pais há mais de um mês, sem nunca ter saído à rua. “A sério? E não estás farta?” Entre um corriqueiro ahahah, a resposta é uma qualquer variação disto. “Não, nem por isso. Sendo-te sincera, pensava que ia ser pior. Nunca passámos assim tanto tempo em casa, os quatro, juntos, a toda a hora, todos os dias. Na minha cabeça, ia dar azoa mais discussões. Discussões, como quem diz. Claro que temos os nossos momentos. Ainda assim, acho que estamos bem.” Mas cada caso é um caso, e este caso não passa disso mesmo – de um caso, no meio de tantos, parecido com uns e diferente de outros. Cada um é como cada qual, e cada qual é como é. Cada família é uma família, e cada família é como é – e, fora de expressões cliché, cada um de nós, e cada um dos nossos agregados familiares, está a viver este momento de forma diferente, a lidar de forma diferente, a experienciar de forma diferente, a sentir de forma diferente. “De uma maneira global, este período trouxe consigo um espírito de união e solidariedade”, começa por explicar Catarina Lucas, psicóloga e diretora técnica do Centro Catarina Lucas, à Vogue. “As pessoas voltaram-se mais para as suas famílias e para a sua importância, todos correram para os seus países e para as suas famílias, o que nos demonstra essa mesma importância. Todavia, passar muito tempo juntos, associado ao facto de existirem poucas distrações neste momento, poderá aumentar algum nível de intolerância e irritabilidade no relacionamento com aqueles com quem partilham casa, e é preciso não deixar que fatores situacionais afetem globalmente a relação entre todos.” Uma relação que, segundo um estudo publicado pela Deco Proteste a 27 de abril, tem sofrido os efeitos dos sucessivos estados de emergência – de acordo com o inquérito, seis em cada dez pessoas que coabitam com outras têm passado “por algumas situações de fricção, sobretudo devido à partilha de tarefas domésticas ou por estarem no mesmo espaço durante todo o dia”. Para além destes, como revela a associação, as diferenças de opinião sobre as medidas de prevenção a adotar face à COVID-19 “são outros rastilhos incendiários” e, nos agregados familiares com crianças, “o acompanhamento escolar é também foco de conflito”. Ainda assim, e “apesar das naturais tensões, 45% dos portugueses que coabitam com outros revelam que as restrições à mobilidade tiveram um impacto positivo no relacionamento familiar, sobretudo em agregados que incluem casais com filhos menores.”
"Tudo isto acaba por fazer com que as pessoas estejam menos disponíveis para o outro. Apesar de estarmos no mesmo espaço, e termos maior convivência, não quer dizer que estejamos mais disponíveis." Neusa Patuleia, psicóloga clínica e terapeuta familiar.
Como defende Neusa Patuleia, psicóloga clínica e terapeuta familiar, “neste contexto, em que a maior parte das famílias tem de lidar com novas rotinas e novas exigências, com ajustes constantes em relação às suas responsabilidades profissionais, parentais e até filiais, a maior convivência não é necessariamente sinónimo de maior disponibilidade para a relação, e pode ser precisamente o contrário”. Para a especialista, a gestão e conjugação do trabalho à distância, das tarefas escolares, das atividades mais lúdicas, da confeção das refeições e da gestão da casa, todas elas a acontecerem num mesmo espaço que, na maioria dos casos, é reduzido, leva a que as pessoas se atropelem umas às outras, e atropelem os espaços e os tempos umas das outras. “Obviamente que isto traz tensão e conflituosidade”, esclarece Neusa, referindo que as preocupações inerentes à situação que hoje vivemos acabam também por ter impacto na disponibilidade emocional das pessoas. “Tudo isto acaba por fazer com que as pessoas estejam menos disponíveis para o outro. Apesar de estarmos no mesmo espaço, e termos maior convivência (na perspetiva de que estamos debaixo do mesmo teto), não quer dizer que estejamos mais disponíveis. Acho que o que acaba por acontecer agora – obviamente que existem exceções, e claro que nem todas as famílias funcionam da mesma maneira – e daquilo que vemos nas redes sociais, em vários artigos e em desabafos que as pessoas acabam por dar, é que as pessoas se sentem assoberbadas, sem tempo para estar com o outro.” Ainda assim, Neusa faz a ressalva: “Não quer dizer que as famílias não se possam reinventar e encontrar soluções para fazer uma melhor gestão de tudo isto, e encontrar aqui momentos e tempos de qualidade. Obviamente que podem. Esse é o grande desafio.” Para Cristina Valente, psicóloga, autora (o seu mais recente livro, Coaching Emocional para Pais, foi editado pela Manuscrito em março deste ano) e mãe de dois adolescentes, “a quarentena é um teste, uma prova de fogo, da saúde familiar”. Como a própria explica, quando confrontadas com uma adversidade, “as famílias que se entendem e que se respeitam, no sentido de entender que cada um tem o seu próprio ritmo, as suas próprias preferências, as suas próprias necessidades”, e que “já tinham essas ferramentas, que já tinham um clima emocional saudável”, vão sentir um impacto muito menor. “Para simplificar uma coisa muito complexa, vamos ter três tipos de família”, refere. “Vamos ter as famílias que vão passar mal, porque não entendem esta flexibilidade e, não tendo as ferramentas, vão ficar por aí, a circular em problemas de confinamento, de interação diária, de falta de tolerância. Vamos ter outras que, já tendo treinado determinadas ferramentas internas, vão conseguir levar isto de uma forma menos pesada. Nunca perfeita, mas menos pesada. E, depois, um terceiro e outro grupo que, embora não tendo nunca tido ferramentas ou nunca tendo tido esta atenção específica de inteligência emocional, vai aproveitar esta adversidade para crescer enquanto família.”
"As expectativas dos pais vão ter de ser anuladas. Eu digo mesmo, não façam qualquer tipo de expectativa, vivam o dia a dia e mantenham o necessário, que é o respeito pelo espaço e pelo ritmo de aprendizagem." Cristina Valente, psicóloga e autora.
Perante este cenário, é possível que estejamos menos unidos àqueles com quem partilhamos a cozinha, a mesa de jantar e o sofá? É possível que os nossos laços de família se estejam a desvincular, mais e mais, a cada dia que passa? “Não lhe chamaria desunião, mas sim irritabilidade e impaciência”, diz Catarina Lucas. “Passar muito tempo com alguém trará sempre algum nível de saturação. Por isso, alguns truques poderão ser importantes, nomeadamente reservar tempo para a individualidade, ter espaços onde se possa permanecer algum tempo sozinho, guardar algumas horas para atividades ‘nossas’ e não partilhadas, ou conversar com amigos, de modo a ouvir outras pessoas e outras experiências. Importa ainda realizar um exercício de tolerância, pois neste momento precisamos muito de ser tolerantes com o outro, precisamos de fomentar a entreajuda, ser menos exigentes. Cada um, à sua maneira, está a fazer o melhor que sabe.” Como explica Neusa Patuleia, para evitar situações de tensão e conflito familiar, é necessário “aceitar esta situação, compreender que é natural que existam maiores tensões e maiores conflitos, e que as pessoas estejam mais assoberbadas” e “definir rotinas ajustadas a cada família”. Outro ponto essencial, diz a psicóloga clínica e terapeuta familiar, é estabelecer e dividir tarefas e responsabilidades. “Acho que é importante que todos tenham as suas responsabilidades e as suas tarefas, na medida do possível. Para além de aliviar a tensão e não sobrecarregar um dos elementos, dá um espírito de envolvimento de todos, porque se todos trabalhamos para o coletivo, se todos temos tarefas e responsabilidades inerentes ao coletivo, todos sentimos que somos parte. Dá-nos logo uma responsabilidade acrescida de que, se isto resulta, é porque eu também faço parte. Dá um espírito de união e de pertença.” Como explica Cristina Valente, garantir uma convivência positiva em família passa por “entender as necessidades do outro, do seu espaço e do seu tempo, uma vez que as rotinas do dia a dia ficaram todas confinadas num espaço comum”, e adotar uma estratégia que a psicóloga e autora chama de plug in, plug out. “Foi algo que aprendi com um colega e amigo americano, que sempre trabalhou a partir de casa”, refere Cristina, que também trabalha nesse mesmo registo há vários anos. “Ele mora em Denver e tem duas casas, uma ao lado da outra. Uma é a casa da família, a outra é o escritório dele. Quando ele estava em casa, com a mulher e com os filhos, ele estava a 100%, brincava, não atendia telefones, não falava com o trabalho, zero. E quando ia para a vivenda ao lado, para o escritório, estava completamente focado.” Ainda que com a devida flexibilidade – porque sem ela, diz a psicóloga e autora, será complicado –, é importante ter blocos de tempo “em que não somos interrompidos e em que também não saímos do estado de flow”, bem como “espaços em casa que a restante família entenda como o espaço da outra pessoa; uma vez que nem toda a gente tem casas grandes, pode até ser na cozinha, mas tem de ser criada uma zona de trabalho, nem que seja delimitada no chão com fita-cola”. Para além de tudo isto, é importante ter atenção às expectativas que são criadas no seio familiar. “Nós estamos a transpor o mundo corporativo e o mundo escolar para dentro de casa, de um dia para o outro, sem qualquer tipo de treino, e é impossível termos as mesmas expectativas”, defende Cristina, fazendo especial referência aos resultados escolares dos mais jovens. “As expectativas dos pais vão ter de ser anuladas. Eu digo mesmo, não façam qualquer tipo de expectativa, vivam o dia a dia e mantenham o necessário, que é o respeito pelo espaço e pelo ritmo de aprendizagem.”
"Passar muito tempo com alguém trará sempre algum nível de saturação. (...) Importa realizar um exercício de tolerância, pois neste momento precisamos muito de ser tolerantes com o outro, precisamos de fomentar a entreajuda, ser menos exigentes." Catarina Lucas, psicóloga.
A par com todas estas estratégias, garantir uma convivência mais positiva, como refere Catarina Lucas, passa também por praticar a gratidão – e não só. “Desenvolver a empatia”, “ser tolerante e ter um espírito de entreajuda”, “fazer turnos, sempre que necessário, seja para estudar com os miúdos, seja para as tarefas domésticas ou tantas outras coisas” e “permitir algum espaço individual ao outro, fazendo também atividades conjuntas” são alguns dos pontos que a psicóloga sugere que cada um de nós tenha em mente. Tudo isto, claro, sem nunca esquecer a comunicação. “É importante potenciar a partilha de sentimentos, encontrar momentos onde haja partilha, onde haja a possibilidade de as pessoas poderem falar sobre aquilo que estão a sentir e fazer o balanço do dia”, refere Neusa Patuleia. “Não é porque estamos todos juntos que vamos abolir esta partilha de como é que foi o nosso dia. Apesar de nos irmos atropelando no espaço, cada um está a viver aquilo que está a fazer, e a desenvolver sentimentos associados a tudo isso que não estão aos olhos dos outros. (...) É muito importante as pessoas poderem ter espaço na família, e no meio de toda esta situação, para poderem continuar a conversar sobre aquilo que sentem. Eu digo continuar, porque é desejável que isto aconteça sempre. Se não acontecia, então, neste contexto, continuar a não acontecer potencia ainda mais situações de tensão e de isolamento.” A ideia da psicóloga clínica e terapeuta familiar é também partilhada por Cristina Valente. “Eu diria que, neste momento, é muito importante as pessoas dizerem aquilo que sentem e aquilo que precisam – diferente daquilo que desejam. A separação destes dois conceitos é muito importante, e é uma coisa que eu ensino às famílias normalmente. Isto é a primeira coisa. A segunda coisa, na questão das emoções, é eu tomar consciência de que estou com medo, e que o medo é uma reação importante no meu sistema, como proteção. Neste momento, as pessoas sentem medo, mas como não sabem identificar esta emoção como parte do seu sistema, que tem uma função, que deve ser usada num sentido positivo e não negativo, manifestam-na de muitas formas.” Entre elas, refere, estão a censura, o julgamento, a crítica, a raiva e até mesmo a euforia – e reconhecer que o medo tem várias manifestações, diz a psicóloga e autora, “dá-me mais tolerância para entender que se a mim o medo me dá para a euforia, provavelmente ao meu filho dá para ficar stressado ou ter insónias”. Para Cristina Valente, é igualmente essencial olhar para aquilo que está nas nossas mãos, concentrar a nossa energia naquilo que controlamos e perceber que, “quando eu entro em modo ação, o meu medo desaparece”.
"Eu diria que, neste momento, é muito importante as pessoas dizerem aquilo que sentem e aquilo que precisam – diferente daquilo que desejam." Cristina Valente, psicóloga e autora.
Como defende Neusa, “as relações familiares devem servir de suporte e de apoio para conseguirmos lidar com tudo isto, para nos ajudarmos mutuamente a melhor gerir todas estas circunstâncias e todas estas emoções associadas”. E, para isso, “é preciso uma boa comunicação, tentarmos colocar-nos no lugar do outro e ajustar expectativas.” “Principalmente na conjugalidade, há muito a ideia de que ele me conhece, ou que ela me conhece, e já devia saber o que eu quero e preciso. Não, não mesmo. É preciso uma comunicação clara, objetiva. Às vezes nem nós sabemos aquilo que precisaríamos para ficarmos melhores, quanto mais o outro”, diz a psicóloga clínica e terapeuta familiar. Individualmente, em casal e em família, cada um de nós vai sentir de forma diferente. Seja a união ou a saturação. É algo que se torna ainda mais claro quando coloco a questão a dois amigos. A primeira experiência cai: “Sinto- me próxima da minha mãe porque nos temos só uma à outra. Falamos muito, interessamo-nos muito pelo dia uma da outra, e preocupamo-nos muito. Mais do que o habitual. E, do mesmo modo, porque só nos temos uma à outra, saturamos muito uma da outra. Mais do que o habitual também.” E depois, a segunda: “Sinto que fomos criando uma rotina adaptada a esta situação. Temos sempre momentos que fazemos companhia sem necessariamente falar muito! No início, acho que me custou mais. Mas parece que já estou tão preso neste loop de quarentena que me moldei à situação, e parece que agora até estamos mais tranquilos, mentalizados de que estamos nesta situação e que temos de nos tolerar um bocado. Mas claro que dia sim dia não embirramos por coisas parvas.” Antes da nossa conversa terminar, Neusa refere que “ter abertura e disponibilidade é, de alguma forma, o desafio para podermos ultrapassar esta fase tão difícil para todos nós e subsistir enquanto famílias”. Nestes desafios, diz, é importante “encontrar recursos e estratégias para que todos nos possamos sentir melhor e mais equilibrados, para que possamos levar a cabo todas as responsabilidades que temos, mantendo a harmonia familiar, dentro do possível, e ajustando expectativas, sempre, porque não vamos poder ter os momentos que tínhamos, como tínhamos”, e descobrir “formas de nos reinventarmos e de estarmos connosco mesmos, para depois podermos estar de forma mais harmoniosa com os outros, e para a família poder subsistir da melhor forma.”
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