Com a chegada da edição de junho de 2019 da Vogue às bancas, tem a palavra Sofia Lucas, diretora.
"Tinha oito anos, e o meu melhor amigo, Steve, um canadiano de 25 anos, ia regressar a casa depois de um ano hospedado na nossa casa enquanto estagiava na empresa do meu pai. Foi provavelmente o meu primeiro desgosto amoroso."
Bruna Marquezine © Branislav Simoncik
Bruna Marquezine © Branislav Simoncik
O Steve era para quem eu corria depois da escola, para contar o meu dia, todos os dias. Era a pessoa mais doce do mundo, era quem me contava mil histórias das mil viagens que já tinha feito, foi quem me ensinou a falar inglês e a quem ensinei a falar português. Achei que iria ser assim para sempre. Lembro-me do sabor, literalmente amargo, que senti quando me contou que tinha de se ir embora, de volta para o Canadá. Aquela mancha no mapa que ele me tinha apresentado como o país dele, e que eu queria tanto conhecer um dia, ganhava uns contornos monstruosos e eclipsou o resto do mundo, porque me roubava o meu melhor amigo. E o meu mundo ficou virado ao contrário, de um dia para o outro. Podia jurar que aquele sabor amargo nunca mais iria passar e que os dias sombrios depois da partida dele nunca mais me iriam deixar rir às gargalhadas. Achei que iria ser assim para sempre.
Até que um dia chegou pelo correio uma grande encomenda, embrulhada em papel pardo, com um selo do Canadá. A minha mãe esperou que eu regressasse da escola para a abrir, convencida que era um presente para mim. Garantia-me que era de certeza uma boneca que o Steve me tinha enviado. E de uma mãe nunca se duvida. Rasguei o papel com a mesma força da felicidade que não cabia em mim e, num segundo, descobri um objeto castanho que parecia uma figura chinesa, acompanhada de uma carta de agradecimento aos meus pais. Uma estatueta?!! E horrível? A minha mãe, não sei se pela fealdade da estatueta ou pela minha desilusão, demorou a reagir. Quando finalmente retirou a peça da caixa, surgiram, por debaixo de um monte de papéis, dois livros e uma carta dirigida a mim. E, num segundo, a minha felicidade estava de volta, depois da reviravolta, e até a estatueta já era menos feia e eu a pessoa mais injusta. A carta falava de saudades, a palavra que eu lhe tinha ensinado, e explicava o porquê dos livros que me enviava. Era o meu primeiro Le Petit Prince, escrito em francês, o livro que tinha marcado a infância dele e que queria muito que eu conhecesse e, em inglês, e magnificamente ilustrado, o livro Upside Down Day, para que eu o lesse nos dias que me corressem menos bem. O livro, lançado em 1968, tinha sido criado por Julian Scheer, o responsável pelas relações públicas da NASA e por toda a comunicação que deslumbrava os americanos, e o mundo inteiro, pela nova era da corrida ao Espaço. Só alguém com uma noção plena do Espaço podia resumir tão bem, aos olhos de uma criança, que a importância de um dia "virado ao contrário", num todo, não é realmente assim tanta.
Inevitavelmente, o tema desta edição fez-me viajar no tempo e à montanha-russa de emoções que senti naquele momento, que não podiam ilustrar melhor a mensagem do próprio livro. Aprendi que por cada upside down na nossa vida, haverão sempre vários rightside up e só depende de nós a forma como escolhemos ver, e perspetivar, os acontecimentos, as pessoas que nos rodeiam, a vida em geral. Quase 40 anos me separam daquela altura e, hoje, com uma noção menos pueril, sei que não faz sentido culpar pessoas ou "mercúrios" retrógrados, mas sim fazer o pino, se preciso for, porque dar a volta às situações, por mais adversas que sejam, vem com o pack all included de estarmos vivos.
Se o mundo está realmente virado ao contrário? Aprovam-se leis anti-aborto que condenam a penas mais pesadas as mulheres vítimas de violação por fazerem um aborto do que os próprios violadores, leis que condenam à morte homossexuais, leis que liberam homens que espancam mulheres, juizes que decidem que uma mulher de minissaia ou uma mulher que bebe álcool merece ser violada, um aquecimento global que não aquece nem arrefece governos, governos cada vez mais corruptos... talvez este seja afinal o mundo como sempre foi. Talvez este seja o momento de o virarmos ao contrário. Se devemos ser todos coletes amarelos? Nunca defenderia aqueles coletes como trendy, no design e ainda menos na violência, mas todos podemos ser qualquer peça de roupa, com qualquer cor do arco-íris, ou até a total ausência de roupa, porque é a posição que assumimos que importa. Acredito que, se todos “fizermos o pino” pelo que está certo, a noção de cabeça erguida é só uma questão de perspetiva. Talvez a única que pode pôr o mundo na posição certa.
Most days are, to say the least, Righside Up. Most. Nearly all. (almost most). But… there are some upside down days. And what is an Upside Down day? It's a day when bees won't sting, bells won't ring, salt won't shake, glass won't break, clocks won't tick, glue won't stick… So remember… when rollers won't skate, and day won't break, that's when you can say it's an Upside Down day.
Upside Down Day, 1968, escrito por Julian Scheer, ilustrado por Kelly Oechsli.