Comportamento | © iStock
Precisamos de rever esta coisa do amor-próprio. Revistar este conceito, analisá-lo e, quem sabe, dar-lhe uma nova roupagem. Fala-se a torto e a direito deste tipo de amor do eu para com o eu, mas será que o mesmo tem sido posto realmente em prática?
Faz hoje 23 dias que não toco numa gota de álcool. De repente, parece que vamos dar início a uma sessão de Alcoólicos Anónimos, mas não. Nem eu sou alcoólica (embora penda para uma personalidade aditiva), nem este é um texto sobre álcool ou adições. E, mesmo assim, este início tem tudo a ver com o tema do amor-próprio (ou da falta deste). Resolvi parar de beber após uma tarde de co - pos que podia ter acabado muito mal e que apenas acabou menos mal. Ainda assim acabou mal o suficiente para que, no dia seguinte, entre a ressaca física, sentimentos de culpa e um estado emocional caótico, eu tenha tomado a prudente decisão de não voltar a consumir bebidas alcoólicas — pelo menos não nos próximos tempos. Laura Nedel, neuropsicóloga e psicóloga clínica no Hospital Cruz Vermelha, define a pessoa com amor-próprio como “aquela que escuta o próprio corpo, que descansa quando está cansada, que busca alimentar o corpo físico com alimentos saudáveis, mas às vezes também se permite deliciar com as suas comidas favoritas. Uma pessoa com amor-próprio pede ajuda quando precisa, perdoa a si mesma quando falha, reconhece quando não é gentil consigo mesma e procura dar a si uma pausa no autojulgamento – mesmo (ou principalmente) quando as coisas não correm da melhor forma.” Na teoria, entendemos o conceito. Acontece que o cérebro é genial a dar-nos a volta. Eu considero-me exímia a convencer-me a mim mesma de coisas. Por exemplo, um copo de vinho no final do dia sempre foi considerado pelo meu cérebro como algo que eu merecia. Afinal, trabalhei, não faltei à aula de ballet, tenho a casa limpa e arrumada, logo aquele copo de vinho não é mais do que um gesto de amor-próprio. E estaria tudo certo. Mas quando dou por mim a analisar o meu consumo, a questionar os dias em que posso beber e a negociar aqueles em que não é suposto, aí abre-se espaço para um potencial problema futuro e então a voz da razão não pode nem deve ser ignorada em nome do prazer.
O amor-próprio não tem (só) a ver com o bem que algo nos sabe, mas é sobretudo acerca do bem que algo nos faz. É por isso que tantas vezes ouvimos dizer que as coisas que nos fazem bem têm, por norma, uma aparência aborrecida. Trabalhar o amor-próprio pode parecer, de facto, chato. Porque amor-próprio tem tudo a ver com disciplina, com compromisso connosco mesmos e tal implica, muitas vezes, fazermos escolhas que não queremos e abdicarmos de outras que queremos muito. Arriscaria dizer que mais importante do que o amor-próprio é o auto-respeito. O respeito por nós próprios conduz-nos a decisões mais acertadas, mesmo que estas não sejam as mais excitantes. Laura Nedel valida esta ideia: “O amor-próprio e o respeito por nós mesmos andam hand-in-hand, ou seja, estão estritamente conectados. Respeitarmo-nos e amarmo-nos implica estar atento às nossas necessidades, estipular limites saudáveis e não sacrificar o nosso bem-estar para agradar aos outros. Lembrando sempre que não temos aquilo que merecemos, mas sim, aquilo que aceitamos.” Questiono porque é tão difícil sermos bons para nós mesmos. “Cobramo-nos em demasia, determinamos objetivos irrealistas, fazemos comparações injustas no sentido de não percebermos que cada indivíduo tem a sua bagagem de vida, as suas capacidades, e está a percorrer a sua própria caminhada, seja por necessidade de validação externa ou por interiorizarmos que a responsabilidade de tudo o que acontece à nossa volta é nossa.” A psicóloga acrescenta à receita o autoconhecimento, crucial para “que possa existir uma relação saudável e positiva entre o ‘eu’ e o ‘eu que desejo ser’”. O Google sugere 3 650 000 000 de resultados, no espaço de 0,40 segundos, para a palavra “self-love.” É muita gente com muita vontade de se “amar mais.” No Instagram e no Tik Tok, a repercussão deste termo é imenso: vídeos com dicas de “self-love” e textos ou frases inspiracionais caem-nos no colo a uma velocidade atroz. “O conceito de amor-próprio tem sido muito falado atualmente, mas na prática poucas vezes é aplicado”, assevera a psicóloga. Este implica um estado de respeito e apreciação por nós mesmos que é desenvolvido através de atitudes que sustentam o nosso crescimento físico e psicológico. Laura enumera alguns pilares do amor-próprio, como “a autoconsciência, que remete a dar atenção a si mesmo, percebendo as próprias emoções, sensações e pensamentos. A autoaceitação, que envolve aceitarmos que possuímos atributos positivos e não tão positivos, de modo a valorizarmos as nossas qualidades e trabalharmos os nossos pontos fracos. E o autocuidado, que está relacionado com a capacidade de protegermos e cuidarmos de nós mesmos.”
Espantamo-nos quando percebemos que aquela top model com uma “vida de sonho” não tem assim tanto amor-próprio. É que a nossa autoestima não depende necessariamente das nossas características físicas ou conquistas, mas sim da nossa perceção sobre elas: “O problema é que esta autoperceção é desenvolvida, em parte, a partir da apreciação dos outros por nós”, soma Laura. E esclarece: “Durante a infância, temos necessidades básicas de atenção, afeto, reforço positivo, proteção e estabilidade. Contudo, cada um de nós tem um grau diferente dessas necessidades e, por vezes, os nossos pais/cuidadores primários acabam por não atender a estas demandas. Ou porque não deram apoio o suficiente, não tiveram empatia, não estavam presentes, não reconheceram o nosso esforço… Assim, assumimos uma culpa inexistente e uma necessidade de nos fazermos merecedores de algo que nos faltou. Gerando, na vida adulta, grande sofrimento por tentar reparar o passado, buscando afirmações externas que reforcem o nosso valor.” E por afirmações externas leia-se, também, as redes sociais, com todas as suas necessidades próprias. Nunca se falou tanto em amor-próprio e parece que nunca estivemos tão longe de o conquistar. A revista Time empresta o seguinte título a um artigo sobre o tema: “Porque é que o amor-próprio nos está a deixar solitários?” O The Guardian, por sua vez, traz à discussão o narcisismo como sendo uma das consequências desta obsessão em “amarmo-nos.” Não é mentira que estamos cada vez mais isolados, mais virados para o nosso umbigo. Encontramo-nos perante uma sociedade egocêntrica, mimada até, e estes são motivos mais do que suficientes para que se reveja o conceito de “amor-próprio” e para que lhe sejam concedidos novos significados. “Há muita polémica [em torno deste conceito]”, confirma a psicóloga. “As conceções sobre o amor-próprio têm sido polarizadas como boas (associadas ao bem-estar) ou más (associadas ao egoísmo e ao narcisismo). Apesar de frequentemente equiparados, o amor-próprio e o narcisismo são completamente opostos. Pessoas com traços narcisistas podem parecer extremamente autoconfiantes e grandiosas, mas isto é apenas uma forma de compensar pelas suas profundas inseguranças. O narcisismo não advém do amor-próprio, mas sim, de uma forma de autoaversão.” Em todo o caso, a realidade é que a sociedade está, sim, muito mais egocêntrica. Segundo Laura, há razões específicas para isto: “Estudos mostram que o crescimento global económico pode ter contribuído para esse egocentrismo. Alguns pesquisadores observaram que jovens adultos que viveram durante tempos difíceis são menos narcisistas do que aqueles que atingiram a maioridade durante os booms económicos. Acredito que esta associação ocorre em parte devido ao aumento da pressão para termos mais sucesso, o que gera uma sociedade mais competitiva (e também mais insegura). Penso que um dos principais facilitadores desta relação é a Internet, mais especificamente as redes sociais. Acabamos por nos preocupar mais com o que os outros têm ou o que estão a fazer do que com as nossas próprias vidas e isto acaba por gerar comparações injustas e constantes que nos fazem sentir infelizes e insuficientes com aquilo que temos. Consequentemente, desenvolvemos comportamentos de hipercompensação, ou seja, tentamos reforçar a nossa autoestima através de diversos comportamentos, como estar a postar constantemente informações sobre as nossas vidas, as nossas melhores fotos e vídeos.” Habitualmente, nas interações sociais, um indivíduo fala sobre si mesmo cerca de 30% do tempo. Nas redes sociais, as pessoas falam sobre si mesmas pelo menos 80% do tempo. Assim, quando recebem uma notificação de feedback positivo (um like ou um comentário), há uma sensação satisfatória. Receber um feedback positivo estimula o cérebro a liberar dopamina (substância associada à recompensa e ao prazer), recompensando o comportamento ligado às plataformas sociais, perpetuando assim o hábito de as utilizar. É por estas e por outras que o culto do auto-respeito é tão ou mais importante que o amor-próprio. Em suma, a equação é simples: ao sermos compassivos com nós mesmos, tornamo-nos recetivos a aceitar e a amar outros. Se tivermos uma relação negativa com nós mesmos, o impacto emocional deste estado impedir-nos-á de nos conectarmos genuinamente com outras pessoas. O amor ao próximo não pode existir sem o amor e o respeito próprios. Só podemos dar aquilo que temos. Mas, antes de mais, temos de perceber e saber o que é amarmo-nos. E saber que, mais vezes do que aquelas que desejaríamos, gostarmos de nós passa por fazermos precisamente aquilo que não nos apetece fazer. No meu caso, deixar de beber. Chamem-lhe amor-próprio ou auto-respeito. Eu chamo-lhe trabalhar a minha melhor versão.
Originalmente publicado no Love & Hope Issue, publicado em dezembro de 2023 e disponível aqui.
Most popular
Relacionados
John Galliano nas suas próprias palavras: O designer reflete sobre uma década extraordinária na Maison Margiela
23 Dec 2024