Fotografia: Getty Images
Um “uniforme” pessoal bem construído vai além do sentido de estilo e torna-se num símbolo de identidade. As roupas falam por quem as usa, do minimalismo desinteressado à extravagância calculada, e sussurram — ou gritam — mensagens que vêm bordadas em tecidos luxuosos ou t-shirts discretas.
O rabo de cavalo prateado, os óculos de sol pretos que escondiam o olhar, a camisa puramente branca com colarinhos marcados, o fato escuro e as luvas que cobriam parcialmente as mãos: o “uniforme” perfeitamente pensado de Karl Lagerfeld nunca foi uma mera combinação de peças. Lagerfeld vivia e respirava Moda, mas o seu próprio estilo manteve-se surpreendentemente constante, especialmente considerando que foi o responsável por reinventar a Chanel estação após estação e que posicionou a maison na sua era mais entusiasmante e fascinante. Mas porque é que alguém no comando de uma indústria construída tantas vezes sobre a mudança e a novidade escolheria manter-se visualmente tão igual, sem quaisquer inovações? A imagem do kaiser (imperador, em alemão) era uma declaração assertiva de identidade, uma armadura cuidadosa que permitiu que, mesmo que fosse reduzido a silhuetas, a sua essência distintiva pudesse ser reconhecida muito para lá da Rue Cambon, a sede da Chanel, e chegasse a qualquer parte do mundo. Com autoridade, mistério e um sentido inabalável de si próprio, o criador alemão construiu um legado muito além do seu look quase monocromático mas, simultaneamente, fê-lo ancorando-se nele.
Independentemente de ser uma declaração de estilo ou uma masterclass de branding, Karl mostrou-nos o poder de ter uma imagem distintiva, e não foi o único a fazê-lo — veja-se o exemplo de Tom Ford e o seu imaculado fato ou de Anna Wintour com o icónico bob e enormes óculos de sol. Por certo que estas grandes figuras da Moda fizeram-no de forma muito mais estilosa do que nomes como Steve Jobs e Mark Zuckerberg, com os jeans e a gola-alta preta do primeiro ou a t-shirt despojada do segundo. Estas peças que os génios de Silicon Valley usam diariamente tornaram-se os espelhos das suas identidades visuais, ainda que com muito menos pompa e circunstância quando comparados com Lagerfeld, Ford ou Wintour. O estilo assinatura — que aqui poderemos convenientemente apelidar de “uniforme” — pode ser visto como redutor para alguns, porém tal nem sempre é verdade e, quando bem aplicado, faz sobressair uma persona inigualável. Contudo, e antes de tudo isso, vale a pena explorar os conceitos de coesão entre grupos, já que o “uniforme” pode trazer tanto um sentido de comunidade como o poder de distinção.
“A homogeneização do vestuário é algo muito comum à espécie humana ao longo da história, que tem a ver com o sentimento de pertença a um grupo. O ser humano é gregário por natureza, tal como muitas espécies, porque a sobrevivência depende disso.” É Charo Mora Solanilla quem faz esta observação. É especialista em cultura de Moda, já ocupou cargos de editora em revistas como Woman, Yo Dona e Metal Magazine, contribuindo também para títulos como Vogue Espanha, Harper's Bazaar Espanha e Marie Claire, para além das funções que tem acumulado como docente. Mora sublinha que “os seres humanos sobrevivem e aprendem em grupos, uns com os outros, a evolução funciona em grupos. [...] A função de homogeneização da aparência é, portanto, um paradoxo, pois é o que permite distinguir o indivíduo de um grupo, sacrificando a sua individualidade, ao mesmo tempo que permite distinguir esse mesmo grupo de outro.” Assim, a função do uniforme no seu significado mais literal é precisamente o facto de valorizar “o coletivo em detrimento do individual.” Tal é verdade, acrescenta, quando olhamos, por exemplo, para as “tribos urbanas [...] especialmente os roqueiros, os mods, os punks, que, embora longe de eliminarem o indivíduo, são epidermicamente reconhecíveis e gostam de encenações de massas. [...] Todos com trajes semelhantes, reivindicando, em uníssono, a sua distância e diferença em relação ao que é estabelecido pelo sistema.” No entanto, e como nos explica, à medida que a sociedade foi evoluindo e os tempos mudaram — especialmente com a chegada do século XX no Ocidente e após a Segunda Guerra Mundial, — os valores de individualidade foram exaltados, nascendo assim a “ideia do indivíduo como a força motriz acima do grupo”, passando o uniforme a ter uma conotação menos positiva. “Embora o final do dia em qualquer zona de negócios do mundo, como Wall Street, tenha as ruas tomadas por homens vestidos de fato e gravata e mulheres de fato com calças ou saias, é claro que o uniforme de alguma forma sobrevive, embora se materialize agora de forma diferente e em grupos distintos. O vestuário desportivo e escolar são exemplos", como refere a especialista, dos “redutos deste costume atávico no ser humano”.
Mas, se o uso de um mesmo uniforme por um grupo pode ser visto como uma redução ou homogeneização da identidade, em alguns casos é igualmente possível que, no espectro oposto, seja o epítome desta. O kaiser poderia ser apenas o espelho do estilo dandy, mas a sua autotransformação sempre teve em mente aspetos estilísticos e comerciais que lhe permitiram mostrar a sua personalidade de forma muito consciente e distintiva, seja porque a sua camisa branca vinha acompanhada de outros símbolos visuais chamativos ou por uma personalidade vincada e perspicaz — ríspida, até. Na verdade, o seu estilo de assinatura nasceu algures no final dos anos 90 e início dos anos 2000, após uma perda de peso dramática, motivada pelo desejo de caber nos fatos esguios desenhados por Hedi Slimane. “Havia uma nova linha de Hedi Slimane na Dior que exigia que se fosse magro. Diziam: 'Queres isto? Volta a ser do tamanho dos teus ossos'. Por isso, perdi 88 quilos e nunca mais os recuperei’”, explicou numa entrevista.
Assim, e falando em identidade, Charo Mora define-a como “um desenho no exterior de algo que me descreve, que diz quem eu sou. Pode ser honesto e fiel, algo como uma segunda pele, ou, pelo contrário, o indivíduo pode manipulá-lo para dar uma imagem de si próprio que lhe interessa, seja para se destacar, para passar despercebido ou para se enquadrar num ambiente.” “A definição de um visual através de elementos constantes”, como nos conta, “resolve as dúvidas de como aparecer em público, ou em privado, ou numa entrevista. Nesse sentido, é a máscara perfeita.” O conceito de “máscara” é essencial, e este estilo de assinatura permite “eliminar a surpresa e aparecer sempre como se espera ou com aqueles traços distintivos que identificam o indivíduo, que o tornam inconfundível; vestido de preto, com um certo tipo de óculos, com um certo penteado ou corte de cabelo”, quer isto seja perfeitamente autêntico ou meticulosamente pensado. Mais acrescenta que mesmo que nos casos de Steve Jobs ou Mark Zuckerberg, o estilo adotado seja “minimalista e altamente funcional”, caracterizando-se por um "não-estilo", essas escolhas refletem uma identidade própria. Talvez possamos então dizer que a inexistência de algo a torna, precisamente, esse “algo”. Esses looks, que estão fora das tendências e, por isso, são considerados intemporais, explica, não possuem traços marcantes que desviem a atenção. Trata-se de uma imagem neutra que serve para enquadrar uma personalidade sem criar distrações. “É um look que permite ao utilizador passar despercebido na multidão, mas que, ao subir ao palco para discursar, não compete com ele, permitindo-lhe brilhar”, remata. No fundo, e em boa sabedoria portuguesa, “não basta sê-lo, há que parecê-lo” também, e a roupa tem um papel crucial nesta imagem, quer se use para eliminar mensagens ou para agir como um megafone que as pretende amplificar. E, se existe um processo psicológico que faz o público associar determinados códigos a um estatuto ou posição, o mesmo processo acontece quando pensamos em nós mesmos. O impacto que o vestuário tem nos processos psicológicos do utilizador foi definido como “enclothed cognition”. O termo foi criado quando dois investigadores conduziram uma experiência em 2012 com batas brancas de modo a mostrar o efeito psicológico do vestuário. De acordo com a sua hipótese, o vestuário tem um impacto nos processos psicológicos de uma pessoa porque ativa conceitos abstratos através do seu significado simbólico. Sobre o estudo, Charo Mora acrescenta que “a investigação de Adam e Galinsky é muito interessante, revelando como o ‘hábito faz o monge’, sublinhando a dimensão simbólica do vestuário. É claro que uma bata branca está associada a um médico, um cientista ou um laboratório. Na mesma linha, poderíamos colocar os hábitos monásticos ou as vestes religiosas, pois a carga simbólica é muito forte. As calças de ganga podem ter essa força simbólica, mas com um lado mais democrático, pois são usadas por Steve Jobs, por um trabalhador agrícola dos anos 50 ou por um motociclista. Ou o fato de treino desportivo, que passou da marginalidade para o luxo hoje em dia.”
Já em Karl, na dança entre a imagem pública — estóica, imponente e confiante — e o homem privado marcado pela vulnerabilidade e inseguranças ocultas, — mas sempre espirituoso — encontra-se uma história profunda de autoreinvenção. Entre uma teia de relações complexas, de rivalidades ferozes e de uma curadoria da sua imagem pública, emerge uma figura de génio, adornada de excentricidades e controvérsias, mas velada por algo que se esconde por detrás dos óculos de sol e do cabelo impecavelmente penteado. Lagerfeld, um mestre do controlo e do storytelling, permitiu apenas vislumbres da sua verdadeira essência, deixando grande parte do seu mundo interior envolto em mistério, conhecido apenas através dos fragmentos que escolheu revelar. Mas não há ninguém que não conheça o seu estilo. O rabo de cavalo prateado, os óculos de sol pretos que escondiam o olhar, a camisa puramente branca com colarinhos marcados, o fato escuro e as luvas que cobriam parcialmente as mãos... nas palavras do próprio, “Sou uma caricatura de mim próprio, e gosto disso. É como uma máscara. E para mim o Carnaval de Veneza dura todo o ano.”
Publicado originalmente na edição "The Big Book of Trends" da Vogue Portugal, de setembro 2024, disponível aqui.
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