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Quando Fernanda Torres subiu ao palco dos Globos de Ouro, no mês passado, com um vestido preto Olivier Theyskens, pensava em História. Não só tinha acabado de se tornar a primeira brasileira a ganhar o prémio de Melhor Atriz num drama naquela cerimónia (numa grande reviravolta em relação às outras nomeadas, Angelina Jolie, Nicole Kidman, Kate Winslet e Tilda Swinton), como a sua mãe, Fernanda Montenegro, também tinha sido nomeada na mesma categoria em 1999, pelo drama Central do Brasil.
A atriz dedicou o prémio a Montenegro, um titã do palco e do ecrã brasileiros, agora com 95 anos. “Ela esteve aqui há 25 anos, e esta é a prova de que a arte pode perdurar na vida, mesmo em momentos difíceis”, disse Torres no palco. “Este é um filme que nos ajuda a pensar como sobreviver em tempos difíceis.”
Na angustiante história verídica Ainda Estou Aqui (I'm Still Here), Torres interpreta Eunice Paiva, que trata uma casa à beira-mar feliz e cheia de música, com cinco filhos, no Rio de Janeiro, durante a ditadura militar brasileira. Um dia, em 1971, o seu marido, Rubens, engenheiro civil e ex-deputado, é levado pelo exército, e ela tem a tarefa de guiar a família enquanto tenta encontrá-lo. Baseado num livro de memórias de 2015 do filho dos Paivas, o filme segue de perto a perspetiva de Eunice para criar uma impressão comovente de resiliência numa época de terror que se sente desconfortavelmente ressonante neste momento. Estreou no Festival de Cinema de Veneza no ano passado, antes de ser lançado em Portugal no mês passado.
Walter Salles (Na Estrada, Diários de Motocicleta) realizou o filme e também trabalhou com Montenegro em Central do Brasil - e escolheu Torres para um dos seus primeiros filmes, Terra Estrangeira, de 1995. Montenegro também aparece em Ainda Estou Aqui como a versão sénior de Eunice. “Toda a nossa história estava neste filme”, disse Torres à Vogue, a partir de Nova Iorque. “Foi como se Terra Estrangeira finalmente se encontrasse com a Central do Brasil. Tudo fez sentido”.
O seu surpreendente triunfo nos Globos de Ouro impulsionou a temporada de prémios para Torres e, tal como a sua mãe, semanas mais tarde foi nomeada para o Óscar de Melhor Atriz. Muitos também atribuem ao burburinho que a vitória de Torres gerou a principal razão pela qual I'm Still Here ficou entre os 10 filmes que concorrem ao Óscar de Melhor Filme, para além de ter sido nomeado para Melhor Filme Internacional. Torres enfrenta as formidáveis atuações de Cynthia Erivo (Wicked), Karla Sofía Gascón (Emilia Pérez), Mikey Madison (Anora) e Demi Moore (The Substance), mas vários críticos acreditam que Torres pode sair vitoriosa na madrugada de 2 de março.
No entanto, a temporada dos Óscares tem sido uma confusão sem precedentes, repleta de escândalos e indignação, ambos amplificados pelas redes sociais. E Torres não saiu ilesa: Dias depois do anúncio das nomeações para os Óscares, a também nomeada Gascón voltou atrás em comentários que pareciam acusar a equipa de Torres de prejudicar o trabalho de Gascón. (Ambas as atrizes têm elogiado o desempenho uma da outra). Na mesma semana, Torres desculpou-se por um sketch de comédia da TV brasileira, reaparecido em 2008, no qual aparecia em blackface.
Nascida no Rio e filha de dois atores, Torres, de 59 anos, começou a representar na adolescência e, aos 20 anos, ganhou o prémio de Melhor Atriz no Festival de Cannes pelo drama conjugal Love Me Forever or Never, de 1986. Nas quatro décadas seguintes, trabalhou em cinema, teatro, literatura e televisão, ganhando a alcunha de Nicole Kidman do Brasil.
Falando com uma paixão vincada que está a léguas de distância do seu desempenho poderosamente contido em I'm Still Here, Torres discutiu a razão pela qual acredita que as dificuldades ajudaram Eunice a tornar-se no seu verdadeiro “eu”, o que aprendeu com a campanha da mãe para os Óscares e como as muitas controvérsias desta award season a afetaram. A conversa foi editada e condensada.
O que a atraiu em “I'm Still Here"?
Li o guião primeiro como amiga do Walter. Não fui a primeira escolha dele, por isso disse-lhe que era um belo guião e fiquei admirada com o que escolheram incluir. Li o livro quando saiu, e é tão extenso que poderia ser uma série de quatro temporadas. Mas nunca pensei que ele me fosse pedir para o fazer. Tenho andado a fazer muita comédia na televisão, por isso pensei que estava perdido para o Walter. [Risos] E sou mais velha do que a Eunice; ela tem 41 anos quando começa. Mas ele convidou-me para o fazer e conseguimos.
Os espectadores podem ligar-se a esta história de muitas maneiras. Como é que se relacionou com Eunice ou com a sua história?
Aquela casa parecia a minha, e aquele período foi a minha infância. Ela lembrava-me muito a minha mãe nessa idade. Mas agora também sou mãe, por isso esse sentimento foi muito forte. Todas as pessoas que vêem este filme contam-nos uma história pessoal: conhecem alguém com Alzheimer, foram criados numa família com muitos filhos ou perderam alguém. Toda a gente se identifica com este filme ou com uma das personagens. Aquela cena no início, com o carro dos adolescentes que são mandados parar e interrogados pelos militares à mão armada foi a minha adolescência. Eu sabia disso com todo o meu coração.
Como o título sugere, o filme é sobre sobreviver a um momento terrível. Como é que acha que Eunice conseguiu continuar, e para além disso isso, também ter toda uma outra vida como advogada de direitos humanos?
Ela fez mais do que continuar - ela tornou-se ela própria depois da tragédia. Era uma mulher que tinha sido criada para ser a dona de casa perfeita, a grande mulher por detrás do grande homem. No início do filme, ela faz café, prepara o jantar, põe as crianças na cama, mas assim que Rubens desaparece, ela começa a articular-se e a adaptar-se ao espaço que tem. Quando a polícia chega para levá-lo, a primeira coisa que ela faz é oferecer o jantar, como se dissesse: “Estou a permitir que estejam na minha casa. Não estão a invadir”. Depois, quando descobre que Rubens realmente se foi, ela enterra a utopia durante a cena na gelataria. E decide nunca contar aos filhos o que aconteceu, o que é tão contraditório, mas é insuportável contar essa coisa horrível a cinco filhos. Acho que ela queria manter a inocência deles. Há cobardia, mas há também a decisão de os deixar sorrir. É nessa altura que ela decide que não vai fazer-se de vítima e deixar a ditadura vencer.
Mais tarde, esta mulher vai para a faculdade de Direito. Ela sempre disse que entendia que o que aconteceu com a sua família não era diferente do que acontecia todos os dias com as minorias nas periferias do Brasil. Ela lutou pelas reservas indígenas e consultou aqueles que escreveram a Constituição do Brasil em 1988. Era uma mulher à frente do seu tempo, e tornou-se ela mesma quando a figura paterna da família morreu.
Existiu algum pormenor específico na sua pesquisa que tenha sido útil para a desvendar como personagem?
As entrevistas dela. Vi-as vezes sem conta. Ela tinha esta mistura de grande feminilidade - muito mais do que eu tenho - com educação, inteligência e persuasão. E estava sempre a sorrir, com emoções contidas. Lutou pela civilidade num país que tinha perdido a civilidade.
Em que é que este papel foi diferente dos muitos outros que já desempenhou na sua carreira?
Nunca tinha feito uma tragédia. Para mim, ela é uma figura grega como Hécuba ou Penélope - alguém que enfrenta algo que está para além da nossa compreensão. O desafio era tentar atingir o seu nível de dignidade e não a trair com melodrama barato. A contenção era nova: como atores, tentamos sempre exagerar, mostrar o quão bem sabemos chorar e gritar. Mas eu tinha uma pessoa muito real. Fiquei com ela na minha pele durante quase um ano. A certa altura, ela tornou-se uma segunda natureza. Foi o mais próximo que cheguei na minha vida de ser verdadeiramente outra pessoa. Nunca me senti tão profundamente capaz de aceder a uma personagem. Raramente acontece no cinema, mas quando acontece, é mágico para um ator. Deixamos de pensar - é só brincar.
Há meses que anda a viajar pelo mundo com o filme. Que reações surpreendentes encontrou?
A primeira surpresa foi o facto de o filme se ter tornado um êxito de bilheteira no Brasil. Nunca pensei que isso fosse acontecer porque é um drama pesado. Mas nas sessões de cinema, as pessoas choravam e falavam umas com as outras depois do filme. Pensei que seria um filme de culto, mas nunca um sucesso de bilheteira. A segunda surpresa foi ver pessoas noutros países a relacionarem-se com o filme da mesma forma. É um filme que não tem fronteiras. Isto porque se trata de uma família e do que significa viver num momento de medo.

Fernanda Torres nos BAFTA
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O que é que as pessoas fora do Brasil precisam de saber sobre o país para compreenderem este filme de uma forma mais profunda?
Que as ditaduras da América do Sul não eram um assunto de repúblicas de bananas. Elas faziam parte da macropolítica da época. É por isso que eu sempre repito que ela é uma vítima da Guerra Fria; ela não é uma vítima da ditadura de um país da república das bananas. As pessoas tratam as ditaduras da América do Sul como algo que aconteceu num continente longínquo. Mas tudo faz parte da mesma história.
A sua mãe deu-lhe algum conselho sobre a campanha para os Óscares, já que ela própria o fez há 26 anos?
Agora é diferente porque é muito mais global. Os membros da Academia votam em todo o lado. Quando ela o fez, eram sobretudo americanos. Eu vi o que aconteceu com ela: de certa forma, foi raptada durante meses. Ela sempre disse: “Pensei que estava a fazer um pequeno filme brasileiro e, de repente, estava no meio de um furacão”.
Muito se tem escrito sobre as várias controvérsias desta temporada de prémios. Como é que este turbilhão de controvérsias a afetou?
Tenho estado a trabalhar tanto na campanha do filme que é sobre-humano. Viajo sete horas para aqui, cinco horas para ali, 20 horas, a fazer projeções e sessões de perguntas e respostas. O filme nunca teve dinheiro para grandes outdoors, foi uma luta de guerrilha, de homem para homem. E fora do Brasil, o filme não tinha sido lançado antes de janeiro, por isso as pessoas só ouviam falar dele em festivais ou em projeções especiais. E depois houve a surpresa dos Globos de Ouro, mas nem tivemos tempo de festejar porque Los Angeles estava a arder no dia seguinte e eu tive de evacuar. No meio dessa tragédia, recebemos algo maravilhoso, mas seguimos em frente - não há tempo.
É algo novo, com a violência e o poder da Internet. O Brasil é muito, muito forte na Internet. Os artistas no Brasil tiveram que aprender a navegar nessa coisa selvagem nos últimos 10 anos; foram alvos de fake news, de agressividade. Ao mesmo tempo, a Internet é maravilhosa para um artista independente como eu, pois permite-me lançar as minhas peças e livros.
Estou em choque com o que aconteceu. É triste, é realmente chocante. Mas sou totalmente contra a cultura do ódio na Internet. Eu era um alvo e sempre lutei contra isso.
O que tenciona fazer depois dos Óscares?
Dormir. [Risos] Escrevi uma série de seis episódios que está a ser negociada e escrevi um guião para um filme. Tenho a minha vida como sempre foi. Não sei se vai ser diferente. Acho que não.
A sua carreira é muito rica. Há alguma coisa que ainda queira fazer e que ainda não tenha feito?
Há um conto de Eça de Queirós, escritor português do século XIX, que é uma versão darwinista de Génesis. Gostava muito de o fazer em teatro. Tem sido um projeto longo e as coisas vão acontecendo, mas tenho de o fazer. É inacreditável, uma das coisas mais bonitas que já li.
Traduzido do original, disponível aqui.
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