Um ator e modelo andrógino protagoniza Miss, o mais recente filme de Ruben Alves. Na obra, a personagem principal persegue um sonho incomum. O artista que lhe dá vida, Alexandre Wetter, é também alguém incomum, embora tudo nele seja absolutamente natural. Ou, como ele diz, tudo isto é “um não assunto.”
Um ator e modelo andrógino protagoniza Miss, o mais recente filme de Ruben Alves. Na obra, a personagem principal persegue um sonho incomum. O artista que lhe dá vida, Alexandre Wetter, é também alguém incomum, embora tudo nele seja absolutamente natural. Ou, como ele diz, tudo isto é “um não assunto.”
Entrevista em vídeo por Ana Murcho e José Santana. Imagem de Ismael Jesus e Catarina Almeida. Edição de Catarina Almeida.
Alexandre Wetter - Boys don't always wear blue
Miss conta a história de Alex, um rapaz que, desde muito cedo, tem o sonho de ser Miss França – e que tudo fará para o concretizar. Alex é, portanto, uma personagem que flutua entre os géneros masculino e feminino. Naturalmente, o realizador teve de encontrar alguém com um perfil adequado para protagonizar o filme. O ator escolhido foi Alexandre Wetter, que deu nas vistas em 2016 quando desfilou para Jean-Paul Gaultier na Semana da Moda de Paris. Com roupa de mulher, claro. Alexandre é, ele próprio, alguém difícil de definir e que se assume assim mesmo, sem preocupações com definições nem com etiquetas. Nasceu e cresceu no Sul de França, estudou Artes Plásticas. Jovem adulto, mudou-se para Paris perseguindo o sonho de ser modelo e de entrar no mundo parisiense das artes. A sua androginia cedo se transformou numa imagem de marca, embora Alexandre recuse vê-la como utilitária – é apenas a sua essência. Fez trabalhos de Moda, fez anúncios publicitários e acabou por ter a sua oportunidade em séries televisivas como Versailles, um sucesso do Canal+. Ruben Alves conheceu Alexandre Wetter quando tinha em mente a história de Miss. Foi o encontro perfeito. Nós fomos ao encontro do ator.
Como se identifica quanto a sexo e género? Diria que é um homem cisgénero?
Esta é uma excelente pergunta. Não me vejo como uma pessoa cisgénero. Não sei ao certo o que é que eu poderia eventualmente ser, mas o que é mais importante para mim é precisamente não me identificar, não me fechar numa caixa específica na qual eu seja condenado a permanecer. Adoro ser livre, livre de viver, livre de ter experiências diversas. Devo dizer que sou uma pessoa que pôde ir mudando de género, de identidade ao longo da sua vida, pelo que prefiro não ter de me afirmar [de uma ou de outra forma]. No que concerne à definição de uma pessoa como cisgénero, eu não serei, com certeza, alguém que corresponda a essa definição, mas sobretudo não quero que me imponham uma identidade que não é a minha. Eu sou alguém que vive numa sociedade que tem tanta gente e que é tão rica que prefiro mesmo não me adiantar neste género de questões porque é algo que só a mim concerne e à minha intimidade. A minha identidade, em qualquer caso, não mudará aquilo que penso, o meu trabalho e a minha busca pessoal. O mais importante, para mim, é que este não seja um assunto, uma causa. Acredito que podemos viver sem fazer desta questão algo político. É um não-assunto para mim.
E em relação à sua orientação sexual?
De novo, é um não-assunto, lamento muito. Sou uma pessoa que integra a comunidade LGBT. Prefiro dizer, eventualmente, que sou uma pessoa queer, uma vez que o termo engloba muitas coisas. Assumo a 100% quem eu sou, mas não é, jamais, algo que me seja útil, é antes parte do que eu sou e da minha intimidade. Porém, se é preciso passar pela reivindicação, dispenso bem afirmar-me num dos géneros ou mesmo sugerir se sou ou não sou gay. Estou tão à vontade com quem sou que já não é um assunto para mim. O que não quero é ficar preso no assunto. Sou gay, mas não é um assunto.
Como é que se via enquanto adolescente, por exemplo?
Quando eu era adolescente, eu era um rapaz… Vou começar pelo tempo antes da adolescência. Quando era criança, era uma criança feliz quando brincava com a minha irmã, vestindo-me de menina e brincando com brinquedos de menina. Quando chego à adolescência, em que tudo isto é proibido em sociedade, os jovens como eu e mesmo os adultos não permitiam que eu fizesse certas coisas ou tivesse determinados comportamentos. Por tudo isto, quando passei de criança a adolescente, tornei-me um miúdo muito fechado. Vivia em frustração porque não me sentia um rapaz como os outros, era um rapaz feminino. Sabia desde o início que era diferente. Mas tudo mudou bastante daí em diante.
E hoje, de que modo se veste, por exemplo? Como é no seu quotidiano, no seu dia a dia?
Isso foi sempre mudando bastante ao longo do tempo. Houve alturas em que me vestia de forma muito masculina e outras em que me vestia de um modo muito feminino, porque eu precisava de preencher o feminino que esteve frustrado durante todos aqueles anos de adolescência em que fui proibido de o viver. Daí que tenha existido um período enorme em que me vesti de um modo feminino, tinha cabelos compridos, maquilhava-me, andava de saltos altos. Há pouco tempo, voltei ao rapaz que sempre fui. Em certos lugares e ocasiões sabia que precisava de ter cuidado com a maneira como me vestia. Porém, regra geral, eu brincava com a imagem que passava e que deixava que as pessoas colassem a mim. Podia perfeitamente ser seduzido por rapazes que pensassem que eu era uma rapariga e ter experiências diferentes e interessantes. Eu vivia muito bem com isto, era um não-assunto. Nunca tive problemas, pelo menos quando já era mais velho. Quando pude ir viver para Paris, ainda jovem, [e comecei] a minha vida de manequim, estava onde tudo era permitido e onde eu podia fazer o que quisesse. Porque o mundo da Moda e o mundo da arte são santuários onde experiências deste género são toleradas – e, por vezes, até incentivadas.
Diz que o género e a sexualidade são para si “não-assuntos”, uma vez que vive e se exprime com naturalidade, sem se preocupar demasiado com a definição das coisas. No entanto, vivemos num mundo e numa era em que cada gesto e cada palavra são políticos. Pode discordar, claro.
Eu faço do tema um “não-assunto” da mesma maneira que um heterossexual não tem de mostrar a sua sexualidade enquanto afirmação política. Estarmos em sintonia connosco mesmos é, mesmo num mundo altamente padronizado, um ato político poderoso. Eu sou por uma política de fruição. Ser-se diferente e viver-se bem assim é a melhor afirmação. E quando somos felizes e a nossa diferença não é uma fraqueza, então isso torna-se um “não-assunto”.
Como é que se sentiu ao desfilar como modelo feminino para o Jean-Paul Gaultier?
Era o meu sonho desfilar para o Jean-Paul Gaultier. Quando cheguei a Paris para trabalhar como manequim, sempre quis desfilar para ele. Principalmente desfilar para ele como mulher em corsets e saltos altos. Era importante para mim por ser o criador que permitia este tipo de originalidades e, ao mesmo tempo, porque ele tinha uma abordagem humana e doce da identidade… Sobretudo, as imagens do homem e da mulher são, para ele, tão latas que eu estava a viver o meu sonho. Tive a sensação de viver um momento de graça durante esse desfile. Foi maravilhoso. Quando terminou, pensei “o que é que eu poderei fazer a seguir”, porque aquele era o meu sonho, que eu julgava ser inacessível. E, no fim de contas, acabei por conhecer o Ruben [Alves] que me permitiu realizar um outro sonho, que era ter o papel principal num filme.
Neste filme, Miss, teve de se adaptar à personagem ou, pelo contrário, a personagem foi concebida à sua medida?
Tive de me adaptar à personagem. Apesar de termos muito em comum, tive de aprender muito com a personagem. O Ruben [Alves] deu-me uma oportunidade de ouro de interpretar uma personagem muito subtil, para a qual a precisão era uma prioridade.
Como é que conheceu o Ruben e acabaram a trabalhar juntos?
Conheci o Ruben nas redes sociais, ele viu as minhas fotografias e quis encontrar-se comigo para me propor um papel num telefilme. Acontece que eu não conhecia propriamente o trabalho do Ruben. Então, fui ver o filme A Gaiola Dourada. Depois de ter visto, liguei-lhe a dizer que queria, decididamente, trabalhar com ele – mas fazer um filme para cinema, não um telefilme. E foi assim que começou a nossa aventura... Ele disse que sim!
Depois de muitos editoriais e desfiles para criadores de topo, o que é que pretende fazer no futuro? Quer ser modelo? Prosseguir com a carreira de ator? Seguir ambas as carreiras?
Sendo sincero, gostava de continuar com as duas. São dois mundos completamente distintos de que eu realmente gosto. O cinema e a Moda são duas áreas das quais nunca vou querer sair.
Neste filme interpreta uma personagem determinada a perseguir um sonho que é visto por muitos como ridículo ou ilegítimo. Não acha que está a dar voz e visibilidade a pessoas que não se enquadram nos modelos sociais de género e sexualidade? Não se vê como porta-voz da liberdade de simplesmente sermos como queremos ser?
Eu incorporo uma personagem universal, que vai além do sexo e do género. É uma personagem determinada a viver os seus sonhos e dar ouvidos aos seus desejos – e então decide aceitá-los e desafiar a ordem estabelecida. Esta personagem fala para toda a gente, até para aqueles que vivem bem neste mundo padronizado e que podem ajudar pessoas que não correspondem ao standard a fazer da sua unicidade um “não-assunto.” Vivemos todos juntos, no mesmo planeta, onde até alguém especial provavelmente terá imenso em comum com uma pessoa dita “normal”. Olhemos para os traços que temos em comum para melhor apreciarmos as nossas diferenças.
Artigo originalmente publicado na edição de outubro de 2020 da Vogue Portugal.
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