Falar de almas gémeas é, acima de tudo, falar de sentido de amor-próprio. Aquele tipo de amor que ninguém pode sentir por nós, a não ser nós mesmas.
Falar em encontros de almas gémeas não é bem o mesmo que estar no Tinder, embora o Tinder, ou outra qualquer app de encontros, seja o ponto de partida para quem anda à procura da “outra metade”. Falar de almas gémeas é, acima de tudo, falar de sentido de amor-próprio. Aquele tipo de amor que ninguém pode sentir por nós, a não ser nós mesmas. E a partir daí sim, tudo é possível. Até encontrar a alma gémea.
© Andrew Lyman
© Andrew Lyman
“(...) desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro.” Platão, in O Banquete.
O Banquete foi escrito há mais de 2400 anos, pelo filósofo Platão que, na voz do poeta Aristófanes, fez aquela que será uma das primeiras referências à existência de almas gémeas na história da humanidade. Um mito que relata a divisão dos seres andróginos, que resultou em dois novos e distintos seres: um homem (andro) e uma mulher (gynos). Antes plenos e completos, os andróginos são condenados – um castigo lançado por Zeus e pelo seu filho Apolo, deuses da mitologia grecoromana – a viver em permanente saudade e em busca da sua outra metade, cujo reconhecimento só poderia ser feito através das almas que, pela eternidade, anseiam por esse reencontro uma com a outra, presas ao desejo de voltarem a sentirem-se unas, indivisas e singulares. Em pleno século XXI, milénios passados sobre a teoria d’ O Banquete, de Platão, a humanidade segue nessa busca incessante (obsessiva?) da sua alma gémea ou “cara metade”, contanto que, agora, ela está à distância de um ecrã. E, com o milagre da ciência e da tecnologia ao serviço da felicidade absoluta, o que é que pode correr mal? Um inquérito online, lançado entre março e abril deste ano pela DECO PRO TESTE – Associação de Defesa do Consumidor - sobre a utilização de aplicações de encontros (apps), e só agora divulgado, revela que, num total de 1676 respostas, 29% dos portugueses espera encontrar, nessas apps, uma relação estável, enquanto 33% dos inquiridos recorre às aplicações como forma de conhecer pessoas novas ou estabelecer contactos de amizade. Porém, do total de participantes, 43%, a maioria, não conseguiu nenhum encontro. Em fevereiro deste ano – mês que celebra o dia de São Valentim, ou dia dos namorados – uma notícia publicada pelo jornal Observador dava conta que “um terço do mercado de relacionamentos online pertence ao império Match Group, cuja joia da coroa é o Tinder, com cerca de 50 milhões de utilizadores mensais.” Tinder, Happn, Bumble, OkCupid, Grindr ou Hornet são algumas das apps disponíveis para ajudar nesse que será um dos maiores enigmas da existência humana: o encontro com a alma gémea. Se ela existe ou não, não sabemos. Mas com 50 milhões de almas inscritas em aplicações de encontros, é óbvio que alguém anda à procura. A ideia de que existe apenas uma pessoa com o poder de fazer cada um de nós sentir-se completo e feliz, como se precisássemos desse complemento, tem sido amplamente difundida através da música, da literatura, do cinema e da televisão. Em 1822 o poeta inglês Samuel Taylor Coleridge foi um dos primeiros homens da história contemporânea a usar o termo soulmate (alma gémea) quando escreveu numa carta que “para ser feliz na vida de casado...temos de ter uma alma gémea.” O que o poeta queria dizer, já naquela altura, era que um casamento não deve assentar apenas na compatibilidade social ou económica.
Para encontrar a felicidade é preciso que entre duas pessoas exista também uma ligação espiritual. Mas entre o Tinder, o Happn e o Bumble, quão ligados à nossa espiritualidade andamos nós? Rute Alegria é formadora e terapeuta espiritual. À Vogue Portugal, Rute explica como a ideia de espiritualidade, estando intimamente ligada ao conceito de alma gémea, provoca em nós uma imediata desconfiança. “Para falar de almas gémeas é preciso falar das várias camadas do cosmos e acreditar na reencarnação, que é o patamar mais básico desta questão da espiritualidade. O que é a espiritualidade? Penso que todos nós, por volta dos 40 ou dos 50 anos, tendemos a começar a questionar a nossa vida. Se eu não me ligar espiritualmente à vida, se eu ficar agarrada apenas à dimensão material, eu vou enlouquecer, vou ficar deprimida, mesmo que eu possa ter muito dinheiro ou poder. Se na nossa vida não nos ligarmos a um significado maior, começamos a pensar que nada disto faz sentido, ou começamos a ligar-nos a bens materiais e a viver só com base nisso, o que não faz muito sentido.” A ideia de reencarnação, que reúne à sua volta diversos sistemas filosóficos e religiosos – especialmente o do hinduísmo, mas também o do budismo –, parte do princípio de que a alma tem o poder de subsistir à morte física, podendo ligar-se (ou encarnar) em diversos novos corpos ao longo do tempo, com o objetivo específico de se autoaperfeiçoar, ou seja, anular o karma, termo ligado às doutrinas bramânicas, que traduz a lei de ação/reação. Isto porque, segundo esta filosofia, todos os nossos atos geram consequências. Rute Alegria explica como o conceito de karma e alma gémea andam entre nós, e de mãos dadas. “Nós sofremos muito no amor. O amor é aquela zona da nossa vida onde nós mais crescemos. O nosso par é um grande professor e é nas relações amorosas que se projetam muitas das nossas sombras, aquilo que não conseguimos ver em nós. Muitas vezes apaixonamo-nos por uma pessoa e achamos que encontrámos a nossa alma gémea, quando na realidade, o que acontece é que aquela relação é apenas altamente karmica. As relações karmicas têm a particularidade de produzir um abalo profundo nas nossas vidas, mas muitas vezes nem se chegam a materializar num relacionamento a sério. Estas pessoas que entram na nossa vida, e que têm um significado muito grande, chegam para nos trazer um ensinamento. Às vezes, as pessoas acham que isso é um encontro de almas gémeas, mas não é. É apenas uma oportunidade para vivermos as nossas feridas emocionais, para as sanarmos. Muitas vezes, esta procura incessante pela alma gémea é uma forma de nos mantermos na ilusão, de nos agarrarmos a uma ilusão e é preciso estar atenta a isso.” Será a ilusão de que precisamos do outro para nos resgatar? Mas resgatar de quê? Rute Alegria explica que “a ideia de alma gémea está muito ligada ao mito do ‘cavaleiro salvador’. Especialmente as mulheres querem sempre atrair alguém que as transporte para fora do marasmo, muitas vezes interior, em que vivem. Se as mulheres elas próprias não cavalgarem o dragão, não vai chegar ninguém. Todos temos um bocado a ideia, enquanto crescemos, que um dia vamos encontrar alguém que nos vai completar e que, de alguma forma, vai fazer uma espécie de magia na nossa vida, pela sua presença. E a questão é exatamente ao contrário, o caminho é inverso. São necessárias muitas reencarnações e tem de haver um nível de evolução da alma enorme até que ela reencontre a sua outra parte.”
OS OLHOS SÃO O ESPELHO DA ALMA, DIZ A CULTURA POPULAR E UM ESTUDO, REALIZADO POR MÉDICOS INVESTIGADORES DA CORNELL UNIVERSITY, EM NOVA IORQUE, EUA.
Sofia Rito é autora de vários livros, entre eles Espiritualidade para Todos, um manual para, segundo Sofia, “chegar às pessoas e desmontar aquilo que é a espiritualidade. Mostrar que é simples, acessível e que toda a gente tem a capacidade de entrar em contacto com esse lado, porque ele faz parte de nós, enquanto seres humanos.” Para falar de almas gémeas é preciso primeiro passar o constrangimento de assumir que acreditamos naquilo que não se vê. O que, para os dias de hoje, se não estiver ao nível da heresia, está seguramente ao nível da candura. Sofia Rito explica que, “para despertar o nosso lado espiritual é preciso querer”, o que significa que para ler este artigo se torna necessário, sem ignorar totalmente o eventual compreensível ceticismo, que ampliemos a compreensão do nosso potencial enquanto seres humanos, dotados de uma visão periférica ou extrasensorial, e nem por isso menos cabível. Afinal, o amor não se vê nem se explica, mas todos somos capazes de o identificar quando ele aparece, vindo sabe-se lá de onde. Quem é que acredita? “Quando duas almas sintonizam uma com a outra e se dá o caso de serem gémeas, isso significa que estas almas já passaram por uma série de patamares, sendo um desses patamares o trabalho no sentido de me desenvolver, de me amar, de gostar de mim, respeitando-me acima de tudo”, esclarece Rute. “Eu não posso querer o outro na minha vida para ele me servir, ou para ser meu refém, ou para estar à minha disposição. Para chegar ao patamar de encontrar a minha alma gémea eu já tenho de saber qual é o meu centro, já sei cuidar de mim, das minhas carências e, portanto, eu deixo apenas que o outro partilhe da minha vida, que já está em equilíbrio, para que depois, juntos, lado a lado, possamos construir outra coisa, maior que nós dois. Mas, muitas vezes, como estamos inseridos numa camada densa, a maioria das pessoas vibra naquilo que se chama de ‘eu inferior’ e que está ligado ao nosso ego. Está ligado ao medo e é do medo que vem todo o sofrimento, que vem o ciúme e as inseguranças. Tudo o contrário do que é suposto sentir-se em presença de uma alma gémea. Quando as almas gémeas se encontram, há sim uma sensação de comunhão, de paz uma com a outra. Portanto, sensações de muito conflito, ciúmes, nada disso tem lugar, porque ligarmo-nos à nossa alma gémea é como chegar a casa, eu sinto-me em casa, não preciso simular nada.”
É a busca por essa sensação de familiaridade ou de pertença que nos empurra a procurar respostas nos lugares menos prováveis. Mas nem por isso menos válidos. A Cabala baseia-se na sabedoria ancestral que revela como funcionam as leis do Universo e da vida. Um conhecimento que, durante anos, foi mantido secreto. Mas só até 1968, quando o Rav Berg (Rav significa professor) e a sua mulher, Karen Berg, insistiram em abrir o conhecimento da Cabala a todos, independentemente da sua raça, género ou crença religiosa. “Quando estamos num caminho espiritual procuramos estabelecer ligação com o espírito. Este espírito não possui um nome; não é cristão, judeu ou budista ou qualquer outra descrição limitadora. É simplesmente espírito, muito além de qualquer crença em particular. Todas as pessoas deveriam poder ligar-se a esta sabedoria da mesma forma”, lê-se na página do Kabbalah Centre, onde Michal Shneor, professora de Cabala, nos responde à pergunta: afinal, todos temos uma alma gémea? “Nem sempre. Todas as almas têm a sua alma gémea, mas nem sempre essas almas se encontram numa mesma vida. Uma alma pode chegar à Terra para ajudar outras almas, ou terminar alguma coisa que ficou por finalizar, numa outra vida passada. Mas ela pode não encontrar a sua alma gémea nesta vida, não.” Para a Cabala o reencontro entre almasgémeas serve um propósito maior do que apenas fazer-nos sentir completos ou “em casa”. “O encontro de almas gémeas permite-nos fazer aquilo a que chamamos o tikkun [tikkun significa correção, que aqui deve ser entendida como a possibilidade de fazer alguma coisa que contribua para melhorar o mundo]. Mas mais do que isso, este reencontro de almas serve especialmente para trazer luz ao mundo, elas devem trabalhar em conjunto, de forma realmente única e especial, de forma a ‘revelar a luz’ no mundo”, diz a professora Shneor. Sofia Rito, que também trabalha sobre o tarot kármico – (tarot é a arte da interpretação de símbolos representados num baralho de 78 cartas que se dividem em 22 arcanos maiores e 56 arcanos menores, cada uma apresentando um conjunto de imagens e figuras com um significado que se interliga entre si, funcionando como oráculo do passado, do presente e do futuro) – garante-nos que a alma gémea não é a nossa única oportunidade de experienciar o amor nesta vida. “Obviamente existem outros tipos de alma, podem é não ter a mesma intensidade completa de uma alma gémea. Podem ser almas que nos proporcionem experiências fabulosas, é uma coisa muito energética. O conceito de alma amiga também existe. É quando estamos com alguém que parece que conhecemos desde sempre, até parece que a pessoa consegue ler-nos os pensamentos, mas com quem não temos qualquer relação amorosa, isso são almas amigas, almas companheiras. Mas as pessoas não devem ficar presas à ideia de encontrar a alma gémea, porque isso é completamente irrelevante. Importante é encontrarmos alguém de quem gostemos e com quem tenhamos um relacionamento feliz. A espiritualidade deve servir para nos ajudar a viver melhor, mais conscientes e mais felizes, não para nos criar dependências. Quando as pessoas me dizem que precisam de acreditar em alguma coisa, eu sinto que o meu papel é fazê-las acreditar nelas mesmas.”
Acreditar ou não em almas gémeas? Onde quer que ele esteja, ouvir Leonard Cohen cantar o Hallelujah, tira-nos os pés do chão. Mas será que nos faz acreditar? “A nossa alma gémea anda a fazer um percurso como nós, que pode ser neste plano, aqui na Terra, ou num outro plano qualquer. As almas gémeas não têm de ser encarnadas ao mesmo tempo, porque elas andam, ambas, a recolher experiências diversas, vivências para poderem evoluir, até ao dia em que finalmente se possam reunir”, diz Rute Alegria. Os olhos são o espelho da alma, diz a cultura popular e um estudo, realizado por médicos investigadores da Cornell University, em Nova Iorque, EUA, publicado em 2017 na revista Psychological Science. Segundo este estudo, os olhos dominam a nossa comunicação emocional, sendo através deles que estabelecemos toda a nossa comunicação não verbal. Será possível que, sempre que olhamos fundo nos olhos de alguém, estejamos simplesmente a fazer o reconhecimento da alma dessa pessoa? No tarot, a carta da Roda da Fortuna, ou do Destino, lembra-nos que a vida é feita de ciclos, de mortes e nascimentos, que tudo é transitório, inclusive nós, e que as escolhas e as ações que tomamos são determinantes dos rumos que damos à nossa existência. Para Rute Alegria, a sociedade atual “está muito desligada destes símbolos. Mas eles existem e continuam a ter as mesmas forças e frequências desde sempre. Infelizmente, esse poder simbólico tem vindo a ser cada vez mais desvalorizado, e por isso é que as pessoas depois são confrontadas, por exemplo, através dos sonhos ou dos pesadelos, para relembrarem que é preciso estar ligado também ao nosso subconsciente. O que acontece hoje é que as pessoas têm medo e, socialmente, quando falamos destas coisas, gostam de se rir e de gozar, mas depois se puderem, essas mesmas pessoas procuram-me em segredo, pedem ajuda. As pessoas sentem vergonha de acreditarem no que não se vê, a ciência é o novo Deus.”
“I did my best, it wasn't much, I couldn't feel, so I tried to touch, I've told the truth, I didn't come to fool you. And even though it all went wrong, I'll stand before the lord of song, With nothing on my tongue but hallelujah (…)”. Leonard Cohen conheceu a norueguesa Marianne Ihlen na ilha de Hidra, na Grécia, em 1960. Marianne era então casada e tinha um filho de quatro meses, mas ela e Cohen tinham uma história para viver. E foi isso mesmo que aconteceu. “(Cohen) é uma pessoa rara e vou sempre amá-lo e honrá-lo. Estou contente de o ter conhecido naquele dia, no porto de Hidra. Ele ensinou-me tanto sobre mim”, disse Marianne pouco antes de morrer. Cohen, aos 81 anos e poucas semanas antes de lhe ter sido diagnosticada leucemia, também escreveu a Marianne: “Chegou aquela altura em que estamos tão velhos que os nossos corpos começam a desfazer-se e acho que vou seguir-te muito em breve. Quero que saibas que estou tão próximo de ti que se estenderes a mão talvez consigas tocar na minha. Sabes que sempre amei a tua beleza e a tua sabedoria (...). Quero apenas desejar-te boa viagem. Adeus, velha amiga. Encontramo-nos no caminho.” Será isto suficiente para nos fazer acreditar? Michal Shneor, do Kabbalah Centre, lembra-nos que “não existe uma hora ou um tempo para o encontro entre almas gémeas. Basicamente, quando elas estiverem preparadas vai acontecer. Claro que o reencontro só será possível quando já existir maturidade suficiente, compreensão suficiente para saber que o propósito daquele encontro ultrapassa a mera união física, mas implica uma evolução espiritual consciente e sólida.” O que quer dizer, que antes do reencontro com a nossa alma gémea, é importante marcar um encontro com a nossa própria noção de alma.
*Artigo originalmente publicado na edição Twin Souls da Vogue Portugal, de novembro de 2019.
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