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Crazy little thing called love: o amor e a loucura

30 Nov 2020
By Sara Andrade

Aparentemente, o amor e a loucura estão numa relação. Será que é uma relação aberta?

"Loucamente apaixonados”, “louco por ti”, “mad about you”, “l’amour fou”, até “crazy in love” – expressão que Beyoncé repetiu até à exaustão num refrão que lhe valeu um Grammy, em 2004. Mas podia tê-lo entoado em qualquer outra língua, porque a frase “amor louco” ou a ideia de “estar louco de amor”, é universal. O que talvez não seja universal é a interpretação da mesma. Estar louco de amor por alguém, enquanto expressão, implica uma intensidade de paixão, e não atesta nenhum género de insanidade, na sua base, referindo-se às nuances do coração e não do cérebro ou da mente. Por isso, importa, primeiro que tudo, dissociar a expressão “louco” – usada como metáfora – de uma versão que possa tocar a instabilidade emocional e/ou mental. “A definição de loucura tem sido abordada por vários autores ao longo dos anos e é bastante ampla”, elucida Joana Canha, psicoterapeuta. “Não é possível ver a loucura como algo oposto à racionalidade; é algo intrínseco ao ser humano. Contudo, há vários níveis de loucura, sendo que, quando associada à patologia mental, vemos formas mais ligeiras, como na neurose, e mais acentuadas, como na psicose. Contudo, a loucura está repleta de descontinuidades, contradições, atos irrefletidos e paradoxos. Não é uma doença mental ou um distúrbio por si só, mas pode acompanhá-los.” Patrícia Silva, psicóloga clínica na Clínica Marisa Rodrigues, também faz a distinção, sublinhando que é verdade que “atualmente, a noção de loucura está relacionada com um desequilíbrio mental que se manifesta numa perceção distorcida da realidade, na perda de autocontrolo, em alucinações e comportamentos sem justificação”, advertindo que o “facto de determinado tipo de linguagem poder contribuir para estigmatizar as pessoas que vivem com problemas de saúde psicológica faz com que, em Psicologia, expressões como louco ou loucura sejam preferencialmente substituídas por comportamento errático ou invulgar.” Ou seja, quando se usa de forma lata expressões como “louco de amor”, a referência é metafórica e não comportamental. O que não quer dizer que não lhe seja atribuída alguma dose de loucura e irracionalidade, no sentido em que nos altera porque mexe com as nossas emoções, mesmo que seja em doses subtis: “Quando estamos apaixonados, as zonas mais ativadas no nosso cérebro são as zonas de recompensa. Quando recebemos os estímulos que nos dão prazer, o circuito cerebral da recompensa é ativado. Perante este estímulo, o cérebro aumenta a dopamina (neurotransmissor associado ao bem-estar) na zona de recompensa”, explica Silva. “A libertação de cortisol, hormona do stress, também ocorre quando estamos apaixonados. Esta hormona, além de contribuir para uma sensação geral de bem-estar, também ajuda a regular os padrões de sono. Esta sensação geral de bem-estar também leva por vezes à incapacidade de reconhecer defeitos no novo parceiro, reforçando a teoria que por vezes ‘o amor é cego’.” Joana Canha corrobora: “Quando amamos, somos inundados por ocitocina – mais conhecida como a hormona do amor – há um bem-estar, uma felicidade global. O ser humano sente-se capaz de tudo, não invencível, mas, talvez, mais corajoso. Contudo, e tentando pensar nas várias formas de amar, os atos de ‘loucura por amor’ variam de acordo com a estrutura psicológica e emocional de cada um. O que para umas pessoas é considerado loucura, para outras são pequenos gestos. Está relacionado com a capacidade de expressar o amor. Por exemplo, imaginemos uma pessoa que tem muita dificuldade em expressar emoções (às vezes como consequência da sua dificuldade em aceder a elas). Para esta pessoa, dizer ‘amo-te’, preparar algo especial ou espontâneo para alguém (no caso do amor romântico) pode ser sentido como uma loucura, para outros não. Poderemos dizer que o amor e a loucura por vezes andam de mãos dadas, considerando sempre diferentes níveis de intensidade”, sendo que aqui, a loucura, é assumir comportamentos atípicos da personalidade, e não a assunção de instabilidade mental. Isso é outra conversa. Será possível estar “louco de amor”, neste sentido de insanidade? “Existe uma impossibilidade da existência pacífica dessas duas condições numa mesma relação, loucura e amor”, defende Patrícia Silva, assumindo aqui loucura da maneira como a questionamos, como um termo inerente à ideia de passar das marcas, de comportamento atípico, exagerado, quase perigoso. “A loucura no amor remete-nos para uma relação desequilibrada, em que a pessoa obsessiva tende a criar fantasias em relação ao seu objeto de amor. Esse objeto de amor assume uma figura irreal, perfeita, idealizada. Quando uma pessoa está louca de amor, ela perde a noção do senso, dos limites, da realidade e tudo passa a ser visto pela ótica do exagero.” E isso acontece porque a loucura faz parte de nós: “Freud já dizia que a loucura fazia parte do ser humano e que está ligada ao inconsciente; no mesmo sentido, Lacan afirmava que não era possível compreender o homem, sem compreender a sua loucura. Se considerarmos estes autores (assim como outros), a relação entre o amor e a loucura parte sempre do ser humano. Ele é que tem a capacidade de amar e é nele que há algo de louco”, frisa Canha, ressalvando que não é a nomenclatura que prefere usar.

“O AMOR NÃO PRECISA DE SER DOSEADO. O QUE PRECISA DE SER PENSADO E TRABALHADO SERÁ O QUE LEVA ALGUÉM A AMAR DE UMA FORMA QUE NÃO RESPEITA O ESPAÇO PESSOAL DO OUTRO E DO PRÓPRIO; O QUE LEVA ALGUÉM A CONFUNDIR AMOR COM ABUSO; QUE FORMA DE AMAR É AQUELA EM QUE A PESSOA SE ESQUECE DE SI MESMA E PORQUÊ." JOANA CANHA

Então, estar louco de amor pode ser só referir-se a alguém que tem uma paixão assolapada, mas o termo pode ganhar contornos mais reais, se a intensidade tomar proporções que podem espoletar distúrbios psicológicos? “Nas condições certas, todos temos a capacidade de entrar em contacto com os nossos lados mais ‘loucos’”, continua a psicoterapeuta. “Por exemplo, um desgosto de amor pode ser tão violento que pode levar alguém a deixar de tomar conta de si mesmo, física e emocionalmente (dependendo das circunstâncias, claro). Neste tipo de situações podemos estar a falar de doença mental. Claro que pessoas com diferentes estruturas psicológicas reagem de diferentes maneiras. Não está relacionado com ser mais forte ou mais fraco”, elucida, acrescentando que “em terapia, é importante perceber a estrutura emocional do paciente; tentamos perceber o que o levou a ter determinamos comportamentos e emoções ligando umas coisas com as outras. Costumo dizer que é como se criássemos um esqueleto emocional e tentamos perceber onde é que está magoado. Nesse sentido podemos encontrar razões para a loucura, até nas loucuras por amor.” E quando se fala aqui em razão, não se fala em racionalidade, mas antes na possibilidade de fatores externos e internos que desencadeiam um distúrbio psicológico que pode chegar àquilo que a sociedade, de uma forma inespecífica, considera uma loucura: “Ainda que um determinado problema de saúde psicológica tenda a ser caracterizado por um conjunto de sintomas comuns, nem todas as pessoas o vão experienciar da mesma forma”, afirma Patrícia. “O contexto sociocultural pode influenciar a forma como as pessoas vivenciam os problemas de saúde psicológica e como compreendem e interpretam os sintomas desse problema. Por vezes, é nessa interpretação ou na forma errada como a fazemos, que os comportamentos desviantes têm origem.” Que, em situações extremas, pode significar cometer um crime: “Denominamos de crime passional o crime motivado pela paixão”, continua Silva. “Na maioria dos casos, a razão pela qual ocorre este tipo de crimes é a perda do controlo das ações do seu autor, motivada por uma paixão doentia, violenta e irreprimível. O termo ‘passional’ faz referência a algo motivado pela paixão. Paixão é o sentimento ou emoção levado a um alto grau de intensidade, e entusiasmo, ou até mesmo a um desgosto ou mágoa. É por vezes comum que este sentimento se venha sobrepor à lucidez e à razão, levando alguém a cometer um delito.” Chegar a este ponto terá pouco a ver com amor e mais com instabilidade mental. Na verdade, o amor, ou melhor, estar doente de amor (lovesickness) foi outrora um diagnóstico real de doença mental. Aliás, Sigmund Freud, em 1915, deixou a retórica pergunta: “Quando dizemos ‘ficar enamorado’ não é uma espécie de doença e loucura, uma ilusão, uma cegueira em relação ao que a pessoa por quem um se apaixona é na realidade?”, e estudos científicos sobre o tema encontraram um estado similar ao causado por drogas ilegais como a cocaína, uma vez que certos neurotransmissores no cérebro, como já apontaram estas especialistas, desencadeiam uma sensação de bem-estar, uma espécie de high, imitando a sensação provocada por anfetaminas. A ideia de lovesickness enquanto maleita real ficou entretanto nos arquivos de História e fora dos diagnósticos de psicologia, ainda que possa ser referida no dia a dia enquanto expressão metafórica: “Considerando que ‘lovesickness’ é uma expressão utilizada para descrever quando uma pessoa se sente aflita e com sentimentos e pensamentos negativos na ausência da pessoa amada, será importante pensar o que leva alguém a ficar tão desesperado nessa ausência”, começa por dizer Joana. “Na minha perspetiva, o amor não é um rastilho da doença mental, a deturpação do amor pode ser”, ressalvando que a ideia de estar doente de amor não existe senão enquanto expressão popular. O que não quer dizer que o desequilíbrio amoroso não possa afetar profundamente o centro nervoso de quem o experiencia. É, como diz Joana, um rastilho. Nomeadamente o lado desgostoso, que muitas vezes até fomenta a disseminação de histórias de pessoas que faleceram logo depois do “amor da sua vida”. “Morreu de desgosto de amor.” Isso é possível? Seria uma pergunta para outro especialista – talvez um cardiologista? –, mas Patrícia Silva tenta aprofundar: “O terminar de uma relação amorosa pode ser bastante doloroso. A primeira fase pode estar associada a uma descrença e/ou a um conjunto de dúvidas derivadas da nova situação, que podem provocar dor física ou até mesmo depressão. Uma fase seguinte já será caracterizada por sentimentos como o pessimismo e a resignação. Quando uma relação termina, podem ainda ser experienciados alguns efeitos físicos, como alterações nos intestinos, problemas de pele, queda de cabelo, perda de peso e dificuldade em dormir. Quando se inicia um novo relacionamento, ao longo da interação vão sendo libertadas duas hormonas, a oxitocina, mais vulgarmente conhecida como a hormona do amor e a dopamina, hormona associada ao bem-estar. Quando a relação termina, a pessoa pode experienciar sintomas iguais ao de uma abstinência, dado essas duas hormonas já não se encontrarem presentes da mesma forma, e ser necessário algum tempo até o próprio corpo se ajustar.” Mas a “loucura do amor” também pode – e tem – o efeito inverso: dá vida, reanima, como diz Joana Canha: “O Professor António Coimbra de Matos – uma referência enquanto psicanalista e supervisor – tem um livro que fala da importância de ser amado, de ser lembrado. Chama-se Vária. Existo Porque Fui Amado. Para mim, sim o amor pode ‘curar’, melhorar a vida, dando-lhe significado.”

Não é por isso de estranhar que encontrar o amor costume ser um objetivo de vida: é em busca desta cura, deste significado, que o amor nos move. E o séc. XXI, com a vida citadina acelerada e o advento das novas tecnologias cada vez mais rápidas, tem oferecido respostas para essa busca que podem trazer tantas vantagens quanto desvantagens: “A Internet fez emergir uma nova cultura e uma nova forma de comunicarmos. Devido à evolução tecnológica, atualmente a comunicação é feita através de mensagens (SMS ou WhatsApp), redes sociais, vídeos e uma grande maioria é através de fotografias com uma breve legenda ou com emojis. Tendo em conta esta realidade, podemos afirmar que as tecnologias afetaram a dinâmica como interagimos uns com os outros, assim como a maneira como procuramos um parceiro/parceira”, contextualiza a psicóloga clínica. “O aumento da procura do amor nas tecnologias traz a possibilidade de conhecer outras pessoas que de outra forma seria mais difícil”, diz Joana Canha. “Contudo, também assistimos à crescente dificuldade em nos relacionarmos com alguém numa forma mais íntima emocionalmente. Não desconsiderando o número de casais que tiveram origem em alguma aplicação tecnológica, o amor é algo que sentimos; e para sentir a melhor forma é estar com a outra pessoa”, apelando à forma de romance tradicional. Esta rapidez e nova (des)conexão humana também contribuíram, entre outros fatores, para um séc. XXI que já vê a doença mental como um dos seus maiores flagelos: “Esta questão não podia ser mais pertinente neste momento”, continua a psicoterapeuta. “Devido ao tempo em que vivemos, onde um vírus toma conta do mundo, a forma como vivemos foi alterada. Assistimos a um aumento enorme de questões de ansiedade e depressão e o estar/ tocar nas pessoas passou a ter uma conotação ambígua. Precisamos do toque dos nossos familiares e amigos (do abraço, do beijinho), mas o medo de lhes transmitirmos o vírus tornou-se, para muitos, superior a essa necessidade. Torna-se urgente encontrarmos uma forma de estar próxima, porque a solidão provoca danos enormes. Amar sem estar presente, sem tocar, pode ser tortuoso.” “Nos últimos dez anos, cresceram as perturbações e o consumo de psicofármacos em Portugal.”, aponta Patrícia Silva. “De acordo com o primeiro estudo epidemiológico nacional de Saúde Mental, cerca de um em cada quatro portugueses sofre de um problema de Saúde Mental (23% da população). Atualmente, Portugal é o segundo país da Europa com maior prevalência de doenças mentais na população. É necessário encarar a saúde mental como uma prioridade, assim com reconhecer que os problemas do foro mental são, por vezes, mais incapacitantes do que os de ordem física.”

E o amor, neste contexto? É preciso estarmos mais atentos ao modo como ele é vivenciado? Temos de medir a sua “loucura”, doseá-lo? “A meu ver o amor não precisa de ser doseado. O que precisa de ser pensado e trabalhado será o que leva alguém a amar de uma forma que não respeita o espaço pessoal do outro e do próprio; o que leva alguém a confundir amor com abuso; que forma de amar é aquela em que a pessoa se esquece de si mesma e porquê (entre outras questões). Este trabalho faz-se em terapia. Um espaço e uma relação (terapêutica) segura, onde podemos falar de tudo com alguém que está lá para nos ajudar a pensar, a entender e até a estimular a mudança a seu tempo”, remata Joana Canha, lembrando que quem tem a saúde mental mais ou menos debilitada não está sozinho – há sempre especialistas dispostos a atenuar mazelas internas e a tentar perceber potenciais fontes de perturbação, que afetam não só quem sofre, mas os outros e a sua relação com eles. Patrícia Silva não se cansa de reforçar: “A delimitação entre o que pode ser considerado normal e o que deve ser tido como ‘patológico’ é uma questão que gera variadas discussões conceituais. Quando a relação se torna desequilibrada, causando sofrimento para uma das partes, o desejável é procurar a ajuda de um profissional.” Porque a terapia também é uma espécie de amor. E amor com amor se paga.

*Artigo originalmente publicado no The Madness issue, da Vogue Portugal, de julho 2020.For the english version, click here.

Sara Andrade By Sara Andrade

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