Artwork de João Oliveira
A química dos ingredientes ancestrais, juntamente com a sua narrativa nostálgica, deu origem a um novo segmento na cosmética. A beleza ancestral é uma tendência com raízes cada vez mais profundas e nunca foi tão moderno gostar do que a Natureza nos dá.
Estamos em 1963 e estreia o filme Cleópatra: a atriz Elizabeth
Taylor mostra ao mundo o histórico banho da rainha do Egito.
Não era um banho qualquer; antes um bom exemplo de que
a realidade supera a ficção. Consta que Cleópatra tinha mais
de 700 burras para obter o leite ao qual juntava depois óleos,
especiarias e cereais, com o objetivo de cuidar da sua pele e relaxar.
A mistura do ácido lático – hidroxiácido esfoliante, presente
no leite – com a timoquinona – poderoso antioxidante, do óleo de
cominho preto – era a receita ideal para uma pele macia e luminosa.
Fast forward até aos dias de hoje, quase nada mudou. Estamos cada
vez mais fãs dos ingredientes ancestrais e a Natureza não nos desilude.
Do cominho preto egípcio ao turmérico indiano, passando
pela água de rosas turca, os cuidados de beleza que remontam a
séculos ou milénios estão a ganhar popularidade – novamente.
A história da cosmética acompanha a história da humanidade.
Durante milhares de anos, o ser humano usou a Natureza como
fonte única de matérias-primas e criou misturas de ingredientes
com origem vegetal, mineral e animal para obter cosméticos que garantissem as funções de proteção, de embelezamento ou, até,
espirituais. Só no século XX é que os ingredientes sintéticos e quimicamente
modificados passaram a ser universalmente utilizados nos
cosméticos, e a inovação neste mercado trouxe-nos, por exemplo, a
ureia, o retinol ou os péptidos. Apesar do apelo futurista de inúmeros
ingredientes usados atualmente na indústria cosmética, há cada
vez mais pessoas interessadas nos ingredientes antigos, naturais e com reputação histórica inabalável. E, neste mundo da beleza, com
foco na Natureza e na equidade social, os ingredientes naturais dos
rituais de Cleópatra continuam a ser grandes fontes de inspiração.
Atualmente, vivemos o revivalismo da beleza ancestral: aquela na
qual depositamos a esperança de nos trazer, aos dias frenéticos e tecnológicos, alguma paz e a autenticidade do passado. A relevância
moderna da beleza ancestral é real, mas porquê?
As inovações no campo da cosmética são constantes e pretendem responder aos nossos desejos hedonísticos, cada vez mais valorizados do ponto de vista emocional e económico. A popularidade crescente das práticas antigas e holísticas – como a Ayurveda Indiana ou a Medicina Tradicional Chinesa – tanto no universo da beleza, como da nutrição ou do bem-estar, reflete a relação atual que procuramos ter com a nossa saúde física, mental e social, numa compreensão transcultural do que é estar bem. Estas práticas ancestrais visam a prevenção e a longevidade saudável, e apelam a uma abordagem mais inclusiva e harmoniosa, dando a oportunidade de conhecer e aprender sobre outras culturas com menos representação no mundo ocidental. Esta atitude exploratória do passado está também relacionada com o facto das mulheres reassumirem cada vez mais a sua própria narrativa da beleza. A pandemia permitiu-nos ter acesso a pessoas reais com “segredos” de beleza vindos de diversos locais do mundo; da mesma forma que promoveu pequenos negócios locais, muitos deles criados por mulheres de culturas minoritárias. Têm surgido, e crescido, várias marcas inspiradas na beleza ancestral, pelas mãos de mulheres negras e indígenas que recuperam com legitimidade os saberes e os rituais ancestrais, e que promovem a celebração das suas culturas. Muitas destas marcas dão trabalho às suas comunidades e o foco ultrapassa o ser natural ou orgânico, e eleva-se a um propósito maior que ressoa muito bem na sociedade atual. A cultura sobrevive através da representação, não da apropriação. Queremos pertencer a uma comunidade próxima e autêntica que nos represente, na qual se estabeleça confiança e com a qual haja algo a aprender, mas também a ensinar. Num mercado cosmético saturado e maduro, com promessas muitas vezes exageradas, olhar para a sabedoria ancestral dos ingredientes vindos da terra e da Natureza, e das práticas antigas ritualísticas, oferece o conforto de uma alternativa enraizada no legado validado pelo tempo.
Houve de tal forma uma aceleração na ciência e na tecnologia, que durante décadas esquecemo-nos dos rituais simples que sempre funcionaram e que continuam a funcionar. As neurociências e o biohacking validam que precisamos deles e estamos cada vez mais conscientes disso, mas desejamos que se apresentem com um twist moderno. Valorizamos os ingredientes ancestrais, mas queremos sentir uma lufada de ar fresco na comunicação das marcas que os usam nos seus produtos, trabalhados por um marketing moderno que lhes dê uma imagem mais cool e desempoeirada. Queremos, também, que nos contem de uma forma transparente a história destes ingredientes e das marcas, quer sejam da nossa cultura, ou não. Estas práticas são anteriores à era antropocénica, em que o impacto do homem sobre a terra ultrapassou o da Natureza. Os nossos cosméticos têm de refletir e responder às nossas necessidades: beleza para nós próprios, para os outros e para o planeta, e rituais que nos acalmem e promovam a ligação consciente a um bem-estar pleno. Esta é a sabedoria antiga nos tempos modernos, que ajuda as pessoas a viver mais conscientemente, por si e pelo planeta. Com o espírito de comunhão e equilíbrio no progresso, não há espaço para ruturas: o balanço delicado entre proteção e inovação fará de todos nós arquivistas, e as marcas que associam a tecnologia de ponta aos ingredientes naturais comunicam uma mensagem muito forte totalmente alinhada com a expectativa atual, não só em termos de formulação, como de embalagens e, claro, de storytelling. Esta vontade de trazer uma narrativa para as marcas tem sido visível em vários pontos de contacto, nomeadamente através das escolhas dos seus embaixadores. Os standards de juventude ainda são demasiado jovens. O idadismo é, talvez, o único preconceito que passa despercebido na sociedade. Na indústria da beleza, como na moda – sempre disruptivas e pioneiras – vemos cada vez mais marcas a trazer pessoas com idades acima do convencional para os seus contextos.
Um dos ingredientes mais emblemáticos da cosmética ancestral é o bakuchiol. O bakuchiol encontra-se principalmente nas sementes da planta indiana Psoralea corylifolia e é muito usado nas medicinas indiana e tradicional chinesa. As sementes desta planta contêm compostos como os flavonoides, principalmente antioxidantes, e as cumarinas, com ação anti-inflamatória e antibacteriana, sendo por isso muito usado nos cosméticos para a acne e o envelhecimento cutâneo, nomeadamente refirmantes, antirrugas e antimanchas. Embora o retinol e o bakuchiol não apresentem semelhanças estruturais, têm um perfil de expressão genética semelhante, especialmente em alguns genes e proteínas-chave associados ao envelhecimento, o que justifica a sua comparação constante, ao ponto de o designarmos “retinol vegetal.” O bakuchiol, ao contrário do retinol, tem uma excelente estabilidade fotoquímica e hidrolítica, um bom perfil de segurança e facilidade de aplicação, o que faz dele uma estrela na cosmética natural. A sua tolerância pelas peles mais sensíveis terá certamente contribuído, por contraposição, para a má fama do retinol, mas este, como muitos dos ingredientes que a síntese laboratorial nos trouxe, é altamente eficaz e tem provas dadas, tanto da sua performance como da sua segurança. O retinol, gold standard na ação antirrugas e refirmante, pertence a uma família de compostos conhecidos como retinoides e a sua história remonta ao antigo Egipto. O retinol foi isolado pela primeira vez na década de 1930, mas só chegou aos cosméticos nos anos 80. Apesar de ter mais de quarenta anos de vida, este ingrediente é recente quando comparado com todos os que pertencem à cosmética ancestral, e continua sob escrutínio na sociedade. Os dados que temos da sua eficácia incontestável devem-se aos estudos feitos sem ética por vários cientistas, mas principalmente pelo Dr. Kligman, tanto em animais, como em voluntários humanos. Não será caso único, mas esta não é, de todo, a realidade da cosmética atual. Ainda assim, muitas vezes associamos a cosmética natural a uma maior consciência ética e, por isso, podemos cair na tentação de diabolizar o que não lhe pertence. Pegando na sua aura bondosa, será sempre de fomentar um convívio salutar entre ambas as proveniências dos ingredientes, e é a isto que assistimos muitas vezes, felizmente. Convivem no mercado marcas que nasceram com o ADN ancestral, e outras que o incorporam organicamente nos seus portefólios. Quando o intracultural passa a intercultural, é importante participar com intenção e jamais apagar o enquadramento original.
Blend perfeita entre tradição e modernidade: o chá. Considerado o remédio ancestral mais antigo do mundo, o chá foi descoberto há milhares de anos na China, e atualmente 2 mil milhões de chávenas são consumidas no planeta todos os dias. O chá pode ser um ingrediente antigo, mas o seu renascimento nos cosméticos está a servir este novo apelo holístico. De acordo com a Future Market Insights, as vendas de cosméticos à base de chá deverão registar um aumento de 8,3% até 2033, enquanto a plataforma de inteligência de dados Spate registou um crescimento específico para o chá preto – Camellia sinensis – de 13,2% no final de 2023 nos EUA. O chá verde, matcha, e o chá preto, assim como o seu derivado fermentado, kombucha, são fontes inesgotáveis de antioxidantes e têm ações relevantes na acne e no fotoenvelhecimento, por exemplo. Existem inclusivamente muitas marcas de cosméticos a alargarem o seu portefólio para os chás ingeríveis, como é exemplo o Flourish Like a Flower Herbal Beauty Tea, da Tata Harper. E a Tatcha, um dos melhores exemplos de J-Beauty da atualidade, acaba de lançar um novo gel de limpeza à base de matcha, dedicado às peles oleosas. A Teaology Tea Infusion Skincare é, talvez, o exemplo mais redundante de celebração deste ingrediente na cosmética por ser uma marca que substituiu a água usada como solvente por chá.
Os cosméticos não são aplicados num ambiente estéril e há muitas técnicas e utensílios que bebem desta filosofia de cuidado ancestral: gua sha, roller de pedras, escovas para body brushing, raspador de língua, yoga facial, são ótimas práticas complementares cujos efeitos de sucesso advêm da consistência. Nem tudo na beleza ancestral está validado pela ciência, mas Einstein aconselhou-nos a olhar profundamente para a Natureza para que compreendêssemos tudo melhor. O futuro da beleza inspira-se, naturalmente, no passado. A reconexão com a Natureza é integral para uma vida mais feliz e bonita, e por muito que a tecnologia seja essencial nas nossas vidas e faça do mundo um lugar pequeno, a Natureza tem sido o melhor laboratório para o ser humano: aquele onde tudo acontece e que está equipado com os melhores recursos, inclusive nós.
Essência ativadora revitalizante Eudermine Activating Essence, 150 ml, € 66,95, Shiseido, em Douglas.pt
Hidratante diário nutritivo com esqualano Nourishing Squalane Daily Moisturizer, 50 ml, € 42,95, The Outset
Originalmente publicado na edição de maio de 2024 da Vogue Portugal, Mother Nature. Disponível aqui.
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