Opinião  

Got Milk?

18 May 2024
By Sara Andrade

Não é uma pergunta de resposta fácil, ainda que a interrogação possa parecer simples. Nem sequer é uma pergunta de resposta curta. E, neste contexto, não é definitivamente uma pergunta que tenha uma conotação tão lúdica como o anúncio que a popularizou. E também não é uma pergunta de sim ou não. Porque, no que diz respeito ao leite materno, o “não” implica quase sempre desenvolvimento e enquadramento e o “sim” até pode ser resposta de uma mãe em nome de várias. Já ouviu falar em doação de leite humano?

Este não é um artigo sobre decisões. E não é um artigo sobre julgamentos, sobretudo, de quem não pode ou não consegue amamentar. É um artigo para informar, é um artigo para desmistificar e, acima de tudo, um artigo para alimentar: conversas, debates, esclarecimento de dúvidas. E doações de leite materno, que são mais necessárias do que julgamos — não é à toa que no dia 19 de maio se assinala o Dia Mundial de Doação de Leite Humano: poder doar leite humano pode ser vital para o desenvolvimento de um recém-nascido que pode não ter acesso a tal de outra forma. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a UNICEF, os bebés devem ser amamentados na primeira hora depois do nascimento e exclusivamente alimentados a leite materno até aos seis meses, ou seja, sem outro tipo de comida ou líquidos, incluindo água; a partir daí, introduzir alimentos adequados progressivamente, mas mantendo a amamentação até aos dois anos, pelo menos. Isto porque o leite materno é o melhor e mais completo alimento que existe para o bebé: amamentar um recém-nascido pode reduzir significativamente a mortalidade neonatal (aquela que acontece até ao 28.º dia), refere a UNICEF, além de que previne infeções, obesidade e diabetes. Por outro lado, tem vantagens no que diz respeito à comodidade, acessibilidade e disponibilidade — está sempre pronto e à temperatura ideal, sendo económico e de fácil digestão (a biodisponibilidade elevada dos nutrientes do leite materno permite a sua melhor digestão, absorção e utilização), bem como é veículo da água necessária para manter o bebé bem hidratado. Os benefícios não são unilaterais, uma vez que a amamentação, para a mãe, previne hemorragias no período pós-parto e auxilia nas contrações uterinas, bem como reduz o risco de osteoporose, cancro da mama e cancro do ovário, ajudando ainda a mãe a recuperar o seu peso habitual.

“São tantas as vantagens... Mas, acima de tudo, é a NORMA.” Ana Lúcia Torgal responde-nos por escrito, mas o seu entusiasmo e paixão parecem audíveis em cada resposta, os anos de experiência patentes na fluidez das explicações. É Enfermeira Obstetra e Consultora de Lactação (IBCLC) e, portanto, autoridade mais do que capaz para nos ajudar a navegar nesta via láctea tão especial. “Não deveria ser preciso falarmos das vantagens, somos mamíferos — temos maminhas, que produzem leite, que servem para alimentar as nossas crias. A espécie humana tem potencial para alimentar dois bebés ao mesmo tempo, por isso é que a mulher tem dois seios. Passámos a ter necessidade de falar das ‘vantagens’ do leite materno por causa do marketing do leite artificial. O leite materno é um ‘tecido vivo’, além de água, proteínas, hidratos de carbono, gorduras, vitaminas e minerais, também tem células vivas, hormonas, enzimas, imunoglobulinas, anticorpos, etc. (...) Este leite vai proteger o bebé de infeções, alergias e está cientificamente provado que os bebés amamentados têm menos risco de virem a ser obesos. Para as mães, o risco de virem a ter cancro da mama e dos ovários também é menor”, esclarece. Infelizmente, há situações em que não há condições para que a amamentação se verifique e a doação de leite pode ajudar a garantir que, pelo menos a criança, usufrua dos seus benefícios. “Este leite [doado] serve essencialmente para alimentar recém-nascidos muito prematuros, que nascem com menos de 32 semanas, e cujas mães não têm ainda leite, têm em quantidade insuficiente ou têm indicação clínica para não amamentarem o seu bebé (por algum problema de saúde da mãe). Este leite também pode ser usado em bebés de termo, com problemas de saúde, nomeadamente do foro cardíaco ou gastroenterológico”, elucida a enfermeira sobre o destino das doações, um tema que, num inquérito rápido em mesas de debate ao meu redor, parecia ser prática demasiado desconhecida para a importância que tem.

Teresa de Lima Mayer, médica dentista e mãe recente, surge aqui na autoridade empírica de que todas as mães usufruem: a da experiência em primeira mão, a da curiosidade e a da tentativa e erro. Fala com o amor maternal na ponta da língua, o tipo de especialista que este artigo também precisa. Foi através de Lima Mayer que ouvimos falar deste ato de doar leite humano. “Esta ideia foi-me apresentada pela enfermeira Torgal enquanto frequentei o curso de preparação para o parto no centro de saúde de Oeiras”, explica-nos, desconstruindo o processo do qual agora faz parte enquanto dadora. “Há um processo inicial que passa por uma consulta, para garantir que são cumpridas uma série de regras de saúde e alguns comportamentos, e também faço análises com uma regularidade pré-definida para aferir se está tudo ok comigo, por uma questão de segurança. Não há um mínimo de leite a ser doado, o compromisso é tirar leite uma vez por dia alguns minutos, de forma a não interferir com a amamentação. A ideia é acumular o leite em frascos esterilizados (cedidos pelo programa — a bomba também pode ser cedida, caso necessário, durante o período de dádiva), que seguem diretamente para o congelador para posterior transporte em caixas isotérmicas pelas enfermeiras responsáveis pelo programa. Há um contacto direto com estas enfermeiras não só a propósito da recolha, mas também da reposição dos frascos”, salvaguarda. Ana Lúcia Torgal aprofunda a logística, nomeadamente numa outra nuance que pode não ser óbvia: nem todas as maternidades estão preparadas para receber e armazenar estas doações. É possível doar leite, “mas apenas à Maternidade Dr. Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa, e à Maternidade do Hospital de São João no Porto, onde existem os dois únicos Bancos de Leite em Portugal”, sublinha Torgal. “Existe também a possibilidade de doar leite através do Agrupamento de Centros de Saúde Lisboa Ocidental e Oeiras, o meu local de trabalho. Na comunidade, fazemos a divulgação do projeto, fazemos a consulta de triagem e o acompanhamento das dadoras, nomeadamente a recolha do leite ao domicílio, a realização trimestral das análises necessárias, e todo o apoio caso existam dúvidas nas dadoras. Esse leite é analisado, pasteurizado e só depois oferecido aos recém-nascidos prematuros de diversos hospitais”, relata, explicando ainda que “as potenciais dadoras podem entrar em contacto diretamente com o Banco de Leite, e nesse contacto é agendada uma consulta de enfermagem e médica (pode ser presencial ou telefónica), para se avaliar se a dadora cumpre os critérios necessários.” Qualquer mãe pode doar leite? “Todas as mulheres saudáveis que sintam que têm um ligeiro excesso de leite (a prioridade é sempre do seu bebé)”, salvaguarda. “No início da doação, o bebé tem de ter menos de quatro meses e a doação pode prolongar-se até aos 12 meses do bebé. As mulheres não podem fumar, usar medicamentos ou drogas, nem ingerir álcool. O seu bebé tem de estar a crescer dentro do esperado. Em casa, tem de haver boas condições de higiene e um congelador com espaço para guardar o leite. As análises feitas têm de estar dentro dos valores esperados.” As condicionantes são mais do que justificáveis, uma vez que é necessário garantir a qualidade do leite materno para estes seres que acabam de chegar ao mundo e cuja fragilidade pode até ser maior no caso de necessitarem de doação, uma vez que muitas das situações se prendem com bebés prematuros, muito abaixo do peso, e que precisam deste alimento pela qualidade da sua nutrição. Listar os benefícios do leite materno enche o olho, mas senti-lo enche o coração. “Acompanhei uma mulher que foi dadora de leite durante dez meses”, partilha a enfermeira da MAC. “Tinha acabado de ter uma bebé que nasceu com 25 semanas e que ainda se encontrava internada nos Cuidados Intensivos Neonatais. Percebeu que era muito importante extrair leite para amamentar a sua filha, pois esse leite iria fazer toda a diferença na forma como a bebé se iria desenvolver. Ficou tão sensibilizada com a importância do leite humano que decidiu ser dadora. Enquanto alimentou a filha (sempre com leite materno), doou cerca de 140 litros para o banco de leite da MAC. Foi a dadora que acompanhei que mais leite doou.”

Pergunto-me porque será que ainda há tanta discussão — ou falta dela — em torno da amamentação, depois de ler as recomendações da comunidade científica e de ouvir estas e outras mulheres falarem sobre a amamentação com tanto fulgor, bem como de perceber o quanto a desinformação e pressão podem ser danosas. É o silêncio que mina a amamentação? É mais profundo que isso. “Felizmente as taxas estão a aumentar, mas ainda longe do recomendado pela OMS”, refere Ana Lúcia Torgal. “Em Portugal, as licenças parentais não contemplam os seis meses da mãe, e por esta razão é mais difícil a exclusividade do aleitamento materno durante esse período. As mulheres que estão a ser mães agora ainda não têm muitos modelos... as suas mães e sogras provavelmente não amamentaram, ou fizeram-no durante pouco tempo. Algumas mulheres precisam de apoio especializado nesta área e ainda temos poucos profissionais de saúde preparados e habilitados para dar esta resposta.” Nada disto contribui para que se procure aprofundar o tema ou sequer perseguir esta via por mais tempo do que o necessário. Além disso, “sinto que existe ainda um tabu, infelizmente, e não há razão nenhuma para existir”, desabafa Teresa de Lima Mayer. “Sei de um caso de uma amiga que estava no restaurante de um hotel a amamentar o seu bebé, até estava tapada, e foi abordada por um funcionário que a informou que ali não era o sítio próprio para amamentar, porque podia incomodar outros clientes. Eu acho isto perfeitamente inadmissível, e, aliás, ilegal, a amamentação é considerada um direito da mulher que deve ser exercido livremente em espaços públicos e privados.” A psicóloga Catarina Lucas lembra que “há vários aspetos envolvidos. Por um lado, ainda se considera uma zona do corpo com uma componente sexual que não deveria ser exposta dessa forma. Todavia, há também outra leitura das coisas. Este tabu está mesmo associado à forma como olhamos a maternidade e a amamentação — como uma coisa íntima, que não deve ser exposta aos olhares de todos.” Muitas vezes, é a própria mulher que se condiciona, reflexo dessas questões externas? “Nós somos o resultado da sociedade onde crescemos e as nossas crenças moldam o nosso comportamento”, contextualiza Lucas, relembrando que “é importante referirmos que a mulher não tem de amamentar em público se não se sentir confortável. Este momento é visto por muitas mulheres como algo especial, íntimo e, por isso, querem vivê-lo de forma mais íntima, não pretendendo expor-se publicamente nesse momento que é delas”, remata. Claro que escolher não amamentar em público é diferente da pressão exterior para não o fazer. O facto de ser uma prática que não escolhe horas nem local — o intervalo entre cada amamentação tem grande variabilidade de mãe para mãe —, significa que a condenação social também pode acelerar o desmame precoce para efeitos de maior independência, por isso, o tabu e a desinformação podem ser fortes veículos do abandono da amamentação pelas razões erradas. “A amamentação pode ser um tabu para aquelas mulheres que não conseguiram ultrapassar as dificuldades”, aponta a enfermeira Ana Lúcia Torgal. “Que não tiveram toda a ajuda que necessitavam. Pode ser muito frustrante querer muito e não ter conseguido.” Ainda que, como diz a psicóloga, seja “preciso eliminar os discursos atuais, facilmente veiculados através das redes sociais, e que nos dizem constantemente o que temos de fazer, as dicas para alcançar alguma coisa, o quão maus somos quando não o conseguimos ou como parece fácil para outros”, importa sublinhar que “amamentar é normal mas não amamentar também o é. São escolhas com as quais as mães têm de estar confortáveis. Não criticar, não replicar modelos, ser uma ajuda efetiva. A maternidade e a amamentação são processos individuais, não generalizemos”, alerta. “As decisões devem ser tomadas de acordo com aquilo que fizer sentido para cada pessoa e com as suas capacidades físicas e emocionais.”

Acima de tudo, as decisões devem ser tomadas com toda a informação possível entre mãos, e para tal é preciso promover o tal diálogo junto de quem sabe: “Antes do bebé nascer, mãe e pai (temos de envolver o homem também) devem aprender como funciona a amamentação”, assinala a enfermeira Torgal. “Ou numa consulta pré-natal de amamentação, ou frequentando um curso de preparação para o parto. Se a decisão do casal for amamentar, então seria bom falarem com outra mãe que tenha tido uma boa experiência e lerem sobre o tema. Devem saber também onde e a quem recorrer caso tenham alguma dificuldade com a amamentação.” Por exemplo,“existe um serviço gratuito de uma associação chamada SOS Amamentação que presta apoio telefónico às mães com dificuldades” e celebra que se fale cada vez mais [de amamentação]. “Em Portugal, as mulheres mais diferenciadas são aquelas que mais amamentam. É preciso continuar a investir no apoio à amamentação, especialmente nas mulheres socialmente mais desfavorecidas.” Torgal apela ainda ao “apoio à mãe trabalhadora, para que possa trabalhar e amamentar; informação a todas as grávidas sobre a prática do aleitamento materno; formação dos profissionais de saúde (sobre aleitamento materno) que prestam cuidados a grávidas, mães e bebés; consultas de amamentação disponíveis a quem precisa.” O resto, é experiência. Teresa de Lima Mayer sabe-o bem: “No meu trajeto como mãe, sinto que tudo ou quase tudo é verdadeiramente compreendido no desenrolar do percurso em si, no dia a dia da maternidade, na experiência que passa muitas vezes por tentativa-erro. Uma mãe e um bebé são sempre uma dupla irreplicável e, por isso, é sempre importante ter em consideração que a maternidade é também a adaptação entre dois seres humanos e as suas particularidades. Por mais livros ou cursos que se faça, sinto que verdadeiramente só nos tornamos mães quando efetivamente somos mães. Relativamente à amamentação, penso que já existe muita informação, sendo que às vezes é importante ter acesso a esta de forma fidedigna, e uma óptima forma de o fazer é o aconselhamento com uma especialista no tema, como é o caso dos consultores de lactação com certificação IBCLC, profissionais especializados na área que dão apoio à amamentação. Eu recorri a uma especialista e foi a melhor decisão que tomei, estou a amamentar em exclusivo a minha filha com cinco meses, e sem este apoio não sei como teria sido. Há um desafio associado à amamentação, principalmente no primeiro mês, que culmina com outros desafios do início do pós-parto, o que pode ser demasiado para uma mulher sozinha, principalmente se for desinformada, ainda há muitos mitos a serem desmistificados. Também acontece ouvirmos, até de profissionais de saúde, que ‘o seu leite não é bom’ ou ‘o seu leite não é suficiente’ — frases muito perigosas, mas que ainda se ouvem, inclusive na maternidade. Não existe o conceito de produção de leite mau, a ideia que o leite produzido por uma mulher lactante pode ser fraco é perfeitamente absurda e com zero fundamento científico, que pode levar a inseguranças na amamentação e consequentemente à sua descontinuidade.”

Este não é um artigo sobre decisões. E não é um artigo sobre julgamentos, sobretudo, de quem não pode ou não consegue amamentar. É um artigo para informar, é um artigo para desmistificar e, acima de tudo, um artigo para alimentar: conversas, debates, esclarecimento de dúvidas. Porque de tudo o que abordámos aqui, a maior conclusão é que conhecimento é poder. E só se chega lá com questões, com respostas, com caso a caso, até com tentativa e erro. “Há um dever associado à maternidade, há um compromisso e há opções, se não estivermos devidamente informados, não temos as ferramentas necessárias para o desafio a que nos propomos com a maternidade”, defende Teresa de Lima Mayer. “A amamentação é a melhor opção, não há dúvida, mas a melhor opção não é sempre a possível e por isso temos uma sorte enorme de vivermos numa sociedade evoluída ao ponto de termos acesso a leite artificial.” E com a ajuda da doação, espera-se que exista bastante leite materno para que se colmatem carências. “Contudo, se existir um acompanhamento precoce que responde a todas as dúvidas da mulher quando inicia a amamentação, diria que a taxa de sucesso iria aumentar. Há perigos associados a uma desinformação generalizada e a mitos, temos de perceber que amamentar não era socialmente bem visto na alta sociedade há menos de 70 anos, em que existiam ‘amas de leite’ que amamentavam bebés que não eram seus filhos porque amamentar era ostracizado e considerado de ‘baixo nível’ ou de classe social baixa. É preciso perceber que a amamentação tem uma história que tem de ser contada para ser entendida no seu contexto social e o porquê de ainda ser vista como um tabu. Há claramente um caminho a ser percorrido, mas que aos meus olhos parece estar no rumo certo.” 

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